24 Abril 2019
"Municipalizar a saúde indígena seria retornar ao período anterior, aquele que o SUS não os alcançava, devido às barreiras cultural-linguísticas e à discriminação da medicina tradicional indígena. Seria também desconsiderar os conflitos que envolvem suas terras e os que estão no poder político local, além de ignorar as condições de vulnerabilidade dessa população", escrevem Leonardo Barros Soares, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais e Pollyanna dos Santos, mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais.
O Governo Bolsonaro é tão pródigo em escândalos e decisões políticas polêmicas que o “prazo de validade” de uma controvérsia dificilmente dura mais de uma semana. Uma delas, especialmente relevante para os povos indígenas brasileiros, foi a declaração do Ministro da Saúde (MS), Luiz Henrique Mandetta, no último dia 20 de março, de que a Secretaria Especial de Saúde Indígena – a Sesai– seria extinta. Embora não dito explicitamente, ficou claro nas entrelinhas que a assistência à saúde indígena deixaria de ser responsabilidade federal e passaria ao âmbito municipal. A reação das lideranças indígenas foi imediata, e o barulho feito foi tanto que o ministro teve de recuar. A Sesai continua, pelo menos por enquanto. Mas, aproveitando o fato de que o tema da saúde indígena ganhou alguma projeção nacional no debate político, cabe perguntar: o que esta secretaria faz exatamente e qual a sua real importância para o cotidiano dos povos indígenas do país? Para além disso, o que a Ciência Política e os estudos sobre políticas públicas podem nos ensinar sobre a implementação da política de saúde indígena? Este texto pretende responder a estas duas questões.
Iniciada em 2002, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) formalizou a construção de uma política pública de saúde diferenciada que, desde 1999, com a Lei Arouca (9.836), já estava sendo formatada para ser integrada ao Sistema Único de Saúde (SUS), mas com uma lógica organizacional, administrativa e de prestação do serviço de saúde própria. Assim foi criado o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS), estruturado em 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) e que seria gerido pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), agência executiva do MS. Esses DSEIs são unidades delimitadas por características étnico-culturais e segundo o acesso aos serviços de saúde no território, e não de acordo com os limites geográficos dos estados e municípios. O financiamento é de responsabilidade da União, diferentemente da lógica padrão do SUS que atribui os gastos em saúde aos três níveis de governo (União, Estados e Municípios). Por sua vez, a prestação das ações de saúde é realizada pelas Organizações Não Governamentais (ONGs), contratadas de forma terceirizada por meio de convênios, visto que já realizavam essas ações anteriormente à ação estatal.
A implementação de uma política pública é considerada a fase mais crítica no ciclo de políticas, pois envolve adaptação e ajustes a fim de alcançar um arranjo que dê conta dos desafios de sua execução. A municipalização da saúde indígena não poderia ser considerada um ajuste de implementação, pois significaria a desconstrução total desta política em seu objetivo norteador: ser uma política diferenciada que atende efetivamente às demandas de atenção aos povos indígenas. Ou seja, municipalizar a saúde indígena seria retornar ao período anterior, aquele que o SUS não os alcançava, devido às barreiras cultural-linguísticas e à discriminação da medicina tradicional indígena. Seria também desconsiderar os conflitos que envolvem suas terras e os que estão no poder político local, além de ignorar as condições de vulnerabilidade dessa população no aspecto epidemiológico – os níveis de saúde dos povos indígenas são extremamente precários e discrepantes em relação à população não indígena.
Diante dessas complexidades, percebemos a importância que uma política diferenciada de saúde pública e de gestão federal apresenta para a sobrevivência dos povos originários no país. Além disso, consideramos este processo de implementação da PNASPI ainda recente e, portanto, as falhas percebidas na execução desta política deveriam ser motores para seu aperfeiçoamento, não para seu desmantelamento.
A passagem da gestão da saúde indígena da Funasa para a Sesai, em 2010, teve, como base, acusações de corrupção naquela fundação. Além disso, foi acusada de não dialogar bem com a população indígena e de tomar decisões de forma unilateral, atuação contrária à Convenção Internacional 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, e às diretrizes da PNASPI. A Sesai, por sua vez, foi concebida para implementar a PNASPI de acordo com seus princípios norteadores, como a participação efetiva dos usuários indígenas em todas as decisões e abordando todas as complexidades às quais aludimos no início deste texto. Neste sentido, como podemos perceber pelas mobilizações recentes dos povos indígenas, a Sesai é considerada uma conquista deles. Há muito o que melhorá-la, mas extingui-la não é a solução.
Você, que leu este texto até aqui e já fez uso dos equipamentos de saúde públicos nas cidades brasileiras, sabe das dificuldades da população em ter acesso a serviços básicos. Agora só imagine, por um segundo, viver numa terra indígena nas entranhas do Brasil profundo, muitas vezes só acessível por avião ou muitas horas de barco e tenha sido picado por uma cobra, ou esteja com alguma enfermidade grave, e não existir nenhuma estrutura ou órgão governamental nas proximidades preparado para te atender. Consegue imaginar sem ter um calafrio?
Não devemos ter dúvidas: está em curso um processo paulatino de desmonte da política indigenista, iniciado a partir do segundo governo Dilma Rousseff e intensificado e articulado de forma explícita pelo Governo Bolsonaro. O ataque à política de saúde indígena é apenas mais um capítulo deste governo que, como bem disse o presidente, não veio construir nada, mas desconstruir.
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O fim da política de atenção à saúde indígena e o desmonte da política indigenista brasileira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU