22 Setembro 2019
A emergência de uma eclesiologia do Vaticano II ainda não realizada está redefinindo o teste decisivo da unidade da Igreja.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por La Croix International, 19-09-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O gênio literário russo Leon Tolstói escreveu em sua obra-prima do século XIX “Anna Karenina”: “As famílias felizes são todas iguais; cada família infeliz o é à sua própria maneira”.
Bem, o mesmo pode ser dito sobre a comunidade cristã. Cada situação tensa e divisória é uma história em si mesma. Portanto, é difícil fazer comparações adequadas entre os diferentes cismas que ocorreram ao longo da história da Igreja.
Uma das razões para isso é que a própria noção de cisma é um tanto ambígua.
Por exemplo, a Igreja primitiva não fazia nenhuma distinção clara entre a noção de “heresia” (o desvio de uma minoria da doutrina ortodoxa) e “cisma” (uma situação de divisão e conflito na comunidade cristã).
Foi somente no meio da Era Patrística, durante o primeiro milênio, com o desenvolvimento de um sistema jurídico e a ascensão da hierarquia, que a Igreja começou a diferenciar os vários tipos de divisões, especialmente à luz da necessidade de reconciliar indivíduos ou grupos.
O cisma se torna um mal menor comparado à heresia. Os cismáticos são frequentemente acusados de se separarem como “puros” em oposição ao restante da Igreja. Agostinho de Hipona (354-430), por exemplo, considerava válidos os sacramentos dos cismáticos, enquanto acreditava que os dos hereges não eram.
Quando a Igreja finalmente adotou uma eclesiologia do papado forte, ocorreu uma mudança importante. E, assim, ao redor dos séculos XI e XII, o cisma era definido como uma ruptura da comunhão com o Bispo de Roma. Exemplos disso incluem os cismas dos antipapas Clemente III (d. 1100) e Anacleto II (d. 1138).
Isso é crucial para entender a controvérsia em torno das afirmações feitas pelo Papa Francisco recentemente no seu voo de volta da África, sobre a possibilidade de um cisma na Igreja hoje.
O atual Código de Direito Canônico (1983) define o cisma como “a recusa da sujeição ao Sumo Pontífice ou da comunhão com os membros da Igreja que lhe estão sujeitos” (cân. 751).
Embora essa definição seja realmente um desenvolvimento tardio da longa história da Igreja, ele é extremamente relevante para o catolicismo romano hoje.
A noção teológica de cisma já era.
Há também um entendimento historiográfico do cisma. Ele é muito mais complicado, porque se preocupa com quando e como um cisma realmente ocorreu.
Durante grande parte da história da Igreja, o conceito de cisma tem sido inseparável da estrutura jurídica da Igreja – episcopado e papado.
O cisma implica a criação de uma estrutura eclesiástica paralela e/ou a situação de excomunhão mútua. Mas nem sempre é fácil determinar historicamente a diferença entre cisma e heresia.
As brechas cismáticas variaram em sua intensidade e em suas formas de expressão (por exemplo, o papel da dissidência litúrgica na criação ou na manifestação da divisão).
O que está claro é que a situação da divisão formal é avaliada em referência à permanência ou à saída da Igreja institucional e à obediência a suas lideranças clericais.
Alguns cismas – como os das províncias de Milão e de Aquileia, no século VI – foram curados pelo retorno à comunhão com Roma e sua hierarquia.
É importante notar aqui que a hierarquia não se referia apenas aos membros ordenados da Igreja. Ela também significava uma hierarquia política.
Essa é uma das razões pelas quais algumas tentativas de reunificação fracassaram, como os acordos para reunir o Oriente e o Ocidente nos Concílios de Lyon (1274) e de Florença (1439).
Durante centenas de anos após a integração da Igreja ao Império Romano no século IV, graças ao Imperador Constantino, as autoridades políticas leigas desempenharam um papel importante na imposição da unidade da Igreja e na emissão de penalidades para cismáticos e hereges.
Elas fizeram isso em um esforço para manter a estabilidade política, que poderia ser ameaçada pelas divisões da Igreja.
Portanto, devemos sempre considerar fatores sociais, políticos e econômicos ao tentar entender cada reivindicação de divisão na Igreja.
Também houve casos de cisma em comunidades monásticas. Por exemplo, a ordem de Cluny no século XII viu uma sucessão de abades e antiabades em seus mosteiros.
Mas, nos últimos 10 séculos, o cisma se identificou amplamente com a noção de “cisma papal” – a recusa em obedecer ao papa, que então leva ao surgimento de uma igreja paralela com seus próprios antipapas, pseudoconcílios e assim por diante.
Hoje, o cisma ainda é amplamente uma noção medieval, embora outras divisões tenham ocorrido na Igreja no início e durante o período moderno.
A separação entre o Oriente e o Ocidente no século XI e a Reforma no século XVI não podem ser adequadamente definidas como cismas a partir de um ponto de vista histórico-teológico.
Isso porque a definição de cisma se aplica a pequenos grupos que permanecem à margem da Igreja, grupos que não desenvolvem uma nova confissão e tradição.
Desde a Reforma, houve vários eventos cismáticos. Um deles foi o estabelecimento da Igreja de Utrecht no início do século XVIII, uma consequência da condenação papal do jansenismo.
Outro foi o aumento das Igrejas Vetero-Católicas no fim do século XIX, com base em uma rejeição das definições do Concílio Vaticano I (1870) sobre o papado. E, mais recentemente, houve o cisma do arcebispo Marcel Lefebvre e da sua Fraternidade Sacerdotal São Pio X (SSPX), nascido a partir de uma rejeição do Vaticano II.
Os cismas não são exclusivos do catolicismo. Muito pelo contrário!
As divisões dentro das Igrejas ortodoxas são ainda mais complicadas do que a noção de cisma no catolicismo romano (papal).
O cisma na Ortodoxia não é apenas uma história de jurisdições paralelas. Ele está ainda mais ligado a tensões geopolíticas, nacionais e imperiais, dada a relação diferente entre Igreja e nação, Estado ou império na Ortodoxia.
Um exemplo é a atual situação entre o Patriarcado Ecumênico de Constantinopla e o Patriarcado de Moscou.
O que essa história pode nos ensinar sobre a atual situação na Igreja Católica?
Primeiro: se a história da divisão dentro e entre as Igrejas é uma história das Igrejas imperiais e nacionais, hoje um entendimento moderno da unidade e da separação entre os cristãos não pode ignorar o impacto da mídia e das mídias sociais.
Na era digital, os cismas na Igreja não são como os cismas dos séculos XIV-XV. Em um ecossistema religioso cada vez mais influenciado pelo “virtual”, existem excomunhões que não são sacramentais, mas que, mesmo assim, podem ferir a unidade da comunidade cristã.
Segundo: o catolicismo deixou para trás sua servidão a impérios e ao nacionalismo (apesar do nacionalismo ressurgente de alguns católicos nos Estados Unidos), mas o elemento geopolítico ainda é profundo no corpo da Igreja.
A atual disrupção da globalização (por exemplo, pelo Brexit, por Trump) tem um impacto nas tensões entre os católicos, assim como nas tensões entre as Igrejas ortodoxas.
O elemento mais importante é eclesiológico. Continuamos enfrentando o risco de cisma no catolicismo do ponto de vista de que a Igreja é uma societas perfecta. Essa é uma eclesiologia baseada predominantemente em um entendimento legal da Igreja.
Mas os modelos eclesiológicos que vêm do Concílio Vaticano II (1962-1965) deixaram para trás a societas perfecta. Tanto a eclesiologia da comunhão quanto a eclesiologia do Povo de Deus se baseiam em um entendimento da unidade da Igreja que não é mais dominada pelo direito e jurisdição canônicos.
Esse é o mesmo Vaticano II que os lefebvrianos (SSPX) rejeitaram amplamente. Apesar da tentativa fracassada de Bento XVI e do Papa Francisco de reconciliá-los com Roma, o desafio da SSPX não é simplesmente um cisma papal.
É muito mais sério – a rejeição dos ensinamentos doutrinais e da tradição da Igreja Católica, desenvolvida em um Concílio geral e aprovada por todos os papas desde então.
O que é novo na nossa era, em comparação com o passado, é que o problema do cisma e da divisão na Igreja Católica surge em um sistema eclesiológico e eclesiástico em transição.
Ele está se movendo de um sistema papalista-monárquico medieval e moderno para um sistema em que o primado papal trabalha em conjunto com a colegialidade episcopal e a sinodalidade eclesial.
Isso significa que estamos usando os padrões errados, ou pelo menos incompletos, para mediar a comunhão na Igreja.
Confiar na noção canônica e papalista de cisma pode se tornar uma maneira fácil de nos tranquilizar.
Mas o direito canônico não diz o que significa ser membro de uma Igreja que está sob um único papa e uma única jurisdição, mas que também está profundamente dividido – nos bancos, nas escolas, nas ordens religiosas e na Igreja territorial, assim como na narrativa midiática.
O melhor ponto de vista para avaliar essa situação não é a posição dos teólogos e dos canonistas, mas dos católicos (por exemplo, imigrantes e minorias étnicas) que se encontram em uma situação específica dentro de uma Igreja local ou nacional.
Ninguém deveria esperar a emergência de outra estrutura paralela da Igreja em competição com a Santa Sé, como a SSPX sediada na Suíça, só que desta vez com sua sede nos Estados Unidos, Cazaquistão ou Alemanha.
Nem todas as fissuras na Igreja chegam ao nível de um cisma papal formal. No entanto, elas também devem nos fazer nos preocupar profundamente com o estado da nossa comunhão católica.
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Cisma: uma noção que mudou ao longo dos séculos. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU