05 Fevereiro 2019
Por meio de uma carta às instâncias brasileiras e internacionais, indígenas da Bahia asseguram que não desistirão da luta por seu território.
A notícia é publicada por Conselho Indigenista Missionário - Cimi, 04-02-2019.
Lideranças da aldeia Serra do Padeiro, na Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, produziram uma carta reafirmando que não vão desistir da luta pelo seu território, cuja demarcação foi suspensa em 2016. O texto traz um relato sobre a história dos indígenas desde a chegada dos colonizadores até o presente. Na carta, pedem às instâncias do governo brasileiro e aos organismos internacionais que tomem as medidas necessárias para a preservação dos direitos indígenas.
“Nós somos o primeiro povo de contato do país e não vamos deixar de continuar ocupando o nosso território, independentemente das determinações do novo presidente”, afirmam as lideranças.
Os indígenas fazem também um alerta de que as proposições do governo Bolsonaro são um decreto de morte à várias etnias. “Queremos a garantia dessas autoridades: todos nós, após sermos mortos, temos que ser enterrados no pé da serra. Não abrimos mão de ser enterrados no lugar onde formos assassinados, dentro do nosso próprio território, uma vez que nós nunca aceitaremos sair”.
“Vocês não têm para onde nos levar, porque nós nunca fomos de outro lugar. Que vocês fiquem sabendo: ninguém nunca governou e nem vai governar os Tupinambá da Serra do Padeiro”
Os Tupinambá da Serra do Padeiro pedem que a carta seja tão veiculada quanto possível, para que as entidades de defesa de seus direitos sejam alertadas e possam tomar providências. Ela está disponível em português, inglês e francês: leia aqui.
Leia a carta na íntegra abaixo ou clique aqui para acessá-la em PDF.
Aldeia Serra do Padeiro, 19 de janeiro de 2019.
Ao Exmo. Sr. José Antonio Dias Toffoli Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e Presidente do Conselho Nacional de Justiça do Brasil
À Exma. Sra. Raquel Dodge Procuradora-Geral da República do Brasil
Ao Exmo. Sr. Eunício Oliveira Presidente do Senado Federal do Brasil
Ao Exmo. Sr. Rodrigo Maia Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil
Ao Exmo. Sr. João Cravinho Embaixador da União Europeia no Brasil
À Exma. Sra. Victoria Tauli-Corpuz Relatora da Organização das Nações Unidas para os Direitos dos Povos Indígenas
Ao Exmo. Sr. Luis Almagro Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos
Em 15 de maio de 2016, denunciamos mediante uma carta a decisão liminar proferida em 5 de abril daquele ano pelo então ministro Napoleão Nunes Maia Filho, do Superior Tribunal de Justiça, suspendendo a demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. A decisão foi anulada por unanimidade pelo STJ em 14 de setembro de 2016. Hoje, nós, os Tupinambá da aldeia Serra do Padeiro, uma das comunidades que vivem nesse território, apresentamos uma nova denúncia, contra as determinações do presidente da República, Jair Bolsonaro, e solicitamos às instâncias do governo brasileiro e aos organismos internacionais que tomem as medidas necessárias para impedir que nossos direitos continuem sendo violados. Apenas nos últimos anos, mais de 30 Tupinambá foram mortos. Há violência maior que vermos nossos parentes assassinados, ninguém responsabilizado, e ainda nos negarem o direito a nossa terra?
Em sua campanha, Bolsonaro, atacou constantemente as comunidades indígenas, nos tratando de forma hostil e afirmando que, a partir do início de seu mandato, mais nenhum centímetro de terra seria demarcado para os indígenas. Após eleito, ele começou a cumprir suas promessas, por medidas provisórias e por decretos presidenciais, revogando direitos indígenas adquiridos no decorrer de anos de luta. Transferiu a Funai para outro ministério e deixou claro que, para ele, o meio ambiente não é importante. O importante é abrir as terras indígenas para a exploração de forma geral, de grileiros, do agronegócio, de madeireiros, da mineração. Dada a gravidade da situação, apresentamos novamente um relato histórico sobre o que nosso povo vem enfrentado nestes 500 anos, bem como um novo pedido. Apesar de toda a violência, nunca saímos e nunca sairemos de nossa terra.
Em 1500, quando aqui os europeus chegaram, logo declararam que os Tupinambá eram inimigos da Coroa portuguesa e tinham que ser exterminados e expulsos de seus territórios. Na Capitania de São Jorge dos Ilhéus, fomos escravizados nos engenhos de cana-de-açúcar, reagimos e sofremos a retaliação da Coroa portuguesa, no massacre comandado por Mem de Sá, em 1559. Então, nosso povo teve que lutar contra os franceses, na Confederação dos Tamoios. Depois, tivemos que lutar contra os holandeses, para expulsá-los da Bahia. E sempre nos eram negados os nossos direitos.
Em 1680, criaram o aldeamento jesuítico de Nossa Senhora da Escada, para aprisionar os Tupinambá. No aldeamento, eles se esforçaram para tirar a nossa língua, a nossa crença, a nossa religião – para nos tirar tudo. Mas os Tupinambás sempre tiveram a rebeldia de lutar para não deixar que os outros ocupassem completamente o nosso território. Quando o governo percebeu que, apesar do aldeamento, continuávamos crescendo, decidiu que ele teria que ser extinto e elevado à situação de vila, o que aconteceu em 1758. Nesse período, os Tupinambá passaram a ter alguns direitos, como o de eleger vereadores para a Câmara de Olivença, que chegou a ser presidida por um indígena, Nonato do Amaral. Porém, os brancos mandaram destituí- lo. Os índios resistiram e mataram os homens enviados para assumir a Câmara.
Nonato do Amaral foi preso e a pressão dos brancos aumentou muito. Para expulsar os índios, determinaram que, dali em diante, ficava proibida a construção de casas de taipa na vila, pois sabiam que os indígenas não tinham condições para construir casas de tijolos. Assim, os brancos foram se apossando da vila de Olivença, erguendo casas de veraneio e hotéis.
Participamos das lutas, aqui na Bahia, para provocar a independência do Brasil. E, depois, tivemos que ir para a Guerra do Paraguai. Para que os filhos dos coronéis de cacau fossem poupados, arregimentaram os índios da nossa família para guerrear no lugar deles e prometeram que, quando voltássemos, nos deixariam livres em nosso canto. Voltamos vivos, mas a promessa não foi cumprida: continuamos, sempre, sem direito à terra. Na década de 1920, determinaram que teria que ser construída uma ponte ligando a cidade de Ilhéus a Olivença, para que os brancos pudessem ocupar mais rapidamente o nosso território. Marcellino José Alves, Tupinambá, reage, convocando o povo a não permitir a construção da ponte, é duramente perseguido e preso seguidas vezes, até que, em 1937, desaparece.
Em 1926, o Ministério da Guerra demarcou 50 léguas em quadra, para os Pataxó, Tupinambá e Aricobé. Mas, depois, a reserva Caramuru-Paraguaçu foi reduzida para 54 mil hectares. Nessa época, fomos declarados comunistas e perseguidos pelo governo de Getúlio Vargas, o que nos levou a viver na clandestinidade durante anos. Quem mandava então na região era o Doutor Almeida – aqui, todo mundo era “doutor” –, que tinha muitos homens armados sob seu poder e tratou de redistribuir as terras dos Tupinambá para os brancos. Os índios que resistissem eram mortos ou deportados, levados para o aldeamento de Santa Rosa ou para o Monte Pascoal. Mesmo assim, nós reagimos. O governo brasileiro, percebendo que não poderia simplesmente nos expulsar, tentou nos transformar em agricultores. Dividiu nossas terras em pequenos lotes, para que vivêssemos aprisionados junto aos brancos. Nós trabalhávamos e trabalhávamos, e então o delegado de polícia invadia nossas terras, dizendo que o fazendeiro havia denunciado que o cacau que estava secando em nossas barcaças pertencia a ele. O delegado vinha com a polícia, armada, juntava o cacau que nós havíamos colhido, levava embora e nós ficávamos com fome. Muitas mulheres foram estupradas e até as crianças tinham que trabalhar para os brancos, a troco de nada. Essa foi nossa luta até a década de 1980.
E agora, depois que conseguimos que o governo realizasse os estudos para a demarcação da terra, quando conseguimos provar que nós existimos e que estamos no mesmo lugar, sofrendo o mesmo massacre, o governo brasileiro volta a nos atacar. A imprensa continua fazendo o que sempre fez: dizendo que somos falsos índios, que somos selvagens e temos que ser mortos. Como sempre, os juízes continuam ao lado dos invasores, dando sempre ganho de causa para os não índios e transformando a nossa vida inteira em um inferno.
Em 2008, nossa aldeia foi atacada por 180 policiais, com viaturas, helicóptero e rabecão. Eles atiraram com armas .50, soltaram bombas em nossas cabeças, fizeram de tudo. Em 2009, cinco índios foram torturados pela polícia com choques elétricos. De 2013 para 2014, o governo ocupa a nossa casa, cria bases militares dentro de nossa terra, para tentar nos coagir. Mesmo assim, como sempre, não saímos do nosso território. De lá para cá, mais de 30 índios foram assassinados e ninguém foi preso. Só os índios são presos, com base em falsas acusações e flagrantes forjados. O juiz federal de Ilhéus, Lincoln Pinheiro Costa, disse que precisamos entrar em acordo e ceder parte de nossa terra. Ele alegou que nossa terra tinha que ser demarcada em “ilhas”, deixando a praia do lado de fora. Como é que os Tupinambá da praia ficarão sem praia? O juiz afirmou que era preciso “pacificar” a região. Nós perguntamos: pacificar para quem? Porque quem está morrendo somos nós, quem está sendo enterrado ao longo da história somos nós. Agora, temos que ouvir do novo presidente, Jair Bolsonaro, que nenhuma terra indígena será demarcada.
Assim, nos dirigimos às diversas instâncias do governo brasileiro e às instâncias internacionais, e pedimos novamente: ou devolvam as nossas terras ou, simplesmente, parem de dizer que nós não somos Tupinambá: mandem nos matar, em menos de um ano, e coloquem o branco em nosso lugar. Mas tomem uma decisão já. Nem os adultos, nem as crianças podem viver neste inferno. Estamos em nossa terra, trabalhando, e, quando menos esperamos, a polícia chega para nos expulsar. Nos últimos anos, a polícia tentou nos matar dezenas de vezes. Vejam a gravidade do que dizemos: nós não estamos nos referindo a ações de fazendeiros ou empresários; é o governo brasileiro, através de sua polícia, que vem tentando acabar com a comunidade a qualquer preço. Como vamos enfrentar uma luta desta? Qual é a chance que nós temos de vencer?
Vocês não têm para onde nos levar, porque nós nunca fomos de outro lugar. Os fazendeiros e os empresários dizem que nós não somos os ocupantes tradicionais desta terra. Não são eles que têm que dizer, somos nós, que habitamos aqui, são os velhos que ainda vivem na terra e têm histórias, muitas histórias, com o branco sempre infernizando a vida deles. O que sabemos é que o Judiciário brasileiro tem sempre uma desculpa para manter tudo na mão dos invasores. Sempre. Que vocês fiquem sabendo: ninguém nunca governou e nem vai governar os Tupinambá da Serra do Padeiro.
Escrevemos esta carta a pedido dos nossos encantados. Se, em nível internacional, já se discutem garantias jurídicas para entidades não humanas enquanto sujeitos de direitos sobre seus territórios – ver Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007) –, o presidente eleito sequer considera os direitos dos seres humanos, nós, os povos indígenas.
Com esta nova carta, nós, Tupinambá da aldeia Serra do Padeiro, queremos deixar informadas as autoridades brasileiras e internacionais que não concordamos com a atitude do novo presidente. Ele afirmou que não vai demarcar nenhum centímetro de terra indígena, que as terras indígenas demarcadas serão revistas e abertas para exploração de terceiros. Nós somos o primeiro povo de contato do país e não vamos deixar de continuar ocupando o nosso território, independentemente das determinações do novo presidente. Com as suas palavras, ele está inflamando o ódio e a intolerância contra os povos indígenas, acirrando um clima de tensões e violências.
Diante de tais determinações, nós estamos cientes de que ele decretou a morte de várias etnias. Decretou a nossa morte, a morte dos Tupinambá, uma vez que nós não vamos permitir acesso a grileiro ou qualquer tipo de invasor. A nossa terra é uma terra sagrada, exclusiva para nós. Lutamos durante mais de 500 anos e enfrentamos de tudo até agora. Então, diante dessas ameaças, e sabendo que agora o presidente está colocando as suas medidas para o Congresso decidir, nós, da aldeia Tupinambá de Serra do Padeiro, já ocupamos nosso território. Garantimos às autoridades brasileiras e internacionais que, se essas medidas forem consolidadas, nós, Tupinambá, seremos todos assassinados, porque não vamos ceder, não vamos recuar. Queremos a garantia dessas autoridades: todos nós, após sermos mortos, temos que ser enterrados no pé da serra. Não abrimos mão de ser enterrados no lugar onde formos assassinados, dentro do nosso próprio território, uma vez que nós nunca aceitaremos sair.
Rosemiro Ferreira da Silva – Pajé Representando a organização religiosa dos Tupinambá da Serra do Padeiro
Rosivaldo Ferreira da Silva – Cacique Babau Representando a organização política dos Tupinambá da Serra do Padeiro
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Povo Tupinambá de Olivença reafirma resistência às medidas do governo Bolsonaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU