O trabalho de adolescentes não é crime, o que o torna um crime é a exploração desses jovens e crianças como mão de obra barata. “É errôneo pensarmos que no Brasil o adolescente não pode trabalhar. Na verdade, temos uma legislação que diz que o jovem pode trabalhar a partir dos 14 anos até os 24 anos, desde que ele esteja em uma situação de aprendizagem. Isso exige combinação entre frequência escolar e participação em instituição de formação profissionalizante”, esclarece a cientista social Ana Paula Galdeano. Para ela, essa exploração se dá em diferentes setores, desde fábricas até em lavouras e outras atividades.
Nesse contexto, o tráfico de entorpecentes acaba se configurando como mais uma das atividades que utilizam mão de obra de jovens e adolescentes e, por óbvio, com o agravante de ser uma atividade ilícita e de alto risco. “O trabalho infantil, no tráfico de drogas, impõe ao adolescente ou à criança uma carga de trabalho bastante extensa. Esses adolescentes trabalham de seis até doze horas por dia”, pontua Ana Paula. E acrescenta: “Trata-se de um trabalho perigoso, porque o adolescente fica exposto às relações com policiais, com o dono da ‘biqueira’ [ponto de venda da droga] e também com os clientes”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Ana Paula detalha a pesquisa que buscou conhecer a realidade dessas crianças e adolescentes recrutadas pelo tráfico de drogas na cidade de São Paulo. “Essas crianças dizem que elas ‘trampam’ na ‘biqueira’, o que mostra que elas compreendem essa atividade como um trabalho”, revela. A pesquisadora reconhece essa como uma atividade ilícita e que expõe esses jovens a altos riscos. Entretanto, chama a atenção de como o tráfico segue lógicas correntes de precarização do trabalho em atividades lícitas do mundo contemporâneo. “Por exemplo, os adolescentes recebem por comissões, como é típico de vários trabalhos no mercado formal. O trabalho dele é flexível, assim, o adolescente que vende drogas na cidade de São Paulo pode flexibilizar seu trabalho, chamar outro adolescente para trabalhar com ele e os dois dividem a comissão”, aponta.
A pesquisadora ainda fala da realidade desses jovens, das situações de violação de seus direitos e marginalização de suas famílias. “Os adolescentes dizem que este é um trabalho que possibilita autonomia, que rende muito mais do ponto de vista financeiro do que os trabalhos subalternos, que seus pais em geral praticam”, aponta, ao lembrar que muitas das mães dessas crianças trabalham com reciclagem ou serviços domésticos extremamente precarizados. O resultado é que muitas famílias acabam acolhendo esse “trampo”, embora a preocupação com esses jovens seja algo constante. “Nunca é fácil para uma mãe saber que seu filho está envolvido com o tráfico de drogas, por mais precária que seja a condição da mãe. Mesmo que eventualmente ela aceite o dinheiro do adolescente para pagar suas necessidades diárias, sempre é muito preocupante”, destaca.
Ana Paula (Foto: Arquivo Pessoal)
Ana Paula Galdeano Cruz é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento - Cebrap. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo - USP, mestrado em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutorado em Ciências Sociais pela mesma instituição. Realizou estágio doutoral na University of California Berkeley (UC Berkeley) e pós-doutoral em Sociologia Urbana no Centro de Estudos da Metrópole - CEM/Cebrap. É coordenadora e autora das publicações Tráfico de drogas entre as piores formas de trabalho infantil: mercados, famílias e rede de proteção social (São Paulo: Cebrap, 2018) e Crianças e Adolescentes com familiares encarcerados: levantamento de impactos sociais, econômicos e afetivos (São Paulo: Cebrap, 2018).
IHU On-Line — Você tem dito que o tráfico de drogas é a pior forma de trabalho infantil. Pode nos explicar essa ideia?
Ana Paula Galdeano — Na verdade não sou eu quem diz que o tráfico de drogas é a pior forma de trabalho infantil. O Brasil assinou o decreto 6.481/2008 instituindo a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, conhecida como Lista TIP. Esse decreto regulamenta a convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho - OIT e abre com uma citação da convenção, que diz que o tráfico de drogas é uma das piores formas de trabalho infantil, assim como a prostituição e o trabalho por dívida.
No Brasil temos duas legislações — uma ambiguidade jurídica. Temos o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, que é o mais aplicado, que diz que se o adolescente for pego produzindo ou vendendo substâncias ilícitas, vai receber como sanção uma das medidas socioeducativas que temos, que variam da internação até a liberdade assistida, passando pela prestação de serviços à comunidade e outras formas punitivas e educativas. Pelo ECA, o autor de ato infracional comete um crime análogo ao tráfico de drogas, que está tipificado na política nacional de drogas.
Por outro lado, nós temos outra legislação, que é o decreto 6.481/2008, o qual acabei de citar. Se partirmos para esse decreto, vamos ter que assumir que esse adolescente está inserido em uma das piores formas de trabalho infantil.
IHU On-Line — Você pode nos dar um panorama acerca da sua pesquisa sobre o tema? Em que regiões de São Paulo a pesquisa tem sido desenvolvida?
Ana Paula Galdeano — Essa pesquisa foi coordenada por mim e produzida por um coletivo de pesquisadores filiados ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento - Cebrap, mais especificamente o núcleo de Etnografias Urbanas. Nós partimos desta ambiguidade jurídica: se o tráfico de drogas é uma das piores formas de trabalho infantil, no que consiste este trabalho? Quanto ganham esses adolescentes? Quantas horas por dia eles trabalham? Quais são os perigos a que eles estão expostos? Até porque na Lista TIP há mais de 90 tipos de trabalho infantil em que o legislador vai especificar os riscos desses tipos de trabalho à saúde do adolescente.
Então, nós partimos dessa problemática e fizemos uma pesquisa qualitativa, quantitativa e também por geoprocessamento em regiões distintas da cidade de São Paulo: região Central, na área da Sé, a região Norte, na Vila Medeiros, e na região da Zona Leste, no Distrito de Sapopemba.
IHU On-Line — Sobre essa ambiguidade jurídica no tratamento de crianças e adolescentes que são pegos pela polícia vendendo drogas: podes detalhar essa perspectiva?
Ana Paula Galdeano — Talvez valha especificar melhor no que consiste o trabalho infantil no tráfico de drogas. Em primeiro lugar, trabalho infantil, no tráfico de drogas, impõe ao adolescente ou à criança uma carga de trabalho bastante extensa. Esses adolescentes trabalham de seis até doze horas por dia. Trata-se de um trabalho perigoso, porque o adolescente fica exposto às relações com policiais, com o dono da “biqueira” [ponto de venda da droga] e também com os clientes. Portanto, existe uma exposição do adolescente a um trabalho perigoso, muitas vezes noturno.
São adolescentes extremamente inteligentes, que precisam fazer fechamento de caixa diariamente. Se falta algum valor no fechamento de caixa, ele precisa responder ao dono da “biqueira”. Portanto, também está exposto a uma série de cobranças. O adolescente que faz essa extensa carga horária de trabalho não consegue frequentar a escola. Então, o trabalho infantil se caracteriza, muitas vezes, pelo distanciamento que o adolescente trabalhador vai tendo em relação aos direitos. O adolescente e a criança têm direito a estudar, têm direito à saúde, à cultura, ao lazer e ao esporte, mas o adolescente que trabalha no tráfico de drogas não consegue ter seus direitos garantidos.
Além disso, esses adolescentes são expostos a um tipo de trabalho altamente perigoso, que pode envolver violência física, riscos que podem levar até a morte em alguns casos e exposição à arma de fogo, dependendo do contexto em que atua. O trabalho no tráfico de drogas tem especificidades que precisamos compreender.
IHU On-Line — As crianças e adolescentes com os quais você teve contato para a sua pesquisa se identificam como trabalhadores do tráfico? O que eles relatam sobre esse trabalho?
Ana Paula Galdeano — Essas crianças dizem que elas “trampam” na “biqueira”, o que mostra que elas compreendem essa atividade como um trabalho. É interessante percebermos que a própria organização do trabalho no tráfico guarda semelhanças com as características da flexibilização do trabalho no mundo contemporâneo. Por exemplo, os adolescentes recebem por comissões, como é típico de vários trabalhos no mercado formal. O trabalho dele é flexível, assim, o adolescente que vende drogas na cidade de São Paulo pode flexibilizar seu trabalho, chamar outro adolescente para trabalhar com ele e os dois dividem a comissão. O próprio nome desse local, que geralmente é chamado de “boca de fumo” ou “biqueira”, é muitas vezes denominado por esses adolescentes como lojinhas, o que traz, com muita clareza, a ideia de que se trata de um comércio.
Os adolescentes dizem que este é um trabalho que possibilita autonomia, que rende muito mais do ponto de vista financeiro do que os trabalhos subalternos, que seus pais em geral praticam. Algumas das mães desses adolescentes catam latas, se dedicam ao trabalho com recicláveis, algumas são faxineiras ou empregadas domésticas, que, mesmo trabalhando na mesma casa três vezes por semana, não têm carteira assinada, conforme preconiza a legislação. Então, esses adolescentes se recusam a seguir essa trajetória geracional de trabalhos subalternos. E o trabalho no tráfico possibilita autonomia na medida em que permite, muitas vezes, subir na carreira, o que os trabalhos subalternos, que em geral estão disponíveis a eles, não permitem.
Eles narram também uma série de riscos envolvidos na ocupação do varejo de drogas. Por exemplo, existem pelos menos três situações que identificamos de riscos e perigos. A primeira é chamada pelos meninos de “resgate”, que é o sequestro de adolescentes por parte da polícia para pressionar o dono da “biqueira” para pagar o “acerto”. Pelo menos na cidade de São Paulo, não existem “biqueiras” funcionando sem o conhecimento da polícia e alguns policiais pedem suborno aos donos dessas “biqueiras”. Nem sempre há um acordo a respeito do valor a ser pago e, quando não há acordo, esses adolescentes ficam com seus corpos expostos e servem como moeda de troca para que se chegue a um valor para esse pagamento. Os adolescentes — seus corpos — servem como resgate nessas intermediações econômicas entre o policial e o dono da “biqueira”.
Outro risco pode ser sintetizado em uma frase dita por eles: “quando o menino dá moleza na vigia das mercadorias, eles levam ‘pisa’”, ou seja, eles apanham. O adolescente tem que estar atento, ele está ali para olhar e fazer o comércio, levando em conta a segurança da mercadoria. Então, quando a polícia apreende as mercadorias porque o adolescente não estava atento no seu posto de trabalho, ele é responsabilizado por essa perda, por essa desatenção. Nesse caso, é ameaçado, sofre pressão psicológica, situação vexatória e violência física.
E existe um terceiro risco, que eles chamam de “emboscada”, que tem a ver com as operações policiais frequentes que visam à apreensão de drogas e prisões. Nesse momento, o adolescente também pode sofrer violência física no confronto com a polícia nos momentos de fuga, risco de morte e medidas socioeducativas, que podem ser a internação ou em meio aberto.
Essas três situações — “resgate”, “quando deu moleza leva pisa” e a “emboscada” — são situações de risco envolvidas na ocupação do varejo de drogas. Quando lemos a legislação e a lista TIP, percebemos que a legislação abre com a citação da Convenção 182 da OIT dizendo que o tráfico de drogas é uma das piores formas de trabalho infantil. Percebemos, ainda, que o legislador teve muita dificuldade de colocar esse tipo de performance de trabalho infantil no quadro — são vários quadros, entre eles, tipos de atividades, situações de trabalho infantil das mais diversas –, mas ele não consegue descrever os riscos que essa atividade traz à saúde do adolescente. Isso é o que tentamos fazer em nosso trabalho.
IHU On-Line — Por quais razões, na sua avaliação, crianças e adolescentes procuram trabalho junto ao tráfico de drogas?
Ana Paula Galdeano — Estamos falando aqui de crianças e adolescentes pobres, que trabalham nas “biqueiras” e que vivem nas periferias urbanas das cidades e das grandes capitais do Brasil, em geral nas grandes periferias urbanas. Não é que os jovens de classe média não pratiquem o tráfico de drogas, mas esses jovens não trabalham nas “biqueiras”. É diferente da criança ou do adolescente da periferia, porque ela trabalha — essa é outra dimensão do trabalho — praticamente onde mora. Isso facilita toda forma de coerção, tanto do policial quanto do dono da “biqueira”. Nossa pesquisa na área de geoprocessamento mostra que os adolescentes são pegos muito próximo aos seus locais de moradia.
O trabalho nas “biqueiras” é um trabalho que está disponível para essas crianças e adolescentes, que não querem reproduzir o modelo geracional dos seus pais em trabalhos que não envolvem criatividade, nem uma possibilidade de subir na carreira. Além disso, as famílias dessas crianças e adolescentes estão à margem da sociedade salarial, ganham muito pouco. Também são famílias que — conversando com os adolescentes percebemos isso muito claramente —, em muitos casos, têm adultos no sistema prisional. Aliás, esse é outro elemento: das 14 crianças e adolescentes que entrevistamos, 11 têm familiares que passaram pelo sistema penitenciário. Ou seja, as periferias urbanas são locais onde essa questão das prisões transborda na vida das pessoas, pois todos têm um parente que foi preso ou um amigo cujo pai, mãe ou tio também foi preso. A prisão é um elemento comum na vida dessas pessoas, é mais uma política absolutamente presente na vida delas.
Essas crianças procuram o tráfico de drogas porque ele fornece um pagamento muito superior, possibilita que estejam em um lugar no mundo onde possam se colocar de maneira mais “positiva”, um lugar menos subalterno. Também é um trabalho que possibilita a carreira, pois, em muitos casos, embora nem sempre, o adolescente que é olheiro pode virar vendedor, que pode virar gerente, por exemplo.
Ao mesmo tempo, o trabalho no tráfico de drogas tem a ver com uma série de outras violações aos direitos da criança e do adolescente na perspectiva da proteção integral. Então, são famílias pobres, famílias que têm seus direitos sociais, em geral, também violados. Portanto, é toda uma situação de infração contra os direitos, como escola de má qualidade, falta de uma boa alimentação, ausência de cultura, esporte e lazer, uma circulação muito limitada na cidade — os adolescentes que entrevistamos não saem das periferias, ficam circulando nesse mesmo local. Logo, há uma série de violações aos direitos, que deveriam ser respondidos tanto pelo Estado, quanto pela família e pela sociedade, mas que estão ausentes na vida dessas crianças. Enquanto isso, o tráfico de drogas se coloca ali como uma possibilidade muito próxima.
IHU On-Line — Os traficantes preferem “trabalhar” com crianças e adolescentes?
Ana Paula Galdeano — É difícil de responder essa pergunta porque não conversei com os donos das “biqueiras”, os adolescentes que entrevistamos são olheiros ou vendedores. Mas é muito provável que os donos de “biqueiras” prefiram trabalhar com crianças e adolescentes, assim como donos de carvoaria, lavouras e cana-de-açúcar. Muitos donos desses negócios preferem trabalhar com crianças e adolescentes porque são uma mão de obra barata.
É importante sempre lembrarmos que a exploração da mão de obra de crianças e adolescentes acontece em vários ramos de atividades, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. É na pesca, nas atividades extrativistas nas mineradoras, no ramo de confecção e nas feiras livres. O trabalho infantil está em várias atividades produtivas e também no tráfico de drogas.
IHU On-Line — Como as famílias dessas crianças e adolescentes se posicionam em relação ao trabalho dos filhos junto ao tráfico?
Ana Paula Galdeano — Essas famílias se posicionam como todas as outras preocupadas com os seus. Temos uma trajetória de famílias, pelo menos na cidade de São Paulo, que tem muito a ver com a migração. Então, as famílias pobres são aquelas cujas gerações anteriores vieram de outros estados para ajudar a construir a cidade no começo das décadas de 1970, em períodos de desenvolvimento, e 1980. São as famílias que foram habitar e construíram as periferias urbanas no momento em que os movimentos sociais eram muito pujantes, famílias que vieram trabalhar nas fábricas, proletárias, que foram ocupar o chão de fábrica.
Assim, muitas dessas famílias que se instalaram nas periferias urbanas são famílias trabalhadoras e que ao longo das gerações viram seus filhos se envolver com o mundo do crime, o que foi crescendo ao longo das décadas. Outras famílias chegaram a São Paulo e ocuparam regiões muito mais precárias do ponto de vista do desenvolvimento urbano, assim se instalaram nas favelas e de lá jamais conseguiram sair, embora sejam trabalhadores, com pessoas que trabalham em casas de família, no comércio e nos serviços.
Muitas vezes essas famílias não conseguem acompanhar o desenvolvimento dos seus filhos por conta de percorrerem longas distâncias até seu local de trabalho, mas que se preocupam com suas crianças. As mulheres com as quais nos relacionamos, mães dessas crianças e adolescentes, são trabalhadoras que se preocupam com seus filhos. No senso comum, imagina-se que as famílias pobres não possuem laços afetivos profundos, o que é um erro bastante comum e grosseiro. Os laços afetivos são fortes, embora muitas vezes a precariedade seja imensa, seja por questões de alcoolismo dos membros da família, seja pela questão da violência doméstica — muito presente. As precariedades são muito grandes, mas os laços afetivos são fortes e a preocupação em relação aos seus filhos também.
Nunca é fácil para uma mãe saber que seu filho está envolvido com o tráfico de drogas, por mais precária que seja a condição da mãe. Mesmo que eventualmente ela aceite o dinheiro do adolescente para pagar suas necessidades diárias, sempre é muito preocupante.
IHU On-Line — Como as redes de proteção social atuam junto a esses jovens e suas famílias?
Ana Paula Galdeano — O sistema de garantia de direitos, a rede de proteção social, é garantida por legislações importantes, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, além de outras resoluções que amparam a garantia de direitos da criança e do adolescente e das suas famílias. Do ponto de vista legislativo e normativo, nós temos avanços. Entretanto, existe uma grande dificuldade para garantir os direitos dessas crianças e adolescentes.
Em primeiro lugar, porque essa área é marcada pelo princípio fundamental da intersetorialidade, que diz respeito à ideia de que garantir direito de criança e adolescente depende de uma articulação entre setores de políticas públicas. Ou seja, não existe uma única pasta que vai garantir os direitos da criança, pois é preciso que saúde, educação, assistência social, justiça e conselho tutelar sejam atuantes para garantir os direitos dessas crianças e adolescentes. Dizemos que essa política é marcada pela incompletude institucional, porque não existe uma única instituição que vai dar conta disso, precisa de uma articulação interinstitucional.
Um dos grandes problemas que temos em relação ao chamado “adolescente em conflito com a lei”, é que esse adolescente é visto pelo senso comum, pela sociedade de maneira mais geral e também pelo profissional de algumas redes de proteção social como “bandidinhos”, são adolescentes que não são vistos como sujeitos de direitos. Por exemplo, nas escolas da cidade de São Paulo esses adolescentes autores de atos infracionais são chamados de “aluno LA”, um aluno que não é desejado na escola e está longe de ser um aluno padrão, é alguém questionador, que não fica sentado, é um aluno que exige metodologias muito distantes da tradicional. São adolescentes que impõem desafios bastante grandes.
Além disso, há um problema cultural, porque enquanto a Assistência Social vê esse adolescente como um sujeito de direitos violados, a educação vê esse adolescente como indesejável, como “aluno LA”, aquele que atrapalha a escola. Então, são visões conflitantes a respeito do mesmo sujeito, o que compromete bastante as políticas, as representações que o profissional tem em relação a esse indivíduo, à criança e ao adolescente em situação de vulnerabilidade e em conflito com a lei. Na cidade de São Paulo, pelo menos, temos um plano municipal de atendimento socioeducativo muito bem formulado, que prevê uma série de medidas, de articulação interinstitucional e intersetorial que começa lá no nível da municipalidade, das secretarias, depois em âmbito mais regional no âmbito das regiões administrativas da cidade de São Paulo.
É um plano muito bem elaborado, mas que nunca saiu do papel, pois não existe um plano de atendimento socioeducativo sancionado na cidade de São Paulo. Isso teria que passar pelo legislativo. Esta é a grande dificuldade: formalizar instrumentos, muito mais do que normativas, papéis ou planos, e de fato criar instrumentos e procedimentos operativos para que as diferentes secretarias e setores do município possam conversar e desenvolver ações para garantir os direitos dessas crianças.
Na maioria dos municípios brasileiros, quem faz este trabalho são os Centros de Referência Especializados de Assistência Social – Creas. Mas aqui na cidade de São Paulo, quem trabalha junto com esses adolescentes em conflito com a lei são os serviços de medidas socioeducativas, que são organizações sociais conveniadas com o município. Esses profissionais têm grandes dificuldades de trabalhar de maneira intersetorial, pela lógica da própria rede de proteção social.
Um educador social de um adolescente, por exemplo, tem que bater na porta da saúde, da educação, tem que brigar por vaga desse adolescente na escola, tem que tirar documento desse menino. Além disso, ele encontra grandes dificuldades para encontrar profissionalização para esses adolescentes — como falamos antes, são adolescentes que têm dificuldade de frequentar a escola porque acham que ela é chata, e os profissionais da escola não querem esses adolescentes porque acham que são perigosos, por isso eles se afastam da escola muito prematuramente. Também as opções de profissionalização são escassas para esses meninos.
Por exemplo, no programa Jovem Aprendiz é raríssimo um adolescente com medida socioeducativa conseguir uma vaga. Isso porque existem outros adolescentes pobres das periferias que não estão em situação de defasagem escolar como esses adolescentes estão. Mas, ao mesmo tempo, há experiências muito interessantes no Brasil, como em Marabá-PA e no Maranhão, onde legislações estão sendo realizadas para que adolescentes em situação de medida socioeducativa e de vulnerabilidade possam ingressar em programas de Jovens Aprendizes.
É errôneo pensarmos que no Brasil o adolescente não pode trabalhar. Na verdade, temos uma legislação que diz que o jovem pode trabalhar a partir dos 14 anos até os 24 anos, desde que ele esteja em uma situação de aprendizagem. Isso exige combinação entre frequência escolar e participação em instituição de formação profissionalizante como o Senac e outras, quando o adolescente trabalha meio período nessa perspectiva da aprendizagem e ao mesmo tempo frequenta a escola. Não é que o adolescente não pode trabalhar no Brasil, ele pode trabalhar em condições específicas, com carteira assinada, com salário designado por lei e assim por diante.
Enfrentamos problemas em muitas áreas, como educação, profissionalização, cultura, esporte e lazer — que ainda continuam com defasagem enorme nas periferias urbanas — e na saúde também. Existe de fato um problema relacionado ao consumo de substâncias psicoativas; por exemplo, em São Paulo, identificamos que vários adolescentes têm morrido por consumo de “lança-perfume”, pois esses meninos são cobaias de substâncias que ninguém sabe o que contém – o menino cheira o “lança-perfume”, sai correndo e tem um ataque cardíaco.
Na pesquisa aparece a parceria mais forte entre a assistência social e a saúde, que trabalham de maneira mais articulada, pois os profissionais do Sistema Único de Saúde - SUS já atuam de forma intersetorial dentro das Unidades Básicas de Saúde e do programa Saúde da Família. Então, estão mais acostumados com essa intersetorialidade que a área da infância e da adolescência exige.
Com relação à escola, as parcerias mais frequentes são com a polícia. Por exemplo, se tem um problema na escola, “liga para o 190” ou “chama a guarda civil metropolitana”. No questionário aplicado junto aos profissionais da rede de proteção social, apenas os profissionais da educação afirmaram acionar esses serviços e equipamentos da segurança pública.
Outro problema tem a ver com a nossa política de drogas, que é justamente uma política que vai encarcerar cada vez mais quem está na base desse processo do tráfico de drogas, que são esses meninos, menores de idade, também alguns deles maiores de idade. Por isso, temos que repensar a nossa política de drogas. O que estamos fazendo? Encarcerando dependentes químicos, quem trafica para comprar drogas, pessoas que são tratadas nos presídios como presos por tráfico, mas que na verdade são usuários. Ou, ainda, indivíduos que estão na base de uma rede imensa que envolve fronteiras, lavagem de dinheiro e tráfico de armas. Logo, temos a necessidade de repensar nossa política de drogas.
O que a nossa política de drogas está produzindo? É uma política de drogas que produz uma população que vai ser tratada nas penitenciárias e nos pequenos traficantes, com isso temos quadruplicado o número de pessoas presas no Brasil. É importante lembrar que, no estado de São Paulo, o tráfico de drogas é o segundo ato infracional que mais encarcera crianças e adolescentes — o primeiro é o roubo. O que aconteceria se não prendêssemos tanta gente por tráfico de drogas? Qual seria a consequência disso nas penitenciárias? E, mais ainda: qual seria a consequência disso nas próprias periferias urbanas? Qual seria a consequência disso para crianças e adolescentes que são filhos de presos? É nisso que precisamos pensar de maneira mais profunda.
IHU On-Line — Como o Brasil poderia enfrentar o trabalho infantil junto ao tráfico de drogas? Que tipo de política pública seria necessária nesse sentido?
Ana Paula Galdeano — Quando eu chamo a atenção para a nossa política de drogas, estou chamando a atenção para isto: o que aconteceria se nós mudássemos a nossa política de drogas?