10 Outubro 2019
“820 milhões de pessoas famintas em um planeta que produz quase o dobro do necessário são um escândalo moral, ético e econômico, em pleno século XXI de vanguarda tecnológica e capacidade de produção sem precedentes”, escreve Enrique Yeves, diretor da FAO na Espanha, em artigo publicado por Le Monde Diplomatique em espanhol, outubro/2019. A tradução é do Cepat.
Não vamos na direção correta. Um passo à frente, dois atrás. A luta contra a fome no mundo é uma história de frustração para uma geração, a nossa, que poderia - e deveria - ser a primeira na história a erradicá-la.
Após várias décadas de declínio contínuo no número de pessoas que sofrem de fome, essa tendência positiva foi revertida novamente, confirmando a tendência dos últimos três anos. E não deixa de ser irônico que esse aumento seja precisamente a partir de 2015, o mesmo ano em que a comunidade internacional se comprometeu com a sua erradicação até 2030, no âmbito dos chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, assinados com toda a pompa diplomática na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, pelos dignitários de 194 países.
Os dados mais recentes da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) [1] são contundentes a esse respeito e confirmam o aumento nos últimos anos, um aumento lento, mas constante, que coloca o número atual em cerca de 820 milhões pessoas que passam fome, o que coloca em questão, claramente, a meta de fome zero da agenda de 2030.
A fome está aumentando em quase todas as regiões africanas, o que faz da África a região onde a desnutrição é mais elevada proporcionalmente, em torno de quase 20%. Também está aumentando na América Latina e no Caribe, um retrocesso em uma área que viveu uma década de ouro na redução da fome e da pobreza, situando-se agora em torno de 7%. E na Ásia também há um aumento contínuo, desde 2010, e na atualidade mais de 12% de sua população se encontra subnutrida.
Segundo dados da FAO, a fome aumentou em muitos países onde a economia desacelerou ou contraiu, principalmente nos países de renda média. Dos 65 países em que foram mais intensos os efeitos adversos da desaceleração econômica e do enfraquecimento da segurança alimentar e da nutrição, 52 dependem fortemente das exportações e importações de produtos primários. Essas desacelerações ou enfraquecimento da economia afetam negativamente, de forma desproporcional, a segurança alimentar e a nutrição, onde as desigualdades são maiores. Em palavras simples: as vítimas das periódicas crises econômicas são principalmente as camadas mais vulneráveis e desfavorecidas.
Enquanto no passado, a FAO já havia destacado como o conflito e os fenômenos extremos do clima – a mudança climática - agravam essas tendências negativas, agora a Organização enfatiza a importância da desaceleração econômica e ressalta que “com a finalidade de proteger a segurança alimentar e a nutrição é fundamental dispor de políticas econômicas e sociais que combatam os efeitos de ciclos econômicos adversos, evitando, ao mesmo tempo, a todo custo, cortes em serviços essenciais, como assistência médica e educação. Porém, a longo prazo, isso só será possível promovendo uma transformação estrutural e inclusiva a favor dos pobres, especialmente em países que dependem em grande medida de produtos básicos primários” [2].
De qualquer forma, como ficou claro nos últimos anos e os estudos empíricos demonstraram, o crescimento econômico sólido não contribui necessariamente para reduzir a pobreza e melhorar a segurança alimentar e nutricional. O crescimento econômico, embora necessário, pode não ser suficiente, a menos que seja acompanhado por políticas claras de distribuição de riqueza. A desigualdade de renda é um problema-chave em nossos dias, já que está aumentando em quase metade dos países do mundo, incluindo muitos países de renda média e baixa. Cabe assinalar que vários países da África e da Ásia registraram um grande aumento na desigualdade de renda, nos últimos 15 anos.
Em países onde a desigualdade é maior, as desacelerações e enfraquecimentos econômicos têm um efeito desproporcional nas populações de baixa renda em termos de segurança alimentar e nutricional, uma vez que utilizam boa parte de sua renda para a compra de alimentos.
A FAO recomenda que medidas sejam tomadas em duas frentes. Primeiro, salvaguardar a segurança alimentar e a nutrição por meio de políticas econômicas e sociais que ajudem a combater os efeitos da desaceleração econômica, como garantir fundos para as redes de seguridade social e garantir acesso universal à saúde e à educação. Segundo, enfrentar as desigualdades existentes em todos os níveis por meio de políticas multissetoriais que permitam alcançar formas sustentáveis de escapar da insegurança alimentar e da desnutrição.
Outro grande paradoxo do nosso mundo atual é que não aumenta somente a fome. A obesidade se tornou uma praga que não diferencia países ricos ou pobres, do norte ou do sul, desenvolvidos ou não, nem barreiras de gênero ou idades. É uma ameaça perfeitamente globalizada. Sobrepeso e obesidade aumentaram em todas as regiões, sem exceção, com números impressionantes. Cerca de 2 bilhões de adultos - mais que o dobro do número de pessoas com fome – sofrem de sobrepeso, assim como cerca de 207 milhões de adolescentes e 131 milhões de crianças, entre 5 e 9 anos de idade: quase um terço dos adolescentes e adultos que têm sobrepeso são também obesos.
Todo esse incerto panorama nos leva a concluir que estamos cada vez mais longe de alcançar as metas fixadas para o ano 2030 de fome zero. Muito pelo contrário, desde que tal objetivo foi assinado, os dados vão de mal a pior: 820 milhões de pessoas famintas em um planeta que produz quase o dobro do necessário são um escândalo moral, ético e econômico, em pleno século XXI de vanguarda tecnológica e capacidade de produção sem precedentes.
Notas:
[1] El Estado de la Seguridad Alimentaria y la Nutrición en el Mundo 2019, FAO, Roma, 2019.
[2] El Estado de la Seguridad Alimentaria y la Nutrición en el Mundo 2019, FAO, Roma, 2019.
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A fome no mundo: um passo à frente, dois para trás - Instituto Humanitas Unisinos - IHU