26 Julho 2019
Considerada uma das vozes mais relevantes do povo Kichwa de Sarayaku, Patrícia Gualinga tornou-se referência internacional por defender a Amazônia equatoriana e seus povos, uma terra onde a fronteira extrativista continua avançando, sem respeitar as leis e com o apoio do governo equatoriano, que “se concentrou maciçamente na promoção de atividades extrativistas dentro dos territórios dos povos indígenas”, como ela reconhece.
A entrevista é de Luis Miguel Modino.
A líder indígena destaca a importância do Papa Francisco, que levou a Igreja a voltar seus olhos para os povos originários. Nesse sentido, Patrícia Gualinga assinala que “o povo pede um maior acompanhamento, a Igreja amiga, a Igreja com rosto de irmão que acompanha os processos onde se cometem injustiças”, algo que pode ser fortalecido com o Sínodo para a Amazônia, que é visto como uma oportunidade para "a Igreja se comprometer mais a estar do lado do povo", especialmente os povos indígenas, que "se tornaram objetos da ambição da economia global extrativista".
Ela afirma que “a contribuição fundamental que os povos indígenas têm a dar à humanidade é uma nova forma de relação com a natureza”, baseada no respeito, algo que ela vê como “essencial, porque senão o mundo se desconectou de tal maneira da natureza que estamos cavando nossa própria destruição”. Neste campo, destaca-se o papel da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM, que “realizou um trabalho de extrema importância e teve a sabedoria de saber relacionar a parte religiosa, católica e bíblica ao conhecimento dos povos indígenas, com a conservação da natureza”.
Patricia Gualinga lança uma mensagem aos padres sinodais, aos quais ela diz "não tenham medo da transformação", insistindo que "confiem em Deus", e "aceitem as mudanças que podem enriquecer a Igreja Católica, que há muitos anos precisava de uma transformação profunda”.
Patrícia (Foto: Luis Miguel Modino)
Qual é a situação atual dos povos indígenas na Amazônia equatoriana em relação à exploração dos recursos, muitas vezes incentivada pelo próprio governo?
A situação continua sendo o avanço da fronteira extrativista, as concessões em territórios indígenas, a tentativa de explorar áreas imensamente ricas em biodiversidade, onde são as nascentes dos olhos da água, como o chamado bloco 28, que fica na região da Cordilheira dos Llanganates, onde nascem todas as águas que vão para o Amazonas, como o Pastaza, Bobonaza e outros rios que vão abastecem os rios que são afluentes do Amazonas.
Há uma preocupação extrema com a violação da consulta prévia, livre e informada, sobre as tentativas de construir usinas hidrelétricas. O governo equatoriano concentrou-se maciçamente na promoção de atividades extrativistas dentro dos territórios dos povos indígenas.
O Papa Francisco, em 2017, no Terceiro Fórum Mundial dos Povos Indígenas, insistiu na necessidade de conciliar o direito ao desenvolvimento com a proteção dos povos indígenas e seus territórios e que o direito ao consentimento prévio e informado prevaleça, um ideia também presente nas resoluções das Nações Unidas. Por que isso não é levado em conta, por que não se respeitam essas leis?
Porque os governos tentam fazer prevalecer as leis menores, os decretos ministeriais ou presidenciais prevalecem, e eles não estão respeitando a Constituição, porque a Constituição é muito clara. Há falhas internacionais como Sarayaku, que segue padrões internacionais durante todo o processo de consulta prévia e informada e que deve haver consentimento quando se trata de atividades de grande escala que afetam os povos indígenas. É o governo quem realmente desrespeita a lei, a Constituição e o direito internacional. Embora o papa Francisco tenha frequentemente chamado ao respeito pelos direitos dos povos indígenas e da Amazônia, os governos estão se fazendo de surdos para tentar cumprir essa lei e com esses apelos.
Até mesmo o cardeal Barreto, em um artigo publicado na semana passada na Revista la Civiltá Cattólica, disse que os países de onde vêm as empresas que saqueiam a Amazônia devem ser responsáveis pelas consequências das atividades dessas empresas. Como as organizações indígenas estão pressionando ou podem pressionar os organismos internacionais a esse respeito?
É verdade, as grandes empresas são tão organizadas que seus interesses não são afetados, que geralmente se acontecem julgamentos estão em cada país, eles estão em diferentes lados e é difícil chegar à sede das empresas. Já vivemos isso com o caso da Chevron no Equador. Mas também incluem artigos que, se a resistência dos povos indígenas significa que os estados não cumprem o dever de garantir a empresa, não estamos falando de garantias do Equador, mas garantindo que a empresa cumpra com a extração, eles cobram uma compensação milionária e vão embora. E se eles não concordarem com isso, eles os levarão à arbitragem internacional.
Existe uma organização tão altamente elaborada por empresas em que a sociedade civil e os povos indígenas não possuem esquemas que realmente protejam os direitos humanos. Embora os direitos humanos sejam protegidos dentro de organizações como a OEA (Organização dos Estados Americanos) ou a Corte Interamericana, aqueles que são julgados são os mesmos estados e não as empresas. Deveria haver uma instância que julgue violações de empresas extrativas, mesmo que extraterritorial, e nesse contexto eu acredito que não houve progresso. Houve queixas dentro das Nações Unidas sobre a questão da responsabilidade corporativa, mas são queixas que não são tão vinculativas dentro dos esquemas corporativos. Acredito que não atingimos o nível de formação daqueles espaços onde as empresas têm que responder por violações extraterritoriais que estão ocorrendo, seja na Amazônia ou em diferentes lados, onde sua responsabilidade é extremamente séria.
Até que ponto vocês, como povos indígenas, estão se sentindo apoiados pela Igreja Católica? Você falou sobre o caso Sarayaku e recentemente foi realizado um julgamento em que o governo equatoriano foi condenado, onde alguns religiosos, padres, bispos estavam presentes, vocês realmente sente o apoio da Igreja?
O caso Sarayaku foi julgado em 2012 na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José, na Costa Rica, e no processo, se houve sacerdotes muito parceiros, mas a Igreja não tinha um papa como o que temos agora. Neste último caso, que é o dos Waoranis, que ganharam uma ação de proteção em um tribunal local, lá o bispo de Puyo esteve presente, a Igreja também tem feito companhia. Acredito que o impulso que o Papa Francisco tem dado, fez com que certos religiosos, missões e bispos, também estejam cientes dos processos que estão sendo realizados.
Eu acho que é um momento em que a Igreja sente uma mudança. Antes a Igreja era apenas para religião, fé, e falava apenas dos púlpitos. Acredito que as pessoas estão pedindo maior acompanhamento, a Igreja amiga, a Igreja com o rosto de um irmão que acompanha os processos onde as injustiças estão sendo cometidas, e acho que é o começo dessa transformação, de começar a pegar um fio para começar a avançar sob este guarda-chuva que abre com o Sínodo, que abre com a encíclica e que se abre com tudo o que está acontecendo. Vemos muito positivamente essa ação da Igreja que é muito nova, também para os povos indígenas.
Você acabou de falar sobre o Sínodo para a Amazônia, do seu ponto de vista, como uma líder indígena, o que você espera deste Sínodo para os povos da Amazônia?
Como sou leiga, não sou religiosa, o que espero é que a Igreja se comprometa mais a estar ao lado do povo, a ver aquele rosto amigo, não aquele que ordena, mas aquele que entende e escuta, aquele rosto amigo, de familiaridade que acompanha na dor sentida por este povo, que esteja muito mais próxima e não distante. Espero um compromisso da Igreja institucionalmente. O cardeal Barreto diz que somos Igreja, e é verdade que somos Igreja, mas falo da instituição da Igreja, para fazer esse acompanhamento, que se envolva, que apoie uma causa justa. Que não só permaneça na Igreja como a Casa de Deus, mas que a Casa de Deus seja estendida muito mais fora da catedral, das igrejas como estrutura de tijolos, mas que ela vá muito além, que caminhe ao lado do povo, que converse com o povo, que denuncie as coisas que estão acontecendo, que seja amiga e irmã do povo.
Nesse sentido, a vulnerabilidade da região amazônica é uma constante há séculos. O Sínodo, por meio do Instrumento de Trabalho, insiste em como enfrentar a vulnerabilidade que os povos indígenas sofrem. Quais você acha que são os principais desafios, as principais ameaças que os povos indígenas sofrem hoje na Amazônia equatoriana?
Eles sofrem a ameaça das indústrias, no nosso caso a maioria das violações dos direitos humanos é porque as indústrias querem entrar. Isso implica que as estradas são abertas, o que implica desmatamento, exploração madeireira, colonização e que todos os vícios entram. A questão da estrada implica militarização quando há resistência dos povos indígenas em respeitar seus direitos. Além disso, há as concessões de blocos de petróleo, garimpeiros, que estão em territórios indígenas. A maioria das violações que dizem respeito aos territórios indígenas se referem à ambição dos recursos não renováveis que estão em nossos territórios e, ultimamente, também às ambições do conhecimento dos povos indígenas.
Os povos indígenas tornaram-se objetos da ambição da economia global extrativista, que não se importa com os direitos humanos, que não se importa com a natureza, que não se importa com os ecossistemas ou com a humanidade, a fim de alcançar seu objetivo de extrair recursos e gerar riqueza para certos grupos, esse é o maior problema que estamos enfrentando na Amazônia.
O Papa Francisco na Laudato Se fala do cuidado da Casa Comum. No artigo a que nos referimos o cardeal Pedro Barreto, ele disse que para os povos indígenas a terra não é um bem econômico, mas um dom de Deus e os ancestrais que nela descansam e que os povos indígenas podem ensinar ao resto da humanidade como cuidar dessa Casa Comum. Nesse sentido, qual seria o ensinamento fundamental que os povos indígenas têm para comunicar ao mundo sobre o cuidado de Casa Comum, sobre o cuidado da criação?
É verdade que os povos indígenas viveram por milhares de anos em acordo e harmonia com a natureza, usamos o que a natureza nos dá para comer, viver e não a destruímos. A contribuição fundamental que os povos indígenas têm a dar à humanidade é uma nova forma de relacionamento com a natureza, essa forma de relacionamento respeitoso, uma visão profunda que faz a natureza ser considerada um ser vivo, sempre sujeito de direito. Não como algo que deve ser usado e descartado, mas é parte de nós mesmos.
Nós, como povo Sarayaku, esta proposta que faz esta visão profunda de relação com a natureza, de uma nova forma de relação que deve prevalecer, que deve ser promovida para a humanidade, nós a nomeamos como a selva viva, Kausay Saya, que está tentando ensinar ao mundo uma nova forma de relacionamento, e que os ecossistemas que estão conectados através da Terra não devem ser destruídos, manter o equilíbrio do planeta, e a Amazônia é uma deles. Há uma lenda que diz que todo conhecimento da natureza, dos ecossistemas, dos usos das plantas, de toda a visão, foi ensinado pelos santos da natureza. Esse conhecimento foi deixado na Amazônia, no mundo indígena, agora é tempo de que esse profundo conhecimento também seja compartilhado para essa sociedade, para esse mundo que está perdido. Eu acho que é essencial, porque se não o mundo se desconectou tanto da natureza que estamos cavando nossa própria destruição.
Como convencer de tudo isso, em face do Sínodo para a Amazônia, aos bispos, àqueles que participarão da assembleia sinodal, para que no documento final esses aspectos possam ser recolhidos e que o mundo possa se tornar mais consciente da importância dessa atitude?
Acredito que as coisas são muito claras na Bíblia, a Bíblia o expressa de tal forma que é muito bom ler realmente a Palavra em sua totalidade, é um livro muito sábio, mesmo para os seguidores de Cristo é como a base fundamental, de acordo com o meu critério. Cristo falou com a natureza, se relacionava com a natureza, falou com o vento, com o ar, com o mar. Foi um relacionamento muito profundo, não foi um relacionamento estranho, esse dom permaneceu nos povos indígenas e, portanto, a Igreja tem que reconhecer essa parte e protegê-la também. Nós temos São Francisco de Assis, também nisso, que falou com a natureza, nós temos elementos suficientes dentro do contexto bíblico que os bispos não podem se opor. Não estamos falando de algo que é estranho às escrituras bíblicas para os católicos, estamos falando de algo que incorpora a Bíblia e não foi interpretado dessa maneira.
Você tem uma relação próxima com a Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM, que foi criada em 2014 e está desempenhando um papel importante no processo do Sínodo para a Amazônia. Você foi convidada em algum momento para participar de fóruns internacionais, eventos relacionados a esse assunto. Qual você acha que é a importância da REPAM para a Igreja da Amazônia, para os povos indígenas, para a região?
Sou colaboradora da REPAM e participei de alguns espaços que eles me convidaram. Acredito que o fato de terem valorizado a Amazônia e terem colocado a REPAM como espaço para promover isso é uma das coisas mais importantes. O fato de o Papa ter chamado o Sínodo e a REPAM também fazer parte dessa organização, demonstra que, pelo menos da parte da cabeça da Igreja, a importância está sendo dada à Amazônia, aos povos indígenas e à natureza. É por isso que me parece que a REPAM, com o cardeal Hummes, o cardeal Barreto e Mauricio López na secretaria, e toda a equipe que faz a REPAM no nível dos países amazônicos, fez um trabalho extremamente importante e teve a sabedoria de saber relacionar a parte religiosa, católica, bíblica com o conhecimento dos povos indígenas, com a conservação da natureza.
Isso é difícil de alcançar, em um contexto em que tanto o conhecimento indígena quanto o conhecimento da religião católica, de alguma forma, ao longo da história, sempre foram divididos. Conseguir, de alguma forma, colocá-los juntos, tentar explicá-los, parece-me ser uma tarefa fundamental em um contexto como o que estamos vivendo.
O Papa Francisco insiste fortemente na necessidade de fazer realidade uma Igreja com rosto amazônico e indígena. Você que conhece um pouco da realidade da Igreja e das cosmovisões e espiritualidades indígenas, acha que isso é possível? Qual seria o caminho a seguir nesse sentido?
Acredito que seja possível e, de alguma forma, os amazônidas o incorporaram à sua maneira. Eu acho que haverá certas surpresas, haverá algumas mudanças, mas não para os outros, porque elas sempre assimilaram isso. Para mim, a resistência não está nos povos da Amazônia, para mim a resistência é que o dogma, a estrutura da Igreja Católica, sua crença que tem que ser abalada de alguma forma, é a parte que se espera que seja assumida. Porque os religiosos podem dizer, bem, tudo bem, mas não é uma questão de tradução da fé católica na Amazônia, é uma questão de experiência, de compreensão, de unidade.
Não sei se realmente os religiosos atuais estão realmente dispostos a assumir este novo desafio, que é um desafio que provoca profundas mudanças, também no seu modo de ser, pensar e liderar a Igreja Católica. Para mim, dentro do contexto dos povos indígenas pode haver mais abertura, porque eles esperavam isso ou pelo menos eles estavam olhando para isso, mas dentro dos bispos, dos religiosos, que têm uma maneira pragmática de ver, que querem exercer autoridade de acima, a mudança vai demorar um pouco. Espero que eles aceitem e possam promover o que realmente está sendo promovido no Sínodo.
O Sínodo provocou reações contrárias em diferentes espaços, inclusive eclesiais. Este confronto com os postulados do Sínodo, você acha que eles vêm dos mesmos grupos, instituições, que tradicionalmente confrontaram o modo de entender a vida dos povos indígenas?
Acho que sim, a ideia de que os povos indígenas tinham que ser evangelizados, que eles tinham que ser civilizados, não mudou nas profundezas de algumas religiões. Houve alguns missionários comprometidos, que entenderam perfeitamente bem. Eu vi o bispo do Xingu, que me fascinou, e incorporou o jeito de lá. Mas há outros que estão se opondo, e acredito que o medo de chegar e ter um certo controle faz com que eles tenham essa reação.
Continuam a pensar que têm que nos converter e não começaram a ver que Deus está em toda parte, que Deus é tão grande que ele foi inculturado em diferentes espaços e que nos povos indígenas Ele está com uma forte presença. Eu acho que eles têm que abrir essa mente e tentar entender os desígnios de Deus. E se eles não o fizerem, e eles apenas se concentrarem em todo o esquema deles, bem, na verdade não vai fazer muito progresso e haverá resistência das duas partes. Isso não é o que se procurado, espero que eles reajam rapidamente, porque a Igreja precisa reagir, precisa ser povo também, precisa fazer parte, precisa ser amiga, que lhe daria maior riqueza e um crescimento espiritual, tanto na parte que se aproxima da Igreja como na mesma Igreja.
Se você tivesse a oportunidade de falar com os Padres Sinodais, o que diria a eles?
Não tenham medo de transformação. Eu diria a eles que confiem em Deus, eu lhes diria que tivessem fé e que Deus vai fazer o que ele tem que fazer, que aceitem as mudanças que podem enriquecer a Igreja Católica, que faz muitos anos precisa de uma profunda transformação. Talvez eu lhe contasse muitas outras coisas, mas é nisso que posso pensar agora.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“A contribuição fundamental dos povos indígenas para a humanidade é uma nova forma de relacionamento com a natureza”, entrevista com Patrícia Gualinga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU