15 Março 2019
Em seu décimo ano, Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia, no Polo da Borborema, homenageia vereadora carioca, no primeiro aniversário de sua morte; expectativa é reunir 5 mil pessoas.
A reportagem é de Helena Dias e Inês Campelo, publicada por De Olho nos Ruralistas, 14-03-2019.
Quem chega em Remígio (PB) logo percebe que as chuvas das últimas semanas vestiram de esperança a vegetação da cidade, como se fosse para contrastar com o lilás da 10ª Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia. Desde segunda, a Marco Zero Conteúdo, em parceria com o De Olho nos Ruralistas, está no município do agreste paraibano para sentir o clima da mobilização e conhecer algumas das líderes que compõem o movimento camponês do Polo da Borborema – rede de 13 sindicatos de trabalhadoras e trabalhadores rurais.
A reportagem ficará na cidade para acompanhar a marcha que acontecerá nesta quinta-feira (14). É o décimo ano da manifestação organizada pelas agricultoras e agricultores do Polo com o apoio da associação AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia. Cerca de 5 mil mulheres são esperadas para a marcha que tem como tema o combate ao racismo e a homenagem à vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), assassinada em 14 de março de 2018.
Nas paredes da casa de Terezinha da Silva, de 65 anos, há santos e terços a perder de vista. O ambiente contrasta com o rosto de Margarida Maria Alves, sindicalista e defensora do povo camponês assassinada há 36 anos, estampado na camisa da Marcha das Margaridas vestida por Terezinha. Para ela, a fé religiosa e a luta andam juntas há quarenta anos, desde que começou a participar das mobilizações organizadas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Foi na luta por direito a aposentadoria para as trabalhadoras e os trabalhadores rurais que Terezinha se descobriu sujeita política. “Fui vendo que o dia a dia do cristão batizado não é só ficar em casa”, afirma. “Tirar um tempo para batalhar por condições melhores é muito importante. Quem é dona de casa precisa saber que criar os filhos e cuidar do roçado junto ao esposo é bom, mas a luta também”.
Ao começar a militar junto à CPT, ela conta que enfrentou resistência por parte do pai e do marido, mas mesmo assim não desistiu e partiu “não só para a oração, mas para a ação”. Sempre acompanhada das duas filhas mais velhas, ia às reuniões coordenadas pela Diocese de Guarabira (PB) e aos outros eventos da pastoral.
Quando a primeira luta longe de casa surgiu, teve de deixar as filhas sozinhas. As duas adolescentes assumiram os cuidados da mais nova, com apenas 5 meses, e Terezinha seguiu rumo a Belo Horizonte (MG) para participar das mobilizações que resultaram na conquista da aposentadoria rural para os trabalhadores do campo, garantida pela Constituição. Diz que ficou com saudade de casa, mas sabia que não podia recuar.
“Saímos em seis ônibus de João Pessoa, treze dias mobilizadas no Mineirão”, lembra Terezinha. “Só Deus, eu e minhas companheiras sabemos o que tivemos que passar no caminho para chegar lá. Mas estávamos muito bem orientadas e foi a chance que tivemos de lutar pela nossa aposentadoria”.
Terezinha também participou da luta pela inauguração da primeira sede do Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste construída na Paraíba. Foi diretora do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Solânea e, atualmente, dá continuidade à sua atuação política com o engajamento das filhas, que seguem o rumo da mãe.
Com uma vida dedicada às lutas pelos direitos do campesinato, ela teme que a reforma da previdência do governo Bolsonaro seja aprovada e retire os direitos conquistados.
Atual diretora do Sindicato de Trabalhadoras e Trabalhadores Rurais do município de Solânea (PB), Maria do Céu Silva Batista de Santana, 40 anos, dá continuidade à luta de Terezinha, principalmente no que diz respeito às reivindicações das mulheres do campo. Esteve com a mãe em várias mobilizações desde muito pequena e só se distanciou dos movimentos em 2001, quando foi morar em São Paulo.
Céu conseguiu conciliar o roçado com os estudos e concluiu o ensino médio. Nesta época, já esperava o primeiro filho, Matheus, e logo depois veio Thiago. Casou-se aos 19 anos. O marido não gostava de trabalhar na roça. Com poucos anos de casamento, mudou-se para São Paulo em busca de trabalho. Céu continuou em Solânea. Mais tarde, seguiu os caminhos de Thiago, mas não conseguiu se adaptar à vida na cidade grande. “É muita gente e nós tínhamos que morar em um quartinho muito pequeno”, lembra.
O motivo que levou Céu a sair da Paraíba não fazia mais sentido, já que sua rotina de trabalho não conciliava com a do marido e o cuidado com os filhos só ficava a cargo dela. Foi quando decidiu voltar para o campo com os dois filhos e tentar construir a própria casa. Pouco tempo depois, veio a separação. Seu esposo levava em média de um a dois anos para ir a Solânea e impôs uma condição à esposa: não aceitava sua luta nos movimentos sociais. “Chegou uma hora que ele me mandou escolher: casamento ou trabalho”, conta. “Eu escolhi o trabalho, que é onde eu sou mais feliz”.
Céu mora hoje no Sítio Videl, próxima da mãe e de outros familiares. Ela divide a rotina entre a agricultura e o trabalho no sindicato. Afirma que uma das maiores bandeiras das organizações sindicais do Polo Borborema é a divisão justa de trabalho entre homens e mulheres. A camponesa enxerga o tema como um grande desafio na zona rural.
Ela conta com a bagagem e o apoio de Terezinha, assim como suas vivências pessoais para continuar no combate ao machismo no campo. Acredita que o mais difícil “é mudar o machismo que acontece dentro de casa”, mas não vê outra forma de transformar a realidade, a não ser a partir do ambiente doméstico.
– A situação evoluiu. Há companheiras que vivem melhor hoje dentro de casa. Fazemos reuniões com as mulheres e também com os homens sobre os temas da violência contra a mulher, homofobia e racismo.
O filho Matheus Silva de Santana, hoje com 19 anos, se reconhece feminista igual à mãe porque divide as tarefas de casa com ela e o irmão mais novo. “Minha mãe mostrou para a gente o que é ser feminista, não dizendo ‘isso é feminismo’, mas fazendo e colocando em prática”, relata. “O que tiver que fazer, eu faço”.
Matheus se formou no curso técnico de Agropecuária na UEPB, no fim de 2018, e pretende cursar topografia na mesma instituição federal. Quer continuar trabalhando no campo como sua família, mas não necessariamente como agricultor. O irmão Thiago apoia a sua escolha de continuar na roça, mas prefere trabalhar na cidade como garçom.
A luta por um pedaço de chão para o cultivo começou cedo na vida da viúva Anilda Batista Pereira dos Santos, filha de grande família de agricultores em Esperança, no Agreste da Paraíba. Mãe de três filhos, ela viu a possibilidade de ter a terra própria há 19 anos, quando o mais novo ainda não passava dos 30 dias de vida. Foi em um acampamento organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) que esperança deixou de ser só a sua cidade e passou a ser um sentimento.
Por conta do resguardo, Anilda precisou esperar cerca de dois meses, mas o pai, marido e cunhado seguiram na frente e ocuparam as terras improdutivas do fazendeiro Antônio Diniz. “Quando eu vim conhecer o terreno, eu não gostei”, afirma. “Era muito seco. A região onde eu morava era melhor, mas não tinha espaço para todos plantarem. Com o tempo tudo se ajeitou”.
Com pouco mais de um ano, a documentação do assentamento Oziel Pereira tinha caminhado na Justiça. Cinquenta famílias foram assentadas, mas os barracos de lona levaram mais três anos até se transformarem na casa espaçosa e de tijolo onde Anilda mora hoje, na agrovila.
Atualmente, ela mantém um roçado de feijão, fava, milho, macaxeira e hortaliças diversas, no terreno de um hectare, distante cerca de três quilômetros de sua casa. Percorre esse trecho em sua moto. A plantação gera o sustento da família. O excedente ela vende na feira agroecológica de Remígio e uma pequena parte é absorvida pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Com a aproximação ao MST, Anilda conheceu a luta sindical, com a qual se identificou. Segue atuante até hoje. É coordenadora da Associação dos Agricultores e Agricultoras Agroecológicas do Polo da Borborema – conhecida como Ecoborborema -, e cuida das 12 feiras agroecológicas dos municípios que abrangem o Polo.
Os preconceitos enfrentados foram muitos:
– Éramos chamados de invasores a ladrões de terras. As mulheres eram ainda mais esculhambadas. Os moradores de Remígio não nos viam com bons olhos. Tivemos de resistir e enfrentar tudo isso. Lembro bem a cara com que nos olhavam, quando fui matricular minha filha na escola. Negras, pobres, assentadas. Não éramos consideradas pessoas de bem.
No sindicato, também existia preconceito. O machismo imperava nos tempos em que trabalho da mulher era só cuidar da casa. Os homens não lidavam bem com a independência e o empoderamento femininos. “Começamos criando comissões de mulheres tanto no sindicato como na coordenação do Polo e fomos para o campo”, conta Anilda.
Elas faziam visitas de intercâmbio, oficinas de beneficiamentos de frutas, de uso de plantas medicinais, e avançamos pouco a pouco. “Até que o Lula foi eleito presidente e a história mudou de conversa”, conta. “Antes, a realidade era muito diferente. Vieram as cisternas e os fundos rotativos solidários. Continuamos participando e crescendo”.
Até a chegada das cisternas, os períodos de seca massacravam o campo. Após a implementação do Programa de Cisternas, camponeses e camponesas puderam armazenar água para consumo humano, animal e plantio, e organizaram suas vidas. “Implementamos também o banco de sementes comunitário para poder continuar plantando”, conta Anilda. “Com sementes de boa qualidade, garantimos uma melhor qualidade de vida”.
O sentimento de esperança que alimentou o coração de Anilda se multiplicou. “Eu sou uma mulher feliz”, comemora. “Eu planto, colho, alimento meus filhos e netos com qualidade. Aqui, a gente não sabe o que é ir ao médico, só fui pra meus filhos nascerem. Eu tenho qualidade de vida com a agroecologia.
Aos 23 anos, Sidinéia Camilo Bezerra integra a Comissão da Juventude Camponesa do Polo da Borborema, estuda Agroecologia na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e atua como animadora de comunidade na igreja católica da qual faz parte. Este ano ela será candidata a uma vaga no Conselho Tutelar. Deseja ainda se candidatar a vereadora nas próximas eleições municipais, em Remígio (PB).
Nascida no Sítio Caiana, a 30 minutos da cidade, Sidinéia aprendeu a preparar a terra e a plantar nos roçados da família desde pequena. É a quinta dos nove filhos de Josefa e Geraldo e teve a oportunidade de estudar, diferentemente da mãe e do pai, que não concluíram os estudos. Seu “batismo” nos movimentos sociais aconteceu em 2001, quando teve contato com as mobilizações das agriculturas e dos agricultores locais, na Campanha da Infância e da Juventude daquele ano, realizada pela AS-PTA.
Hoje ela se identifica como “mulher negra, agricultora e feminista”. Ressalta que sua atuação é fruto de muitas desconstruções sociais e pessoais. “Fui criada ouvindo que trabalho de mulher é dentro de casa, enquanto meus irmãos só ficavam na roça”, diz. À medida que começou a participar ativamente da comissão e a debater sobre gênero, passou a questionar a divisão de tarefas no ambiente familiar e a conscientizar os irmãos para ajudarem no trabalho doméstico.
Os debates e transformações não pararam por aí. E não devem cessar tão cedo. As condições de vida e trabalho no campo, assim como o racismo, a homofobia e o feminismo são também os principais temas de discussão entre a juventude local que se engaja socialmente.
Depois de sete anos utilizando produtos químicos para alisar os cabelos, Sidinéia decidiu abandoná-los e assumir os seus cachos. A atitude, encarada apenas como uma opção estética, significou a reafirmação da sua negritude. Ela lembra, com orgulho, ser frequentemente associada à vereadora Marielle Franco.
Marielle é inspiração para Sidinéia. Ela ainda estuda em qual partido se filiará. Diz que escuta muito dos amigos que quer abraçar o mundo. “Eu não quero me candidatar para preencher a cota de mulheres, não”, avisa. “Eu quero atuar, estar nas casas e nas comunidades. Quero trabalhar para o povo”.
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Margaridas e Marielles: quatro histórias de luta camponesa na Paraíba - Instituto Humanitas Unisinos - IHU