06 Julho 2019
Stephan Lessenich (Stuttgart, 1965) gosta de olhar através de um grande ângulo. Este sociólogo alemão estuda as desigualdades e os equilíbrios de poder, mas a partir do global e de uma consciência universal. Defende que adianta pouco lutar pelo bem-estar dos cidadãos na Alemanha, se isso se faz à custa do trabalho escravizado e da pilhagem de recursos naturais em países distantes, seja na produção de soja, na Argentina, ou na fabricação têxtil, na Ásia.
Ex-presidente da Sociedade Alemã de Sociologia (2013-2017) e professor na Universidade de Munique, Lessenich traça uma imagem demolidora da cara obscura da modernidade ocidental e defende que apenas mudando a maneira como consumimos e produzimos é que deixaremos de “viver acima das possibilidades dos outros”. Lessenich acaba de publicar La sociedad de la externalización (Herder), um livro incômodo, que retira o véu que nos colocamos para não querer ver aquilo que intuímos, mas que preferimos ignorar.
A entrevista é de Ana Carbajosa, publicada por El País, 03-07-2019. A tradução é do Cepat.
Diariamente, escolhemos não ver, não saber como são produzidos os telefones e as camisetas que compramos, mas é até certo ponto um recurso psicológico lógico. Serve para alguma coisa nos atormentar, pensando nas desgraças do resto do mundo?
Atormentar-se de forma individual não serve para nada. No máximo, você se sentirá um pouco melhor, após se atormentar, mas nenhuma solução será individual. Será coletiva ou não será. Coletivamente, decidimos não ser conscientes do que implica nosso modo de vida e suas consequências. É compreensível que as pessoas não queiram fazer mudanças radicais em suas vidas, como deixar de utilizar o carro e, por isso, de modo mesquinho, aceitamos que as coisas sejam como são. Mas, nosso status só é possível, aqui, porque há status diferentes em outras partes do mundo. Não é mais preciso se fixar na expectativa de vida e em como é desigual, dentro da Alemanha e também entre países. É a loteria do lugar de nascimento.
Pelo que você diz, parece impossível ser uma pessoa decente vivendo na Europa. Você sustenta que vivemos acima das possibilidades dos outros, dos empobrecidos do planeta.
É o que faz com que este sistema seja um erro, porque é uma estrutura que não lhe dá a oportunidade de ser uma pessoa decente. O sistema força você a prejudicar os outros, mesmo que não queira, só por ser cidadão deste país. Há algo que não funciona em um sistema que não oferece a oportunidade de você ser uma boa pessoa.
Você coloca o foco nas desigualdades globais. Estamos desde os anos 1960 lendo isto e não parece importar o suficiente para que se tenha um remédio.
Sim, estamos há décadas assim. O novo é que temos uma intensificação da externalização e isto apesar de haver uma crescente retórica de sustentabilidade, de ajuda ao desenvolvimento e de atacar os efeitos perversos da globalização. Os indicadores de consumo, de energia, de extração de recursos naturais apontam que pioraremos. Além disso, acredito que agora assistimos a um efeito bumerangue. A externalização está voltando ao Ocidente em forma de migrações e de mudança climática. As pessoas vêm pelas enormes diferenças de renda ou porque já não pode viver da terra que trabalhava.
Mas, em teoria, cada vez sabemos mais dos efeitos da mudança climática, os países fixam objetivos, as tecnologias são cada vez mais limpas e o consumo bio e os partidos verdes arrasam. Não serve para nada?
O auge de Os Verdes, aqui na Alemanha, é um indicador importante que nos diz que muitas pessoas pensam que não podemos continuar assim. Mas, por sua vez, significa que as pessoas pensam que podem contornar a situação, sem mudar o nosso modo de vida, nem o modo de produção e consumo da sociedade. De alguma maneira, Os Verdes fazem populismo ecológico, porque dizem: “sim, iremos interromper a mudança climática, mas você não precisa mudar seu estilo de vida. Também voará um pouco menos, mas não deixará de viajar de avião”.
O que precisamos fazer para que isto mude?
Precisamos mudar a maneira de consumir e de produzir. Temos que consumir menos, produzir menos. É uma questão de ter menos.
Você fala em democratizar a economia. Como se faz isso?
É necessário ampliar nosso conceito de democracia à economia, reduzir o poder das grandes empresas. Precisa ser uma mudança que venha de baixo, das pessoas do sul que se organizem, e nos países ricos por meio das pessoas que não querem se ver obrigadas a ter que prejudicar os outros para poder viver. Inclusive, os mais pobres em nossas sociedades, caso queiram viver, precisam consumir camisetas a 99 centavos ou carne a dois euros o quilo. Reduzimos os custos de produção de maneira artificial. Não internalizamos os custos reais, os sociais, os ecológicos, e por isso podemos produzir roupa e smartphones baratos. A motivação precisa ser a conexão com as pessoas que, ao final, pagam pelo nosso estilo de vida.
Prevê que acabará acontecendo uma espécie de levante.
Já há uma reação. As pessoas não continuarão aceitando eternamente não ter oportunidades na vida e vendo que outros utilizam suas oportunidades como querem. Haverá reações como nunca vimos em décadas e será uma nova experiência para uma sociedade como a alemã, que conta com sete décadas de paz social, mas à custa de guerras em outros lugares e da exploração de pessoas e recursos naturais em outras partes do mundo. Cada vez ficará mais evidente que este estilo de vida não é sustentável.
Fala em barrigas de aluguel quase como da última fronteira da externalização. Considera que o argumento altruísta não cola.
Temo que não exista uma última fronteira, que as fronteiras se cruzam o tempo todo. Não julgo as motivações individuais de cada um, mas não é uma questão de altruísmo ou egoísmo, mas de assimetrias estruturais, de que algumas pessoas têm o direito e a liberdade de escolher fazer algo como comprar uma criança e outros não. Não é por acaso. Há uma assimetria inerente, construída por séculos, que agora se torna mais visível graças à digitalização e às redes sociais.
A digitalização pode ser uma oportunidade para reduzir desigualdades ou agravará as diferenças globais?
Se a propriedade continuar como até agora, piorará. Se você tem cinco grandes companhias controlando as redes sociais e 10 controlando a infraestrutura da digitalização, as possibilidades de externalizar só aumentarão. É preciso mudar as relações de propriedade também na produção de serviços digitais.
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“O sistema força você a prejudicar os outros, mesmo que não queira”. Entrevista com Stephan Lessenich - Instituto Humanitas Unisinos - IHU