20 Fevereiro 2019
Os bispos dos EUA venceram batalhas políticas, com certeza, mas às custas da maior parte de seu capital político. Ao fazer isso, eles não conseguiram persuadir muitos em qualquer sentido pastoral convincente.
Publicamos aqui o editorial do jornal National Catholic Reporter, 18-02-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
À medida que a temporada da campanha presidencial de 2020 começa a se desenrolar e o aborto continua sendo singular na sua capacidade de dividir o eleitorado e abafar todas as outras questões políticas, um pouco da história papal não muito distante pode ser instrutivo.
Em 2001, em uma missa pública em Roma, marcando o fim do ano jubilar da Igreja, o Papa João Paulo II, desde então santificado, distribuiu a Comunhão ao prefeito de Roma, Francesco Rutelli, um católico e político de alto nível que anteriormente liderara a campanha de seu partido pela liberalização do aborto.
Esse fato foi notado pelo escritor vaticano conservador Sandro Magister, durante a disputa sobre a candidatura presidencial de John Kerry, católico, em 2004. Magister na época estava comentando uma nota do então cardeal Joseph Ratzinger sobre o tema do aborto, dos políticos e da Comunhão, assim como sobre a discussão entre os bispos dos EUA sobre se o então senador deveria ser impedido de comungar por causa de suas opiniões permissivas sobre o aborto.
Embora Magister concluísse que a diretriz de Ratzinger acabaria no lado da recusa da Comunhão – os bispos dos EUA votaram por deixar essa decisão aos bispos individuais –, ele fez uma menção especial do fato de que “o rigorismo de Ratzinger e da Santa Sé viveram durante anos lado a lado, na Itália e no resto da Europa, com uma prática mais flexível, até mesmo nos níveis mais altos da Igreja”.
Ele lembrava, especificamente, o incidente em que Rutelli recebeu a Comunhão de João Paulo II. Além disso, Magister observava: “Na Itália, durante a década de 1970, outros políticos de esquerda ainda mais ligados do que Rutelli ao setor católico, como Piero Pratesi e Raniero La Valle, deram forte apoio à introdução da lei do aborto. Mas a Comunhão nunca lhes foi negada. Isso sequer foi discutido”.
Dois anos depois dessa missa pública, João Paulo II, em uma missa privada no apartamento pontifício, distribuiu a Comunhão ao então primeiro-ministro Tony Blair, do Reino Unido. Blair, na época, era tanto um político pró-escolha quanto um anglicano. Talvez João Paulo II estivesse ressaltando a tolerância pelas realidades políticas, assim como ousando em termos de ecumenismo.
Qualquer que seja o caso, o exemplo de João Paulo II pode fornecer um bom modelo para os bispos dos EUA, já que alguns daqueles que estão mais inclinados a ser guerreiros culturais parecem ansiosos para lutar com políticos. Há também rumores de ameaças de excomungar o governador de Nova York, Andrew Cuomo, por ter assinado (e por ter celebrado muito a contragosto) a recente lei de liberalização do aborto pelo Estado, que reduz a restrição ao aborto após 24 semanas se a vida ou a saúde da mulher estiverem em risco.
Para seu crédito, o cardeal de Nova York, Timothy Dolan, que aponta corretamente para a violência dos abortos tardios em oposição à lei estatal, também afirmou rapidamente que a excomunhão não deveria ser usada como arma ou por frustração.
Nova York não é o primeiro a liberalizar suas leis de aborto, e se espera que outros Estados sigam com a crescente possibilidade de que a Suprema Corte reverta o Roe versus Wade [caso judicial em que se reconheceu o direito ao aborto].
Ao mesmo tempo, se os bispos avaliassem honestamente o que eles conquistaram depois de mais de 40 anos de uma política unilateral e monotemática, eles podem repensar. Como eles tiveram mais de quatro décadas para persuadir tanto os católicos quanto a cultura em geral sobre a sabedoria do ensinamento da Igreja, qualquer medida razoável poderia chamar o esforço como um fracasso monumental.
Um estudo realizado no ano passado pelo Centro de Pesquisas Pew sobre Religião e Vida Pública concluiu: “Embora o aborto seja uma questão controversa, mais da metade dos adultos dos EUA assumem uma posição não absolutista, dizendo que na maioria dos – mas não em todos os – casos o aborto deveria ser legal (34%) ou ilegal (22%). Menos assumem uma posição de que em todos os casos o aborto deveria ser legal (25%) ou ilegal (15%)”.
O único grupo religioso que registrou uma maioria (61%) que acha que o aborto deveria ser ilegal em todos ou na maioria dos casos foi o dos protestantes evangélicos brancos.
“Por outro lado, 74% dos norte-americanos religiosamente não afiliados dizem que o aborto deveria ser legal em todos ou na maioria dos casos, assim como dois terços dos protestantes históricos brancos (67%)”, concluiu o estudo. Talvez o mais surpreendente seja que, entre os católicos, 51% dizem que o aborto deveria ser legal em todos ou na maioria dos casos, enquanto 42% afirmam que ele deveria ser ilegal.
Em outras palavras, enquanto a política resultou em uma Suprema Corte compacta que poderia muito bem derrubar o Roe versus Wade em um futuro não muito distante, a agulha não se moveu muito em termos da cultura geral. Os números não mudaram muito ao longo das décadas. Desde o início, os extremos determinaram os termos do debate. O amplo meio, que teria uma influência moderadora, permanece praticamente não ouvido e irrelevante.
Talvez a aprovação da lei de Nova York estimule uma reação adversa, como alguns previram. Mais provavelmente, se o Roe versus Wade for derrubado, os extremos terão dezenas de Estados para continuar uma luta que parece não ter um fim satisfatório.
No mundo católico, o principal debate não é sobre o ensino da Igreja, embora existam moralistas e legalistas e certamente mulheres dentro da tradição, mas fora da estrutura de poder que levantam questões exigentes. O debate mais imediato é sobre táticas no mundo real. Qual a melhor maneira de levantar a seriedade da questão? Combater a necessidade dela? Combater leis que permitam-na sem limite? Persuadir os outros – incluindo os católicos, se devemos acreditar nas pesquisas – a um determinado ponto de vista?
Os bispos, infelizmente, ajudaram a alimentar um dos extremos. Durante 46 anos, eles agiram com boletins infinitos, marchas em Washington, ameaças contra políticos, as palavras mais duras contra mulheres que poderiam até levar o aborto em consideração, e alianças políticas que colocaram em risco outras partes importantes do ensino social da Igreja. Tudo isso para acomodar essa única questão.
Eles venceram batalhas políticas, com certeza, mas às custas da maior parte de seu capital político. Ao fazer isso, eles não conseguiram persuadir muitos em qualquer sentido pastoral convincente.
Eles tiveram sucesso, ao contrário, ao endurecer opiniões e posições. Em anos mais recentes, eles se posicionaram de modo a ser rotundamente criticados como hipócritas. Eles são membros de uma cultura cúmplice na racionalização do encobrimento daquilo que alguns chamaram com precisão de “assassinato da alma” de crianças abusadas, enquanto protestavam contra o ataque de crianças no útero. Eles consideraram que essa era a maneira conveniente para lidar com esse problema.
Os bispos podem chegar a aplaudir a derrubada do Roe versus Wade, mas terão feito pouco para frustrar as forças que se alegram por terem conseguido minimizar com sucesso a gravidade do aborto. As táticas da hierarquia na praça pública nunca permitiram que os não convencidos levassem em consideração verdades mais profundas sobre a vida e a necessidade de protegê-la.
A tecnologia certamente nos permitiu entender o desenvolvimento fetal de uma maneira mais íntima e com uma clareza impressionante. Isso em si convenceu alguns a moderarem seus pontos de vista. Mas os avanços compensatórios na ciência permitem cada vez mais a detecção precoce da gravidez e um acesso muito mais fácil ao aborto farmacêutico realizado em privado.
Se o respeito pela vida em todas as suas fases é o bem último, algumas vitórias políticas ou a vitória na Suprema Corte provavelmente ficarão muito aquém desse objetivo. Talvez João Paulo II tivesse um quadro maior em mente.
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João Paulo II, modelo para o debate sobre o aborto? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU