28 Abril 2019
“Legalidade e legitimidade, direito e justiça, escatologia e história estão em perene equilíbrio na vida da Igreja. Apenas a legalidade não pode bastar. Há na Igreja dois elementos irreconciliáveis e, contudo, estritamente entrelaçados: a economia e a escatologia, o elemento mundano-temporal e o transcendental. A Igreja vive nesse diafragma.”
A opinião é de Gianfranco Brunelli, diretor da revista italiana Il Regno, do Centro Editorial Dehoniano de Bolonha, em editorial, 26-04-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O texto que o bispo emérito de Roma, Bento XVI, divulgou no último dia 11 de abril “sobre a crise da fé e da Igreja” por causa da “difusão das chocantes notícias de abusos cometidos por clérigos contra menores” pegou muitos de surpresa, provocando fortes reações [1].
Porque é a primeira vez, depois da renúncia de 11 de fevereiro de 2013, que Bento intervém, com um texto bastante amplo, sobre um tema que se tornou central na vida da Igreja, sobre o qual o Papa Francisco convocou a Roma, de 21 a 24 de fevereiro passado, todos os presidentes das Conferências Episcopais do mundo.
Bento XVI faz referência a essa iniciativa quando fala das razões pelas quais pensou em publicar sua própria “contribuição”: “A dimensão e a gravidade das informações sobre tais episódios abalaram profundamente sacerdotes e leigos e em muitos deles determinaram o questionamento da fé da Igreja como tal. Era preciso dar um sinal forte e era preciso tentar recomeçar para tornar a Igreja novamente credível como luz das nações e como força que ajuda na luta contra as potências destrutivas”. Não faltam as referências à sua própria ação de recuperação.
Já anteriormente, na entrevista-balanço da sua última temporada, com Peter Seewald, ele havia oficializado a redução ao estado laical de cerca de 400 sacerdotes que se envolveram nos escândalos [2], tema que ele retoma no novo texto: “Tendo eu mesmo atuado no momento da deflagração pública da crise e durante o seu progressivo desenvolvimento em posição de responsabilidade como pastor na Igreja, não podia deixar de me perguntar – embora não tendo mais nenhuma responsabilidade direta como emérito – como, a partir de um olhar retrospectivo, eu poderia contribuir com essa recuperação. E, assim, no lapso de tempo que vai do anúncio do encontro dos presidentes das Conferências Episcopais ao seu início propriamente dito, reuni algumas anotações com as quais poderia fornecer algumas indicações que pudessem servir de ajuda neste momento difícil. Após contatos com o secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, e com o próprio Santo Padre, acho justo publicar o texto assim concebido na Klerusblatt”.
O Papa Francisco sabiamente consentiu com a publicação do texto do seu antecessor. Precisamente e sobretudo em resposta aos críticos (alguns dos quais são órfãos do Papa Ratzinger) do seu pontificado. De fato, ele se qualifica como uma contribuição, e nenhuma tese foi deixada para trás pelo Papa Francisco ou, pior, impedida diante do desafio do mal na Igreja.
O texto levantou aplausos e protestos, de acordo com um esquema contrapositivo entre os dois pontificados que foi posto em prática desde o início da inédita história da copresença de dois papas, em parte preconceituosamente confeccionado pela mídia, em parte instrumentalizado e legitimado pelos partidários mais obstinados das duas orientações diferentes. Alguns dos detratores de Bergoglio e dos órfãos de Ratzinger defenderam a necessidade da continuidade do magistério de Bento XVI para deter a destruição da própria Igreja, caso ela seja deixada nas mãos unicamente do Papa Francisco. Uma minoria da Igreja que ainda não compreendeu (nem aceitou) as razões da renúncia de Bento XVI. De pouco valeram as manifestações de solidariedade entre Bento e Francisco.
O texto é, como o próprio Bento o qualifica, “uma anotação” e pode ser contado como uma das diversas sensibilidades expressadas durante os trabalhos da assembleia de fevereiro. Infelizmente, não é um dos melhores escritos de Ratzinger, é uma síntese bastante fragmentada e menos dotada de criticidade orgânica do que outros de seus ensaios. E isso não pode deixar de alimentar mais polêmicas em um debate que é tão desviado das suas intenções específicas.
Gostamos mais de outras intervenções de Ratzinger/Bento. É demasiadamente determinista e desprovido de distinção referir-se à crise (definida como “colapso”) do sistema da teologia moral na sua busca pela renovação pós-conciliar, a partir do fundamento jusnaturalista ao bíblico, como razão do desarmamento defensivo da Igreja diante do processo de secularização.
“Pode-se afirmar – defende Bento – que, nos 20 anos entre 1960 e 1980, os critérios válidos até aquele momento sobre o tema da sexualidade desapareceram completamente, e resultou daí uma ausência de normas à qual, entretanto, esforçamo-nos para remediar.”
A referência é ao pontificado de João Paulo II e, em particular, ao Catecismo da Igreja Católica e à encíclica Veritatis splendor, na qual, para tentar restaurar um certo retorno à ordem, chegou-se a considerar como utilizável o tema da infalibilidade do magistério não só em matéria de fé, mas, em alguns casos, também de moral. O próprio Ratzinger admite que essa conclusão merece ser novamente aprofundada.
Mas esse período realmente marca uma queda normativa? E ainda: foi suficiente a resposta rigorista até a determinação da infalibilidade para conter um processo de liberalização dos costumes que abalou o ethos coletivo anterior?
É muito superficial o juízo sobre a relação entre a liberalização da mentalidade e dos costumes sexuais (até nos seminários) e a pedofilia. Como esquecer que os maiores relatórios redigidos por diversas comissões nacionais mostraram que o fenômeno era conhecido bem antes do Concílio, e que, em alguns institutos religiosos (como, por exemplo, os Legionários de Cristo), ele foi produzido ininterruptamente desde os anos 1940 até depois dos 2000?
O teólogo Ratzinger sempre se preocupou com a deriva da revolução de 1968, anômico em tudo, a ponto de determinar o atual colapso espiritual com a violência e a liberalização de costumes também em matéria sexual. Efetivamente, tratou-se de uma revolução geracional que envolveu, entre os efeitos, muitos dos males que Bento estigmatiza, mas não se pode fazer dela um bode expiatório para tudo.
Às vezes, a “anotação” está ligada demais à história pessoal e profissional do teólogo Ratzinger, como nas exemplificações do embate com o teólogo Franz Böckle sobre as proibições da leitura dos seus textos em alguns seminários.
Muito mais ratzingeriana é a retomada que o texto faz na sua terceira e mais orgânica parte da perspectiva de von Balthasar sobre a reproposição do tema escatológico e sobre a concepção “anteposta” de Deus, ou sobre a retomada do tema guardiniano do renascimento da Igreja nas consciências. Ou ainda dos temas por ele tratados quando muito jovem, na época dos estudos sobre o conceito de Igreja em Ticônio (1956), em que a questão do mal na Igreja é ilustrada como parte interna da própria Igreja. Jerusalém inclui Babilônia, e não há, como em Santo Agostinho, duas cidades, mas uma só, na qual está presente o lado obscuro da corrupção, ao lado do esplendor da santidade.
Essa parte certamente apreciável é mais coerente com o pensamento expressado pelo teólogo Ratzinger e pelo gesto excepcional realizado por Bento XVI com a sua renúncia diante da crise de autoridade da Igreja na presença de fatos muito graves. Giorgio Agamben havia escrito imediatamente, com grande sutileza, sobre o tema da renúncia de Bento XVI – que deve ser compreendida e compartilhada na Igreja se quisermos que o próprio pontificado de Francisco se cumpra na linha da renovação necessária –, que ela deve ser interpretada sobre o eixo de uma tentativa de trazer novamente à tona a questão escatológica em toda a sua disruptividade: “Somente desse modo a Igreja, que se perdeu no tempo, poderá reencontrar a justa relação com o fim dos tempos”.
“Esse homem, que estava à frente da instituição que se orgulha do mais antigo e denso título de legitimidade, revogou em questão, com o seu gesto, o próprio sentido desse título. Diante de uma cúria que, esquecendo-se totalmente da própria legitimidade, persegue obstinadamente as razões da economia e do poder temporal, Bento XVI optou por usar apenas o poder espiritual, do único modo que lhe pareceu possível, isto é, renunciando ao exercício do vicariato de Cristo. Desse modo, a própria Igreja foi posta em questão desde a sua raiz” [3].
Portanto, legalidade e legitimidade, direito e justiça, escatologia e história estão em perene equilíbrio na vida da Igreja. Apenas a legalidade não pode bastar. Há na Igreja dois elementos irreconciliáveis e, contudo, estritamente entrelaçados: a economia e a escatologia, o elemento mundano-temporal e o transcendental. A Igreja vive nesse diafragma. Talvez seja por isso que o Papa Francisco estigmatizou diversas vezes, como culpa grave, a mundanidade espiritual na Igreja. Corruptio optimi pessima.
1. Entre as muitas reações, destacamos a declaração dos porta-vozes do grupo de professores alemães de teologia moral, C. Breitsameter e S. Görtz, “Prisioneiro dos próprios preconceitos”, Munique/Mainz, 14-04-2019; http://bit.ly/2VKhXEt; trad. italiana: http://bit.ly/MoralistiDE.
2. Cf. Bento XVI, “Ultime conversazioni”, editado por Peter Seewald, Milão: Garzanti-Rizzoli, 2016.
3. G. Agamben, “Il mistero del male. Benedetto XVI e la fine dei tempi”, Roma-Bari: Laterza, 2013, p. 8, 17.
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Papa emérito: o difícil equilíbrio entre história e escatologia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU