28 Agosto 2019
"Ela mora numa região periférica de São Paulo. Trabalha num salão de beleza nos Jardins. Tem 40 anos e é evangélica", escreve Esther Solano, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madrid e professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em artigo publicado por CartaCapital, 24-08-2019.
Hoje eu quero falar de dona Maria. Dona Maria mora numa região periférica de São Paulo. Ela trabalha num salão de beleza nos Jardins. Dona Maria tem 40 anos. É evangélica, frequenta a Assembleia de Deus. Votou em Jair Bolsonaro, mas não é fascistoide, não é Kim Kataguiri, não é o “véio da Havan”, nem um dos monstros aborrecíveis que quebraram a placa de Marielle Franco no Rio de Janeiro.
Converso por mais de duas horas com dona Maria. Ao longo de minha pesquisa, já conversei com muitas donas Marias que votaram em Bolsonaro. Com um fascista não há diálogo possível. Diálogo pressupõe o reconhecimento da humanidade alheia, da dignidade do interlocutor. Portanto, dialogar com aquele que me considera um inimigo, que deseja me exterminar, que goza com o ódio contra mim, é absolutamente impossível.
Neste estágio de ódio não se dialoga, combate-se. Dona Maria não votou, porém, por ódio. Com as donas Marias que votaram em Bolsonaro eu consigo conversar, sobretudo consigo escutar, e no ato da escuta aparecem muitas questões sobre as quais deveríamos pensar atentamente se quisermos sair, com dignidade, como campo progressista, do buraco no qual estamos enfiados.
Dona Maria votou em Lula nas suas duas candidaturas vitoriosas. Diz que foi um grande presidente, na verdade o melhor que o Brasil teve. Diz que sua vida era melhor na época dele e diz que sentia orgulho quando ele falava, mas… E aqui tudo degringola. Lula é um grande corrupto, ele sabia de todos os esquemas do PT, ele traiu o povo trabalhador e caiu na corrupção. Sempre digo que não é sobre o triplex do Guarujá, não é sobre o sitio de Atibaia, é o PowerPoint de Dallagnol o que ganhou a grande batalha simbólica destes últimos anos: Lula no centro da corrupção. Pergunto a dona Maria o que acha da corrupção dos outros partidos. Ela responde sem pensar duas vezes: “Todos são corruptos, mas o PT traiu o povo”.
Para dona Maria, portanto, talvez não seja sobre corrupção, e sim sobre traição. Além disso, Dilma Rousseff, que, segundo dona Maria, foi uma governante muito ruim, é a grande culpada pela crise econômica que vivemos hoje, portanto, em 2018 não dava mais para votar no PT, ou ao menos “não nesse PT que está aí”. “Já passou a hora deles.”
Bolsonaro parecia alguém diferente, honesto, não era como todos os políticos com os quais dona Maria estava acostumada, “parecia que com ele as coisas iam mudar”. “Esperança” é uma palavra que as donas Marias que entrevisto repetem com frequência. É uma palavra que me estarrece até as vísceras. Como chegamos a um momento histórico tão sinistro, no qual Bolsonaro significou esperança para dona Maria? Além disso, Bolsonaro era um homem de Deus, de fé, de valores cristãos.
O cotidiano de dona Maria circula em torno das redes de sociabilidade da Assembleia de Deus no bairro onde mora. São redes de confiança, de trabalho (o filho dela conseguiu uma indicação de emprego por um irmão da igreja), de cuidado (a filha deixa o neto numa creche informal que as irmãs da igreja organizam). Na vida de dona Maria, o Estado é nada, a “esquerda” é nada, a igreja é tudo, portanto, votar num homem de Deus fazia todo o sentido.
Mas dona Maria é firme, “não deveria ter votado nele”. Ela não acredita mais que Bolsonaro seja um homem de Deus, porque “diz barbaridades, parece um louco e não tem respeito por nada”. Além disso, ela está muito preocupada com a reforma da Previdência e agora mais preocupada ainda porque pensa que o dono do salão vai obrigá-la a trabalhar todos os domingos. “Eu não sabia que ele iria fazer isso, é contra o povo.” Se tivesse sabido, diz dona Maria, não teria votado nele. Ela me conta também que entre os irmãos e irmãs da igreja tem vários que estão arrependidos de terem votado em Bolsonaro, mas… E aqui de novo tudo degringola.
Pergunto a dona Maria se numa próxima eleição votaria no PT ou em outro partido que represente melhor os interesses do trabalhador. Ela insiste: “Não, no PT não dá mais”. Então, dona Maria, em quem a senhora pensa que poderia votar nas próximas eleições? “Ah, se o Luciano Huck for candidato, eu voto nele, tem cara de bom moço, sempre assisto ao programa dele. Parece que se preocupa com a gente e o melhor de tudo é que ele não é político. Votava nele, sim.”
Dona Maria falou, e bem alto, para quem quiser escutar.
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Dona Maria: ela votou em Bolsonaro, idolatra Lula e sonha com Huck - Instituto Humanitas Unisinos - IHU