25 Abril 2019
Com dois terços de vagas do Mais Médicos sem profissionais e cortes de recursos, indígenas lutam por atendimento.
A reportagem é de Margarida Cordão, publicada por Brasil de Fato, 19-04-2019.
Piatã Pataxó é agente indígena de saúde (AIS) na aldeia Gurita, município de Prado (BA). O ano de 2019 começou com dificuldades pra ele. O salário, no valor de um mínimo, atrasou por três meses. Não só o dele, mas de todos os funcionários ligados ao Distrito Sanitário Indígena da Bahia. De motoristas a auxiliares de limpeza.
Além disso, as camionetes usadas para fazer o transporte entre a aldeia e o polo base de saúde que fica no município vizinho, Itamaraju, estão encostadas por falta de combustível.
Mas ainda que combustível existisse, não adiantaria sacolejar os 58 quilômetros de estrada de terra em busca de um atendimento de saúde, porque não seria possível encontrar um médico para atender os pacientes. Já há alguns meses é preciso ir até Teixeira de Freitas, município que fica a 180 quilômetros da aldeia, para encontrar um profissional médico.
Piatã explica o que isso significa na rotina de um agente indígena de saúde: “Eu tive dois casos de AVC dentro da comunidade e a gente tá com toda essa dificuldade para poder locomover esse pessoal pra fazer fisioterapia, pra fazer esses acompanhamentos que é devido. Eu sei a dificuldade que eu passei pra fazer o deslocamento desse pessoal pra chegar até Teixeira de Freitas. Ou a gente procura um carro particular e paga 300 reais pra levar a pessoa lá ou a pessoa morre”.
As dificuldades não são exclusividade dos pataxós. A aldeia Urunai fica no município de Oiapoque (AP). Cercada pelas montanhas do Parque Nacional do Tumucumaque, fronteira com o Suriname, o acesso é difícil. Só de avião.
São 11 grupos indígenas diferentes no parque. Uma região de acesso tão difícil que é recente o contato dos povos indígenas com não-indígenas. A Urunai é uma das aldeias ondem vivem os Tiriyós e o primeiro contato aconteceu em 1962. Poucos dominam o português.
As cerca de 30 famílias da etnia Tiriyó que vivem na aldeia eram atendidas pelo Programa Mais Médicos. Com a saída dos cubanos no final do ano passado, eles ficaram sem atendimento.
Neto e sobrinho de pajés, Demétrio Tiriyó é enfermeiro e sabe que sem médicos para atender no local, o acesso à saúde para os indígenas de Tumucumaque está rarefeito.
“Eu fiquei muito triste como enfermeiro, como liderança, quando todos os médicos cubanos foi embora. Ficou sem, agora. Então não sei como o governo atual vai resolver isso, mas nós precisamos médico na aldeia. Porque, principalmente, nosso transporte é apenas via aérea, então não tem como levar todo mundo pra consulta. Quer Mais Médicos pelo menos na aldeia, pra consultar todas comunidades do parque Tumucumaque”.
O trabalho de conclusão do curso de enfermagem de Demétrio comprovou a eficiência da medicina indígena tradicional e das plantas medicinais no tratamento da leishmaniose cutânea, doença de alta prevalência na região. Ele acha que mesmo que o Ministério da Saúde se esforce, será difícil substituir os profissionais cubanos.
“O médico brasileiro não quer ficar nem 10 dias na aldeia. Cubano tinha já amizade com povo indígena. Eles também, os cubanos, eles estudaram nossa planta medicinal, não apenas farmácia [remédios alopáticos]”.
A situação se repete no território indígena Truká Tapera, às margens do rio São Francisco, no município de Orocó (PE), com os Kulina às margens do rio Envira, em Manoel Urbano (AC), e com os Guarani, no Pico de Jaraguá, na capital paulista.
Faltam médicos, insumos, salários e transporte nos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) que cobrem todo o território nacional e que são subordinados diretamente ao Ministério da Saúde, especificamente à Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI).
Segundo o Ministério da Saúde, dois terços das vagas dos Mais Médicos para os DSEI ainda não foram preenchidas. Depois da saída dos cubanos e do edital lançado no final de 2018, apenas 119 do total de 372 vagas tem médicos em atividade.
Questionado, o Ministério da Saúde garante que o problema vai ser solucionado já “que 252 brasileiros formados no exterior participaram, no mês de março, do módulo de acolhimento e estão iniciando as atividades em áreas indígenas”.
Além dos profissionais dos Mais Médicos, outros 152 médicos atuam na saúde indígena via contrato com organizações sociais conveniadas. O governo diz que esse número não sofreu alteração do ano passado pra cá. Apesar de estarem, como os agentes indígenas de saúde, ou com salários atrasados ou com contratos suspensos.
A situação chegou ao limite quando o Ministério da Saúde suspendeu o repasse de recursos para os DSEI. A decisão foi tomada dias depois do ministro Luiz Henrique Mandetta assumir a pasta e bem antes do presidente Jair Bolsonaro ir ao twitter escrever que é preciso “reintegrar o índio à sociedade levando até a estes condições para que possam se sentir brasileiros”.
Na primeira semana de março, Mandetta levou para Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados uma nova proposta de organização do Ministério da Saúde na qual a SESAI seria extinta e suas funções incorporadas à recém-criada Secretaria Nacional de Atenção Básica.
A SESAI é a secretaria responsável por coordenar a parte do Sistema Único de Saúde (SUS) que estabelece o acesso à saúde para quem é originário das terras brasileiras. O Subsistema de Saúde Indígena está previsto em lei desde 1999, só saiu do papel em 2010 e menos de 9 anos depois pode ser completamente reconfigurado.
A mudança não é só de caixinhas no organograma federal. A proposta do ministério era de transferir a Saúde Indígena para a gestão dos município.
Foi o estopim para o levante no dia 27 de março. Protestos indígenas pipocaram país afora. Foram mais de 30 atos simultâneos contra o desmonte na saúde indígena.
Em São Paulo, os Guarani ocuparam a prefeitura da cidade. Em Manaus, 66 etnias lotaram as galerias da Assembleia Legislativa. No Ceará, os Tapebas fecharam a rodovia BR 222. No Maranhão, a BR 316 foi interditada pelos Tupinambás, e no Rio Grande do Sul, os Kaingangs interditaram a BR 285.
Um dos 30 protestos simultâneos contra o desmonte da saúde indígena ocorreu na Rodovia BR-101, no trevo Monte Pascoal.
Matsa Yanawa, da aldeia Nova Esperança (AC), conta a dimensão da revolta. “Foram homens e mulheres e crianças que fecharam as estradas. Foi no meio da estrada e impediram o caminhão, os carros passar. Foram pro rio, onde trafega várias pessoas. Fecharam”.
Yanawa lembra dos problemas que a saúde indígena teve ao ser municipalizada em período anterior. “Já teve experiência da municipalização. Que a prefeitura não sabia dialogar com os povos indígenas e o dinheiro que chegava era desviado pra outros fins e os povos indígenas ficavam à mercê”.
Para Roberto Liebgott, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a municipalização da saúde indígena corresponde a “colocar madeireiro para cuidar da Amazônia”.
“Em geral, nos municípios, estão localizados os maiores inimigos dos índios. Por conta dos interesses econômicos, especialmente na perspectiva de demarcação de terra. Os municípios são contra porque preferem que a terra seja entregue para a exploração”.
Roberto reconhece que é possível encontrar prefeitos sensíveis às questões indígenas, mas lembra que essa sensibilidade pode sofrer reviravoltas a cada eleição.
A ideia da municipalização também assusta Piatã Pataxó, da Gurita. “Nós já passa a dificuldade que passa, imagina se a gente sair pro município, né? A dificuldade vai ser maior do que a gente imagina. Porque a gente já tem uma parte da nossa saúde que já é do município e não funciona. Aconteceu um enfarto aqui e eles [serviço municipal de saúde] se recusaram a atender”.
A coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas no Brasil, Sônia Guajajara, cobrou o compromisso durante audiência pública, em 11 de março. “Municipalizar a saúde, neste momento, para nós é declarar um genocídio. É um genocídio declarado, porque os municípios nem estão preparados e nem querem atender os povos indígenas. Que o ministro garanta sua posição”.
A proposta também foi recebida com reticências por prefeitos em razão da sobrecarga orçamentária que isso poderá gerar.
Os municípios do Paraná divulgaram uma nota contra a municipalização apelando para as “peculiaridades dos povos indígenas”. Em São Paulo, o prefeito Bruno Covas (PSDB), fechou acordo com os Guarani, que passaram dois dias acampados em frente à prefeitura, e se colocou contra a municipalização.
Já o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), sequer foi consultado pelo Mistério da Saúde. Disse, em nota, que “desconhece as propostas para a municipalização da saúde indígena, tendo em vista que nenhum grupo de trabalho foi efetivamente formado ou documento apresentado.”
No dia seguinte ao levante, o ministro Mandetta voltou atrás da proposta de acabar com a SESAI. O recuo foi registrado em vídeo que circulou pelas redes de whatsapp. As mesmas utilizadas para organizar o levante indígena do dia 27.
Os índios achavam que deveriam permanecer como Secretaria Especial de Saúde Indígena. O Ministério achava que deveria se somar à nova Secretaria Nacional de Atenção Básica e Indígena, para ficar mais forte. Como os índios acham que devem permanecer nós vamos manter a SESAI”.
Na primeira semana de abril, as pessoas que trabalham na Saúde Indígena começaram a notar sinais de que as atividades vão ser retomadas. Mas até o fechamento desta reportagem, as atividades de rotina seguiam paradas.
Por outro lado, o Ministério da Saúde nega a interrupção das atividades nos 34 DSEI e informa, em nota, que “já foram autorizados os recursos destinados às entidades conveniadas que prestam serviços para assistência à saúde indígena”.
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Indígenas denunciam o desmonte da saúde pelo governo Bolsonaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU