21 Junho 2019
"O texto respira profundamente dentro da tradição amazônica. Seria um erro grave pensar nele simplesmente a partir de nossas categorias tridentinas, quase como um "joguinho" para dar "reconhecimento burocrático" a um organograma de igreja local. Aqui, em vez disso, trata-se de uma questão de assumir plenamente a originalidade amazônica - da cultura, do exercício da autoridade masculina e feminina - como caso sério para produzir um legítimo progresso e superar uma tradição doente em nome de uma tradição saudável".
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua, em artigo publicado no blog Come se non, 19-06-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
"No presente, precisamos da renovada, serena e tranquila adesão a todo o ensino da Igreja, na sua integridade e exatidão"
João XXIII, Gaudet Mater Ecclesia, 1962.
A publicação do Instrumentum Laboris em vista do Sínodo especial dedicado às Igrejas da Amazônia, oferece à Igreja Católica uma ocasião especial: refletir sobre a tradição a partir de uma contingência surpreendentemente "diferente". Isso coloca à prova as categorias de universalidade e continuidade, que deverão ser verificadas "in loco", em relação a uma visão "romana".
Numa primeira leitura, o texto parece muito promissor: elabora uma série de perguntas de maneira aberta e clara, sem muitas hesitações ou circunlóquios. São muitos os temas que deveriam ser analisados e outras poderão fazê-lo de maneira apropriada. Limito-me aqui a examinar apenas aquelas passagens que parecem estar ligadas a duas questões fundamentais, sobre o exercício do ministério e sobre a celebração litúrgica.
Um erro que arrisca comprometer a leitura do texto, e depois do evento, é o de não levar em conta que se trata de um "Sínodo especial": envolvendo uma "porção da Igreja", identificada geograficamente e historicamente como Amazônia. Uma região vasta, articulada e não unívoca. O que é elaborado no Sínodo diz respeito a tal tradição complexa, inspira-se nela e tenta fornecer providências. Qualquer elaboração "universal" não pode ser imediata. Respeitar essa lógica "local" é um dos requisitos para que o caminho seja positivo, tanto para as Igrejas que estão na Amazônia, como para todas as outras Igrejas e para a Igreja universal como um todo.
Gostaria agora de apresentar e comentar uma série de afirmações, que atravessam a primeira parte do documento, e que constituem o apoio necessário para compreender as sucessivas:
- “O processo de conversão ao qual a Igreja é chamada implica desaprender, aprender e reaprender" (102). A Igreja deve desaprender. Para poder aprender algo diferente e reaprender a única tradição comum, mas com outras palavras, com outros gestos, com outras músicas, com outras autoridades, com outras formas. Poderíamos encontrar o ilustre precedente deste texto em SC 23, que relaciona "tradição sadia" e "progresso legítimo": nem toda tradição é sadia. À tradição doente se reage com a reforma. Isso não se aplica apenas à liturgia. O caminho sinodal da Amazônia deve "desaprender" a tradição doente.
- Esse processo de conversão "requer propostas ‘valentes’ da Igreja na Amazônia, que pressupõe coragem e paixão, como nos pede o Papa Francisco" (106). Acho curioso que o texto se refira a "coragem e paixão" a um pedido do Papa. Na realidade, é a "vida da Igreja" que pede coragem e paixão. O Papa a interpreta também do centro, não apenas da periferia. E aqui está um primeiro ponto delicado. Quem vive e tem fé na Amazônia sabe o que exigem a coragem e a paixão. É possível que Roma entenda isso? Esse é o ponto. Existem os bispos da Amazônia, existe o papa: e no meio? O Sínodo deveria devolver à Igreja uma "mediação autorizada" da coragem e da paixão que conserva a tradição viva.
- “Uma Igreja com rosto amazônico com seus pluriformes matizes procura ser uma Igreja ‘em saída’ (cf. EG 20-23), que deixa atrás de si uma tradição colonial monocultural, clericalista e impositiva e sabe discernir e assumir sem medo as diversificadas expressões culturais dos povos" (110). O "rosto amazônico" da Igreja está implicado em uma complexa superação de uma “tradição doente" que é identificada com 4 adjetivos: colonial, monocultural, clericalista e impositiva. Assumir as expressões culturais dos povos da Amazônia, com discernimento e sem medo. Esta é a tarefa, que diz respeito a um trabalho de inculturação e interculturação.
Chego agora às principais afirmações sobre liturgia e ministério.
- "Certamente a diversidade cultural não ameaça a unidade da Igreja, mas expressa sua catolicidade genuína mostrando ‘a beleza deste rosto pluriformes" (EG 116). Por isso "é preciso ter a coragem de encontrar os novos sinais, os novos símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as diferentes formas de beleza que se manifestam em diferentes âmbitos culturais ..." (EG 167). Sem essa inculturação, a liturgia pode se reduzir a uma ‘peça de museu’ ou a ‘uma possessão de poucos’" (EG 95)" (124). A diversidade cultural não ameaça a unidade. Esta é uma afirmação-chave. Um rosto pluriforme da tradição não é mais pensado como derrota da uniformização, mas como riqueza da diferenciação. Isso aplica-se sobretudo à liturgia, que não pode ser incluída na categoria "peça de museu". Essa passagem será muito delicada. Porque colide com uma mentalidade e uma sensibilidade que nos últimos 20 anos tentou validar precisamente esta ideia "estática" e "doente" de liturgia. A Amazônia não pode suportar o que um europeu até pode desejar. A especificidade de um lugar e de uma tradição nos permite rever as categorias distorcidas com as quais pretendemos acertar as contas com a nossa história. E a ler de uma maneira nova.
- "Os sacramentos devem ser fonte de vida e remédio acessível a todos (cf. EG 47), especialmente os pobres (cf. EG 200). Pede-se para superar a rigidez de uma disciplina que exclui e aliena, através de uma sensibilidade pastoral que acompanha e integra (cf. AL 297, 312)" (126b). A reelaboração universal das categorias de evangelização (EG) e de integração (AL) permitem ao texto reler diferentemente a mesma tradição sacramental, contrapondo com firmeza uma leitura "disciplinar" que exclui e aliena, em relação a uma sensibilidade pastoral que se torna capaz de acompanhar e integrar.
- “Por falta de sacerdotes, as comunidades têm dificuldade de celebrar com frequência a Eucaristia. ‘A Igreja vive da Eucaristia’ e a Eucaristia edifica a Igreja. [60] Por isso, pede-se que, em vez de deixar as comunidades sem a Eucaristia, se alterem os critérios para selecionar e preparar os ministros autorizados para celebrá-la." (126c). Aqui encontramos uma das afirmações mais fortes e decisivas do documento. A centralidade da celebração eucarística deve induzir a uma conversão pastoral de extremo relevo, que resulta na mudança dos critérios de seleção e preparação dos ministros autorizados a celebrar a Eucaristia: aqui fica evidente que o tema "litúrgico" e o tema "ministerial" se entrelaçam em profundidade. Por um lado, a liturgia não é rígida, mas aberta à integração das culturas; mas, pelo outro lado, é tão central que devem se dobrar a ela também os critérios de "seleção e preparação: isto é, as formas ministeriais podem e devem encontrar uma nova elasticidade que, como veremos imediatamente abaixo, requer uma releitura dos "sujeitos com autoridade" dentro da comunidade.
"A Igreja deve encarnar-se nas culturas amazônicas que possuem um elevado sentido de comunidade, igualdade e solidariedade, e por isso não se aceita o clericalismo em suas diferentes formas de manifestação." (127) e depois: "As distâncias geográficas abrangem também distâncias culturais e pastorais que, portanto, exigem a passagem de uma ‘pastoral de visita’ para uma ‘pastoral de presença’, a fim de voltar a configurar a Igreja local em todas as suas expressões: ministérios, liturgia, sacramentos, teologia e serviços sociais." (128). Uma reconfiguração da Igreja exige uma passagem muito delicada que, superando o clericalismo, saiba transformar a "pastoral da visita" em "pastoral da presença". Isso tem um impacto muito forte em todos os níveis de experiência e de expressão. Nós vemos isso imediatamente nos pedidos que vêm da Amazônia.
Finalmente, são indicados os principais pedidos de forma extremamente clara. Aqui lemos os horizontes de repensamento locais, cujos efeitos sobre a tradição comum podem ser valorizados no tempo, a partir deste possível precedente. O texto longo é justificado pela sua importância.
- "As seguintes sugestões das comunidades recuperam aspectos da Igreja primitiva quando ela responde a suas necessidades criando ministérios oportunos (cf. Atos 6: 1-7; 1Tm 3: 1-13):
a) Novos ministérios para responder de modo mais eficaz às necessidades dos povos amazônicos:
1. Promover vocações autóctones de homens e mulheres, como resposta às necessidades de atenção pastoral-sacramental; sua contribuição decisiva consiste no impulso para uma autêntica evangelização do ponto de vista indígena, segundo seus usos e costumes. Trata-se de indígenas que apregoem a indígenas a partir de um profundo conhecimento de sua cultura e de sua língua, capazes de comunicar a mensagem do Evangelho com a força e a eficácia de quem dispõe de uma bagagem cultural. É necessário passar de uma ‘Igreja que visita’ para uma ‘Igreja que permanece’, acompanha e está presente através de ministros provenientes de seus próprios habitantes.
2. Afirmando que o celibato é uma dádiva para a Igreja, pede-se que, para as áreas mais remotas da região, se estude a possibilidade da ordenação sacerdotal de pessoas idosas, de preferência indígenas, respeitadas e reconhecidas por sua comunidade, mesmo que já tenham uma família constituída e estável, com a finalidade de assegurar os Sacramentos que acompanhem e sustentem a vida cristã.
3. Identificar o tipo de ministério oficial que pode ser conferido à mulher, tendo em consideração o papel central que hoje ela desempenha na Igreja amazônica" (129a).
Os três níveis, no horizonte aberto pela Igreja primitiva, são identificados e correspondem a três diferentes dimensões da demanda: um ministério autóctone de pregação, a ordenação de "anciãos casados" para a presidência eucarística, uma configuração ministerial oficial a ser conferida às mulheres. O texto respira profundamente dentro da tradição amazônica. Seria um erro grave pensar nele simplesmente a partir de nossas categorias tridentinas, quase como um "joguinho" para dar "reconhecimento burocrático" a um organograma de igreja local. Aqui, em vez disso, trata-se de uma questão de assumir plenamente a originalidade amazônica - da cultura, do exercício da autoridade masculina e feminina - como caso sério para produzir um legítimo progresso e superar uma tradição doente em nome de uma tradição saudável.
- Outra especificação vem, no mesmo número 129, do ponto c, que merece ser citado integralmente:
"c) Papel das mulheres:
1. No campo eclesial, a presença feminina no seio das comunidades nem sempre é valorizada. Reclama-se o reconhecimento das mulheres a partir de seus carismas e talentos. Elas pedem para recuperar o espaço que Jesus reservou às mulheres, “onde todos/todas cabemos”. [61]
2. Propõe-se inclusive que às mulheres seja garantida sua liderança, assim como espaços cada vez mais abrangentes e relevantes na área da formação: teologia, catequese, liturgia e escolas de fé e de política.
3. Também se pede que a voz das mulheres seja ouvida, que elas sejam consultadas e participem nas tomadas de decisões e, deste modo, possam contribuir com sua sensibilidade para a sinodalidade eclesial.
4. Que a Igreja acolha cada vez mais o estilo feminino de atuar e de compreender os acontecimentos." (129c).
A integração da mulher, além de ser no nível oficial e ministerial, requer formas culturais e institucionais de integração eclesial. A participação nos processos de tomada de decisão é um requisito que não deve ser pensado a partir do nosso conceito europeu de "igualdade de direitos", mas a partir de tradições da cultura "matrilinear", na qual é de fato a mulher que gere a autoridade familiar e do grupo. A provocação antropológica e a cultura tornam-se um estímulo para uma Igreja que queira ser, realmente, propter homines.
- "Promover a dignidade e igualdade da mulher na esfera pública, particular e eclesial, assegurando canais de participação, combatendo a violência física, doméstica e psicológica, o feminicídio, o aborto, a exploração sexual e o tráfico, comprometendo-se a lutar para garantir seus direitos e para superar qualquer tipo de estereótipo." (146e)
A superação de todos os tipos de estereótipos é uma passagem muito delicada, não só para a sociedade, mas para a Igreja. Reagir às demandas provenientes das terras atravessadas pelo Rio Amazonas põe à prova a Igreja em saber reconhecer a comunhão e o Evangelho vivido sem se deixar dominar pelos estereótipos que não permitem "ver as vidas".
A Amazônia não é apenas floresta ou rio ou relação primária, é também cidade e sociedade complexa. O texto também diz algo importante sobre essa diferença:
- "Na cidade o indígena é um migrante, um ser humano sem terra e o sobrevivente de uma batalha histórica pela demarcação de sua terra, com sua identidade cultural em crise. Nos centros urbanos, os organismos governamentais evitam frequentemente a responsabilidade de lhes garantir seus direitos, negando-lhes sua identidade e condenando-os à invisibilidade." (132).
O problema das formas de vida pode fazer uma metrópole como Manaus muito semelhante a Roma. A distância geográfica se confunde com a distância cultural e tecnológica. A indiferença pela diversidade torna-se um problema não apenas "externo", mas "interno" à Amazônia. Este é um desafio realmente grande e decisivo: honrar e integrar a diversidade cultural, civil e eclesial. Para enfrentá-la positivamente em Roma será necessária uma grande medida de coragem e paixão. Sem medo e com muita esperança. Mas também com disposição para pensar de outra maneira, elaborar novas categorias, rever as noções clássicas, repensar os desenvolvimentos históricos, sem cair naqueles estereótipos de museu, que teriam imediatamente um efeito paralisante e imunizante. A Amazônia não é uma "selva escura", mas uma oportunidade preciosa para honrar a realidade e redescobrir a vivacidade de nossa tradição comum.
Nota de IHU On-Line: A íntegra do Instrumento de Trabalho do Sínodo Amazônia: Novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral pode ser lido, em português, aqui.
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A Amazônia não é uma selva escura. O Instrumentum Laboris no ministério e liturgia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU