15 Julho 2019
“Talvez o mais instrutivo dos pecados capitais da revolução nicaraguense, agora visto como um fenômeno já distante, seja a concepção do poder político para sempre nas mãos de um partido, que inevitavelmente termina no poder de uma pessoa ou de uma família”, escreve Sérgio Ramírez, escritor premiado e protagonista da revolução nicaraguense, quando encabeçou o Grupo dos Doze, formado por intelectuais, empresários, sacerdotes e dirigentes que apoiaram a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), em artigo publicado por La Jornada, 12-07-2019. A tradução é do Cepat.
O triunfo da revolução nicaraguense em 1979, há quarenta anos, foi fruto do heroísmo de milhares de jovens combatentes que conseguiram derrotar o exército pretoriano de Somoza, mas foi também, em uma medida transcendental, uma habilidosa e brilhante operação política que mobilizou a população, despojou de medos a classe média, adiou as apreensões dos empresários, e alcançou um sólido apoio internacional e uma interlocução com o governo dos Estados Unidos.
Uma transição ordenada foi negociada com o governo Carter, o que implicava a saída de Anastasio Somoza para o exterior com sua família e amigos e a formação de um comando militar conjunto entre oficiais da Guarda Nacional e comandantes guerrilheiros. Não resultou assim no final, porque o vice-presidente Francisco Urcuyo, que só deveria entregar o comando à Junta de Governo organizada no exílio, não reconheceu o acordo, e isso precipitou o avanço das forças insurgentes da FSLN e o desmoronamento do exército.
Os jovens em armas e as pessoas que os apoiavam, arriscando também a vida, entendiam pouco de artifícios ideológicos e sua urgência era derrubar uma ditadura opressora e corrupta. E lá embaixo começaram a reunir forças, antes que fosse assinado um acordo de unidade entre as três tendências em que a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) estava dividida.
Mas, existem pecados capitais que definem a história de um processo revolucionário e definem, em última análise, a própria história. Um grande pecado dos líderes da revolução nicaraguense consistiu em pôr a ideologia acima das possibilidades da realidade. O socialismo, como ideia redentora, desprezava a realidade, e isso acabou se impondo.
As concepções leninistas sobre o poder não pararam de flutuar por cima, no estrato da vanguarda, encarnada nos nove comandantes, donos do papel de conduzir uma revolução que, ao contrário de qualquer molde, havia ocorrido com novidade e imaginação.
Desde o primeiro momento, no processo revolucionário coexistiram dois planos: as intenções de criar, a longo prazo, um Estado socialista sob a orientação de um partido único ou pelo menos hegemônico, e a proclamação do pluralismo político, economia mista e não alinhado internacionalmente.
Antes de um ano, a unidade de diversas forças políticas que tornaram possível a derrubada da ditadura ficou em pedacinhos. Muito cedo, o FSLN decidiu que a responsabilidade de governar era exclusivamente sua, e esse foi outro pecado capital. Não apenas afastou seus aliados, mas os estorvou e impediu de formar e consolidar partidos de oposição. Quando foram convocadas as eleições de 1984, já em auge a guerra dos ‘contras’, quis atraí-los novamente, mas o governo Reagan os impediu de participar como parte da estratégia de cerco e enfraquecimento que já estava em andamento.
Em termos estratégicos, a revolução se amparou no campo soviético e em Cuba para apoio militar e para suprimentos básicos que incluíam petróleo. Enquanto do outro lado prevaleceu o embargo comercial dos Estados Unidos junto com uma decidida política de isolamento que, aos olhos do mundo, situava Davi frente a Golias.
A única possibilidade de redimir os pobres era criando riqueza, mas a estatização de setores-chave da propriedade, começando pelo agrário, e os controles do comércio exterior e interior resultaram em fracasso, e a guerra chegou a atrapalhar as iniciativas de transformação social que eram a razão de ser da revolução.
A empresa privada sobrevivia algemada, sem iniciativas, nem confiança, sujeita a expropriações arbitrárias, e depois também passou pelo funil do desastre que representou a falta de divisas para os insumos básicos, a inflação e o desabastecimento.
Ninguém na liderança sandinista imaginou Mikhail Gorbachev substituindo os velhos gagás do Kremlin, nem que anos depois desembarcaria o chanceler Eduard Shevardnadze, em Manágua, com a notificação de que era necessário se entender com os Estados Unidos para que a guerra dos “contras” terminasse. É o que tinha sido acordado entre Washington e Moscou. Tampouco foi previsível o desaparecimento da União Soviética, nem a queda do Muro de Berlim.
Quando se impôs a necessidade de acordos de paz com os “contras”, que também tinham ficado sem o respaldo do Congresso dos Estados Unidos, vieram, como consequência, as eleições de 1990, que o sandinismo perdeu. O projeto hegemônico entrou em colapso e as concepções ideológicas aceleraram rapidamente a ferrugem.
A revolução acabou, então, mediante um grande paradoxo: por via de eleições que eram o símbolo da democracia representativa, que a teoria marxista rejeitava por ser opostas à democracia popular.
Talvez o mais instrutivo dos pecados capitais da revolução, agora visto como um fenômeno já distante, seja a concepção do poder político para sempre nas mãos de um partido, que inevitavelmente termina no poder de uma pessoa ou de uma família.
Sempre acontece que o sonho da razão produz monstros.
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Nicarágua. O sonho da razão. Artigo de Sergio Ramírez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU