25 Setembro 2019
Autor de quase 30 livros sobre a região, o jornalista – que nesta segunda-feira (23) completou 70 anos de idade -, lamenta o “momento dramático” na questão ambiental.
A reportagem é de Cristina Serra, publicada por Colabora e reproduzida por Amazônia Real, 23-09-2019.
A notícia pegou muita gente de surpresa. No fim de julho, o jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, maior especialista em Amazônia do Brasil, anunciou no seu blog que estava deixando o exercício diário do jornalismo por ordem médica. Lúcio, que fez 70 anos de idade nesta segunda-feira (23 de setembro), foi diagnosticado no fim do ano passado com o Mal de Parkinson. Desde janeiro, já havia reduzido as atividades. O “Jornal Pessoal”, por exemplo, deixou de ser quinzenal e, desde então, Lúcio conseguiu publicar apenas três edições do jornal alternativo mais longevo do Brasil. Ele mantém uma coluna na Amazônia Real desde 2016.
Com 32 anos de existência – sem nunca ter aceitado publicidade – o “Pessoal” nasceu do compromisso radical de Lúcio Flávio com o jornalismo. Depois de uma carreira bem-sucedida em veículos como “O Estado de S.Paulo” e em “O Liberal” (de Belém), Lúcio decidiu criar um produto para tudo aquilo que a grande imprensa não publicava “porque não sabia ou porque não queria”.
A devoção a um jornalismo sem concessões lhe rendeu enormes dissabores – 34 processos judiciais e inúmeras ameaças de morte -, mas também muitas glórias. É o único brasileiro incluído na lista dos cem jornalistas mais importantes do mundo da ONG Repórteres sem Fronteiras e recebeu vários prêmios Esso, Fenaj e Vladimir Herzog, além do Colombe d’Oro per la Pace, da Itália, por contribuir no combate às injustiças sociais.
Lúcio Flávio escreveu quase 30 livros, tendo a Amazônia como tema central. Nascido em Santarém, no oeste do Pará, à beira do rio Tapajós, ele se define como “um caboclo”, obstinado em entender a região que é sua paixão e também seu maior desafio profissional. Depois de 53 anos, porém, Lúcio diz, nesta conversa exclusiva com o #Colabora, considerar a Amazônia “uma batalha perdida”.
A conversa foi por telefone, de Belém, onde leva vida modestíssima. Não tem carro, celular nem cartão de crédito. “Meu capital me permite ir até o Ver o Peso”, resumiu, com humor, referindo-se ao mercado popular da cidade. Apesar do baque que a doença lhe causou, Lúcio, que também é sociólogo e professor, ainda tem “grandes projetos”. Quer terminar de digitalizar seu banco de dados sobre a Amazônia para criar o que chama de “Enciclopédia da Amazônia Contemporânea” e escrever um livro sobre a Cabanagem, revolta popular ocorrida no Pará, em meados do século XIX.
O que vai acontecer com a Amazônia?
Na década de 1970, o [Robert] Goodland, meu amigo, e o Howard Irwin escreveram o livro “Do inferno verde ao deserto vermelho”, no qual previam que a Amazônia viraria um deserto. Não é verdade. Eles pegaram um exemplo no sul do Pará, numa área em Santana do Araguaia, que é de areia. Ali até pode virar deserto. Mas o desmatamento continua e vai se intensificar se o projeto anunciado pelo Bolsonaro, de asfaltar a BR-319 (Manaus-Porto Velho) se efetivar. O Amazonas já tem municípios entre os mais desmatados da Amazônia. Está se repetindo no vale do rio Madeira e vai se repetir no Purus o mesmo que aconteceu no Tocantins, no Araguaia, no Xingu e no Tapajós. Então, não há futuro.
Mas não há o que fazer?
Depois de 53 anos na linha de frente, tentando entender a Amazônia, só tenho uma esperança hoje: o kibutz científico. Um estudante quer fazer engenharia florestal, passa por um exame de seleção e vai para uma área que está sendo desmatada. Lá, vai ter campus para ele estudar teoricamente e desenvolver um projeto. Ele recebe um lote da União em comodato, entra na graduação e vai até o doutorado. Só vai receber a propriedade plena se o projeto for executado e der certo. O governo financia tudo – mateiro, máquinas, sementes e dá uma bolsa de R$ 10 mil ao estudante. Ele vai morar lá e receberá supervisão técnica de especialistas em florestas e fazer relatórios sobre o conhecimento acumulado dos seus vizinhos nativos, índios e caboclos. Ele só vai receber o título de doutor e o título da terra se o projeto der certo. Só assim, a ciência e o conhecimento humano em relação dialética com o conhecimento histórico de milhares de anos podem pôr os cientistas na linha de frente. Não mais o posseiro, o madeireiro, o fazendeiro, o minerador. É a minha última utopia. Sugeri a técnicos do BNDES, porque é preciso acabar com o monopólio científico de quem não conhece a Amazônia. A concentração da verba de ciência e tecnologia é maior em São Paulo do que a concentração do PIB. É preciso quebrar este centralismo que é nocivo para a Amazônia.
Bolsonaro tem falado muito na liberação de áreas na Amazônia para garimpo, inclusive áreas indígenas. Pode ser um golpe de morte para a floresta?
Não é de morte, mas é sangrento, uma ferida feia, terrível. Toda vez que pego imagens de satélite do Tapajós, do Crepori, é uma dor lancinante para mim, que nasci na Amazônia, na beira do rio, que tem a relação que tenho com a água. Mas o pior foi a Embrapa ter inventado a semente de soja em área úmida. Antes, não dava certo plantar soja em área de floresta. Hoje, dá. Foi a invenção da pólvora contra a floresta, uma bomba. Um tio meu tinha uma fazenda em Fordlândia e passei algumas férias lá quando criança. Hoje, tem áreas imensas de soja onde era floresta. É uma dor. É um absurdo derrubar floresta para plantar soja, boa parte dela para alimentar gado.
O governo Bolsonaro é uma ameaça muito maior para o meio ambiente e a Amazônia do que outros governos?
O cidadão que é uma ameaça a ele mesmo, porque é o pior inimigo dele, é uma ameaça a todos os demais. Fica comprando brigas que poderia ter evitado se tivesse menos incontinência verbal e fosse um pouquinho mais civilizado. Esse cara é um perigo. Hoje, as pessoas morrem de calor na Europa. Não se pode ignorar o aquecimento global e dizer que é coisa de comunistas e de ONGs. A Amazônia vai voltar à agenda. Ou o Bolsonaro muda, por mais que ele seja um huno, um Átila, ou não vai em frente. Se dependesse dele, destruiria tudo. É um momento dramático. Mas, como sempre, a conjuntura internacional torna a situação nacional dependente, caudatária.
Você escreveu livros sobre grandes projetos na Amazônia, do tempo da ditadura. Vemos hoje Belo Monte ecoando o mesmo tipo de visão sobre a região. Como você analisa a Amazônia e sua inserção no cenário econômico mundial?
A Amazônia é a região brasileira tardia, a última que se incorporou ao país, e vista de fora para dentro. Foi o último suspiro do despotismo esclarecido de Portugal, com o Marquês de Pombal. Ele preparou a Amazônia para ser portuguesa. Na segunda metade do século XVIII, fez aqui palácios, igrejas monumentais, que eram desconformes com cidades tão pobres e pequenas, que nos surpreendem e espantam até hoje. Então, Portugal resistiu a perder o Brasil, mas resistiu muito mais a perder a Amazônia. Em 1835, a Cabanagem foi o rompimento da dominação portuguesa. Mas a corte, no Rio de Janeiro, interpretou a Cabanagem como uma manobra dos portugueses para se separar do Brasil e ficar com a Amazônia. Mas os cabanos queriam era se livrar dos portugueses. Foi o contrário do que pensava o Império. A Cabanagem durou cinco anos e se fosse hoje, com uma população da Amazônia de 25 milhões de habitantes, seriam cinco milhões de mortos. E qual foi o efeito estrutural? A predominância do capitalismo inglês, que financiou o Ciclo da Borracha. O Banco do Brasil só chegou à Amazônia cem anos depois da sua fundação, no Rio de Janeiro, em 1808.
O que mudou hoje?
Não vejo transformação, porque tudo que o governo federal faz se baseia no maior projeto feito sobre a Amazônia, o Plano Quinquenal (1975-79) do João Paulo dos Reis Veloso, no governo Geisel. O plano diz que o Brasil se divide em três: o eixo dominante Sul-Sudeste; a área de expansão, o Nordeste e o Centro Oeste; e a área de fronteira, que tem a missão de gerar dólares. Cobri o encontro do então ministro Delfim Neto com o ministro Saburo Okita, um dos responsáveis pelo “Milagre Japonês” [recuperação econômica do Japão depois da Segunda Guerra Mundial]. Okita perguntou a taxa de poupança do Brasil e, depois de muita insistência, o Delfim disse que era um décimo da dos japoneses. “Mas nós temos a Amazônia”, completou. Para isso que é a Amazônia: suprir a baixa poupança. Os grandes projetos foram concebidos para gerar dólares e executados com muita competência. Se devastou a Amazônia, se criou problema com os índios, esse é o custo.
Mas o pensamento não evoluiu?
Depois, vieram Figueiredo, Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula (que elogiou o planejamento do Geisel) e Dilma. Ninguém mudou e o símbolo dessa continuidade foi o primeiro ato do Sarney, o projeto Calha Norte, a renovação da doutrina de segurança nacional na Amazônia, que orienta tudo que acontece na região. A democracia não chegou na Amazônia. Meu grande esforço é tentar pôr na agenda do cidadão da Amazônia os fatos que estão acontecendo e fazer com que o acontecimento seja percebido na hora que acontece e não daqui a 20, 50 anos. Esse descompasso de tempo entre a percepção do fato e a ocorrência do fato é a razão de uma região e um país tão ricos serem colonizados.
A visão colonialista ainda predomina sobre a Amazônia?
Até hoje. E a esquerda é tão nociva quanto a direita, como se vê no caso Belo Monte projeto original é da época da ditadura, igualzinho ao de Tucuruí. A esquerda combateu o projeto original, com alguns argumentos corretos, mas sem responsabilidade prática. “Sou contra, mas não tenho alternativa”. A esquerda não pensa alternativas porque não conhece a Amazônia. Seja a favor ou contra o que está acontecendo, as pessoas não conhecem. Para conhecer a Amazônia é preciso muito tempo e muita dedicação. Muito “Meninos, eu vi”.
Como você avalia a cobertura da imprensa do Sul/Sudeste sobre a Amazônia hoje?
Vários fatores tornam a cobertura pior. A imprensa não quer mais gastar dinheiro em viagens. E cobrir a Amazônia é caro. Um dos processos de formação do jornalista é o enviado especial, que está desaparecendo. No mundo inteiro. Só as grandes publicações ainda fazem isso. O segundo fator, que acho mais dramático, é que jornalista não vai mais para a rua, não conhece as fontes pessoalmente. Conheço todas as minhas fontes pessoalmente, fontes de toda a Amazônia. Sempre cito o poema do Gonçalves Dias, o I-Juca Pirama, “Meninos, eu vi”. Se o jornalista não pode dizer isso, não tem a diferença em relação aos outros. Quem cobre Amazônia não pode ficar na frente de um computador analisando dados. Tem que conhecer as pessoas, as circunstâncias, perceber os detalhes.
Angustia parar no momento atual do Brasil?
Muito. O que o Bolsonaro falou do pai do presidente da OAB [Felipe Santa Cruz, que perdeu o pai, Fernando, torturado durante a ditadura] é o grau máximo de brutalidade e de selvageria. O clima no Brasil, atualmente, é propício a uma catástrofe social.
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“Não há futuro para a Amazônia”, diz Lúcio Flávio Pinto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU