22 Junho 2019
Felwine Sarr nasceu em Niodior, uma ilha que do Atlântico contorna as costas do Senegal, aquele país que durante anos esteve condenado como colônia francesa, alimentando o comércio ilegal de escravos. Algo deve ter acontecido com sua família, porque o certo é que Sarr e seus sete irmãos encontraram nas artes e nas letras a forma de pensar e repensar aquela história.
No caso de Felwine, foi muito mais a filosofia, ainda que na sequência acuse suas múltiplas raízes. Músico, escritor, economista. “Sou um encontro de tudo isso”, define-se. Atualmente, é professor e pesquisador da Universidade Gaston Berger de Saint-Louis e é autor de Afrotopia, um ensaio que relembra a veemência de Frantz Fanon e a agudez de Achille Mbembe. Na obra, coloca-se contra uma África que sempre foi dita por outros, a partir dos postulados de desenvolvimento idealizados nos frios laboratórios das organizações internacionais e da épica erótica de uma indústria cultural que soube funcionar com perfeição como máquina de legitimação das desigualdades raciais.
Em conversa com a Revista Ñ, Sarr conta como seu trabalho foi sendo gestado com uma inquietação que nasceu nas aulas, enquanto ensinava Economia: “Ali, podia ver a baixa autoestima de meus alunos. Via o lugar no mundo em que esses jovens africanos se colocavam, pensando a África sempre a partir de uma representação ligada à falta, à pobreza. Repensar o que somos é a única forma de pensar o que temos para transformar essa realidade. Devemos deixar a epistemologia da falta e construir uma epistemologia dos recursos”.
A entrevista é de Carolina Keve, publicada por Clarín-Revista Ñ, 20-06-2019. A tradução é do Cepat.
Neste marco, em que consiste o conceito de afrotopia?
O conceito surgiu, inicialmente, para refletir sobre as dinâmicas sociais na África, em suas três dimensões: cultural, política e econômica. Acredito que a África precisa inventar por si mesma sua metáfora de futuro. Historicamente, sofremos um mandato civilizacional, subsumidos à ideia de desenvolvimento e a diversas teleologias do Ocidente. E a verdade é que a noção de desenvolvimento econômico não funcionou. Ou seja, o conceito de “bem-estar” é uma ideia universal, toda sociedade persegue essa meta. Mas, não existe uma única forma de consegui-la, seu exercício é resultado de uma determinada produção histórica e social.
Que tenha funcionado na Europa séculos atrás, não significa que esse modelo tenha que ser replicado por igual em todos os territórios. Então, afrotopia supõe isto, colocar em debate a ideia de um “ou-topos”, desse lugar sem existência, que não é o aqui, mas que encarna através de nossas ações um imaginário, um imaginário que deve ser moldado por nós mesmos.
A batalha deve ser cultural?
Acredito que o importante é que cada sociedade decida sobre o seu futuro. A imaginação contrafática é uma forma de revolução, e pode ser um ponto de partida para gerar outras formas de comportamento. Não se trata de pensar um sonho, um conceito abstrato, um imaginário que jamais cumpriremos. O que proponho é uma utopia ativa, que gere marcos de ação, ao mesmo tempo em que permita repensar nossa sociedade.
Qual é a representação da África que hoje prevalece, que tipo de caracterização é necessário erradicar?
Acredito que a África sempre foi representada a partir da noção de falta. E, neste sentido, as sociedades africanas não são vistas como o que realmente são. Sempre são definidas em termos do que deveriam ser, comparadas com outras trajetórias: a chinesa, a japonesa, a coreana. Então, a primeira pergunta passa por isto: As dinâmicas sociais são comparáveis? Se estamos falando de processos que são resultado de trajetórias históricas distintas, é totalmente o contrário, o problema está em poder ver a África a partir de sua própria cosmovisão, através de suas singularidades e de sua especificidade social, histórica, cultural e econômica. Para isso, é necessário criar categorias próprias, categorias que reflitam essas singularidades e essa visão própria de mundo, superando certa alienação epistemológica e sendo capazes de pensar por nós mesmos.
Justamente, é um processo que deve ser pensado para dentro da África...
Sim, é necessário descolonizar a visão, reverter os processos intelectuais que formaram a visão que se tem sobre o continente. Isto não significa não dar conta dos desafios e problemas que enfrentamos. Mas, não podemos seguir enfrentando-os a partir dessa posição da falta, ao contrário, temos que fazer isso a partir das potencialidades com as quais é possível superá-los, a partir de nossos recursos morais, espirituais, culturais, materiais. Acredito que o central passa por sermos capazes de ter uma força crítica e de reflexão própria.
E, por exemplo, que narrativas hoje circulam nas escolas? Como a África é contada por si mesma?
No espaço social, prevalece esta ideia de que devemos desenvolver a África, de que a África deve se modernizar, que a África deve ser mais democrática... Ou seja, ninguém questiona esta afirmação, mas as formas institucionais para isso não necessariamente devem ser as que a experiência europeia tem oferecido.
E em que formas estaria a resposta?
Primeiro, é preciso fazer um percurso genealógico para entender que não estamos falando de coisas naturalmente dadas. O conceito de desenvolvimento, por exemplo, nasce em 1949, quando o presidente norte-americano Harry Truman fala em seu discurso inaugural sobre o problema do colonialismo.
Não sei se é a definição mais acertada porque supõe uma definição liberal, mas primeiro não é necessário democratizar o conhecimento?
Acredito que antes temos que repensar, na realidade, o que entendemos por conhecimento. Quando caminho pelas ruas ou tomo um táxi, estou diante de um grande conhecimento, só que esse conhecimento não é considerado pela academia. Por isso mesmo, acredito que o que é necessário fazer é dessacralizar a própria definição de conhecimento, retirá-la do claustro porque reproduz formas de deslegitimação.
Concorda com o conceito da “razão negra”, ou seja, que o racismo se tornou um dos principais dispositivos de dominação da modernidade?
(Sorri) Ah, o trabalho de Achille Mbembe. Não sei se em termos tão universais. Acredito, além disso, que a concepção de “razão” está desconhecendo outras dimensões, como a intuição e a sensibilidade. Justamente, uma característica da África é que possui uma multiplicidade de racionalidades. A forma de articulação dessas dimensões singulares é o que define cada cultura.
E qual é a situação das universidades lá? Você estudou na França.
Eu nasci no Senegal, fui criado no Senegal e fiz meus primeiros estudos no Senegal. É interessante especificar isso porque muitas vezes me dizem que estudei na França, sim, está correto, mas desse modo se perde de vista toda esta outra trajetória. Eu sempre digo que me formei muito melhor nas bibliotecas de fronteira. Agora bem, exceto em alguns lugares específicos, a situação das universidades na África é muito ruim. Não há recursos, os conteúdos curriculares se caracterizam por uma falta de renovação, isto se acentua nas ciências sociais. Não acredito que a sociologia de Durkheim sirva para pensar Burkina Faso.
Não obstante, poderíamos afirmar que durante os últimos anos assistimos a emergência de pensadores que não só vêm refletindo a respeito disso, como também cujos desenvolvimentos teóricos ganharam muita importância, inclusive no Ocidente, como é o caso de Mbembe, por exemplo...
Sim, o que está mudando, com efeito, é que há toda uma geração de intelectuais que justamente sustenta que o continente tem sua própria produção cultural, e que é necessário criar categorias próprias para pensar sua realidade. Hoje, há muitíssimas referências cujo pensamento, com efeito, conseguiu ultrapassar as fronteiras, como o historiador Joseph Ki-Zerbo, de Burkina Faso, ou o filósofo congolês Valentin-Yves Mudimbe. Eu acredito que a África finalmente está pronta para escutar algo diferente.
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“A África precisa inventar sua metáfora de futuro”. Entrevista com Felwine Sarr - Instituto Humanitas Unisinos - IHU