05 Dezembro 2018
A cidade de Nevers exibe, de longe, a imagem da douce France, a doce e atemporal França: a torre do sino da catedral, as ruazinhas do centro da cidade com lojas e restaurantes, o vasto campo a apenas dez minutos.
Das margens do Loire, o perfil idílico desta cidade de 35.000 habitantes, situada 250 quilômetros ao sul de Paris, pode causar confusão. Nevers e sua região são um dos lugares onde eclodiu a revolta dos 'coletes amarelos', os franceses cansados de pagar impostos e dos cortes nos serviços públicos.
-- Olhe aquela casa ali longe. Nela mora uma pessoa idosa. Precisa percorrer quilômetros para ir às compras. Dá pra imaginar quanto gasta com combustível?
A reportagem é de Marc Bassets, publicada por El País, 04-12-2018.
Desempregado há seis meses, Michel está há duas semanas em uma rotatória na rodovia A-77. Usa um colete amarelo fluorescente, um item de segurança que tem de ser levado nos carros da França e em outros países. O colete é o símbolo de um movimento que entrou em erupção há três semanas como um protesto dos motoristas contra o aumento dos impostos sobre o combustível —que hoje deve ser revogado, ao menos temporariamente, pelo presidente Emmanuel Macron. No entanto, eles reivindicam muito mais. E o que os une é a rejeição, às vezes visceral, ao mandatário francês.
Como muitos coletes amarelos, Michel desconfia da imprensa —ser de um órgão estrangeiro facilita a tarefa— e não quer revelar seu sobrenome. Ele e outros ativistas construíram uma cabana de madeira no centro da rotatória. Controlam a passagem de carros e caminhões.
"Recebo 900 euros [cerca de 3.900 reais] de seguro-desemprego. Depois de pagar todas as contas, não sobra nada", explica ele. "E tenho dois filhos, de seis e três anos de idade." Ele tem 31 anos.
Antes trabalhava como jardineiro. Sua mulher faz serviços de limpeza. O seguro-desemprego termina no final do ano. Depois, receberá da assistência social 652 euros [2.840 reais] por mês.
Um território esparsamente povoado. Uma situação precária em que milhões de franceses temem cair. Um punhado de franceses irados em um posto de controle improvisado.
O movimento dos coletes amarelos se estende por todo o país. É a França das pequenas e médias cidades e a França rural, onde o carro é uma ferramenta de trabalho e, para muitos, de sobrevivência, e onde o fechamento de um consultório médico e de uma estação de trem são uma condenação ao ostracismo.
Existe uma geopolítica dos coletes amarelos. O departamento de Nièvre, do qual Nevers é a capital, foi em 17 de novembro —o primeiro sábado das manifestações— o de maior densidade de coletes amarelos em relação à população total, de acordo com o cálculo do demógrafo Hervé Le Bras, com base nos dados disponíveis. Le Bras sobrepôs o mapa dos coletes amarelos a outros dois: o dos departamentos que perdem população e o que reflete a distância dos serviços da vida cotidiana.
Os três mapas coincidem em traçar um corredor que atravessa a França do Nordeste ao Sudoeste: departamentos com alta densidade de coletes amarelos, com população em queda e isolamento geográfico. A faixa coincide com o que o geógrafo Roger Brunet chamou na década de 80 de diagonal do vazio. Instaladas na diagonal do vazio —a França vazia, para parafrasear, retomando o título do ensaio de Sergio del Molino sobre a Espanha despovoada-- estão Nièvre e Nevers.
Outros mapas poderiam ser acrescidos. Por exemplo, Nièvre tem uma taxa de desemprego de 7,7%, mais baixa do que a média nacional, de 8,7%. E este departamento não tem sido até agora um reduto da Frente Nacional (FN), de extrema direita, e de sua sucessora, o Agrupamento Nacional, embora avancem a cada eleição.
"Há, sem dúvida, pessoas politizadas no movimento, mas nem a geografia nem a frequência de coletes amarelos nem seus slogans correspondem a uma cor política", diz Le Bras em referência aos coletes amarelos.
A viagem da rotatória na A-77, onde os coletes amarelos protestam, até o centro de Nevers, é breve. Circulam carros com coletes amarelos na frente do para-brisa. É o sinal de uma solidariedade que vai além dos ativistas mobilizados. Do país rural para a cidade velha leva-se 15 minutos. No meio, estradas interrompidas por rotatórias e restaurantes de fast-food, concessionárias, áreas com shopping centers.
A paisagem da França profunda tem um quê da América profunda. Com uma diferença substancial. Este é um dos países mais igualitários, com uma rede social que deixa poucos sem nada e algumas disparidades atenuadas por políticas redistributivas. Nem a França é os Estados Unidos nem Nièvre é o Meio-Oeste. E Nevers não é Detroit, embora a revista Paris Match, para indignação de muitos moradores, dê como título de uma reportagem desta semana ‘Nevers, cidade morta’.
A Paris Match parte de uma realidade inegável: a redução da população e o fechamento de empresas. Um passeio por algumas das principais ruas mostra uma sucessão de lojas fechadas ou em mau estado. Um relatório do Ministério da Economia, publicado em 2016, situava Nevers como uma das quatro cidades francesas de médio porte com mais lojas fechadas, cerca de 22% do total. A migração a partir dos anos 70 para os bairros residenciais nos arredores, acompanhada pela construção de macrocentros comerciais, contribuiu para o declínio.
"De jeito nenhum Nevers é uma cidade morta", responde Jean-Luc Dechauffour, livreiro, presidente da associação de negócios e incansável defensor das lojas próximas em lugar dos hipermercados na periferia. Dechauffour compartilha com os outros o sentimento de injustiça pela imagem tenebrosa que, de Paris, às vezes apresentam de sua cidade. Ele argumenta que o declínio foi revertido. Fala sentado na cadeira da barbearia La Fabrique enquanto cortam seu cabelo. Poderia ser uma barbearia em um bairro hipster de Paris ou Nova York, a outra faceta de uma França de províncias também dinâmicas, na qual não há só lojas fechadas. Antes esta cidade e este departamento votavam nos socialistas, da última vez, em Macron, mas por quanto tempo?
Nièvre foi um feudo de François Mitterrand. Harold Blanot cresceu sob o mito Mitterrand em uma vila perto de Château Chinon, onde o presidente foi prefeito entre 1959 e 1981. Blanot é hoje um dos líderes do Agrupamento Nacional no departamento. "Desde que começou [o movimento de protesto], pedi a nossos eleitores que participassem, mas sem nenhuma bandeira", explica. "A porosidade entre os coletes amarelos e nós é muito forte." Toda crise é uma oportunidade.
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A França esvaziada que explica a revolta dos ‘coletes amarelos’ contra Macron - Instituto Humanitas Unisinos - IHU