13 Novembro 2018
A reunião plenária da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA começou com uma bomba. O cardeal Daniel DiNardo, presidente da conferência, anunciou que a Santa Sé insistia que os bispos dos Estados Unidos não votassem nenhuma ação concreta sobre a crise de abuso sexual do clero, e aguarde a reunião dos presidentes das conferências episcopais anunciada pelo Papa Francisco para fevereiro. DiNardo disse que só soube da decisão do Vaticano ontem à noite.
A reportagem é de Michael Sean Winters, publicada por National Catholic Reporter, 12-11-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Imediatamente, o Cardeal de Chicago, Blase Cupich, tomou a palavra e sugeriu que os bispos continuassem a discussão como planejado, a fim de aconselhar DiNardo antes da reunião de fevereiro. Além disso, pediu que os bispos transfiram a reunião de junho para março, para que possam ter agilidade para implementar as decisões tomadas na reunião de fevereiro, em Roma.
O que está acontecendo? As pessoas cochichavam que o Papa não deveria ter intervindo, certamente não sem nenhuma antecedência. Será que Roma não entende a situação nos Estados Unidos, ou, ainda mais preocupante, ainda não entende a dimensão dos casos de abuso sexual? Obviamente, a surpresa demonstrada por DiNardo mostra a falta de comunicação regular e saudável entre o Papa e a liderança da conferência. Será que Cupich estava tentando maquiar a situação? O que realmente está acontecendo?
Não sabemos. O Papa não fala enquanto dorme, e mesmo que falasse não poderíamos ficar na porta escutando. Mas o lugar óbvio para começar a encontrar uma resposta foi o discurso do arcebispo Christophe Pierre, o Núncio Apostólico, imediatamente após o anúncio. Ele fez algo que muito poucos bispos e observadores fez, ou sequer tentou fazer, ao longo deste ano: introduziu a crise de abuso sexual no contexto eclesiológico mais amplo. Começou dizendo:
Na verdade, os eventos do ano passado, que vivenciamos e continuamos vivenciando, foram desafiadores e graves. Com humildade e coragem apostólica, devemos aceitar nossa responsabilidade como pais espirituais, encarando a realidade com a graça do Senhor. A Igreja sempre precisa de renovação, por sua missão salvífica de mediar a presença de Cristo no mundo, e isso é impossível se não reconstruirmos a confiança do povo de Deus, uma tarefa que, olhando para o futuro, exige tempo, esforço, sacrifício e, acima de tudo, um verdadeiro arrependimento e mudança da nossa parte.
"Nossa responsabilidade"; "impossível se não reconstruirmos a confiança"; "verdadeiro arrependimento e mudança". Depois, ele citou a exortação apostólica programática do Papa Francisco, Evangelii Gaudium: "O que derruba as estruturas obsoletas, o que leva a mudar os corações dos cristãos é, precisamente, o espírito missionário."
As propostas da Conferência dos Bispos dos EUA concentravam-se apenas em procedimentos e políticas para ajudar a policiar o crime de abuso sexual, mas não chegavam à raiz do problema, a cultura clerical que levou os bispos a pensarem mais sobre sua reputação do que sobre o bem-estar das crianças expostas a abusadores sexuais.
Duas metanarrativas competem para prevalecer na resposta dos bispos sobre o caos do abuso sexual: a narrativa de "culpar os gays" que vimos no programa First Things e na EWTN nas últimas semanas e a narrativa da cultura clerical. Pierre claramente se afilia à última:
Choramos pelas injustiças sofridas pelas vítimas de abuso. Prometemos combater a cultura clerical que tolera o abuso de autoridade. Quando ocorrem abusos, o pecado é nosso, e temos de aceitar isso. Não são os pecados da mídia nem produto vastas conspirações. É isso que precisamos reconhecer e corrigir. Nosso Santo Padre afirmou que isso deve acabar, e é verdade — não simplesmente porque ele disse, mas porque o coração de cada um de nós sabe que é o certo a se fazer.
Ele não "culpou os gays". Nem sugeriu que o problema era uma falha na articulação clara da ética sexual da Igreja. Também não falou das queixas e preocupações, muito menos de soluções tecnocráticas e puritanas, discutidas na conferência sobre “Reforma Autêntica” (Authentic Reform) relatada pela colega Heidi Schlumpf. O problema é “a cultura clerical que tolera o abuso de autoridade." Ponto.
E, em contraste com os que minimizam o vínculo entre os bispos e se escondem atrás do fato canônico de que a Conferência dos Bispos não tem autoridade legal sobre cada um deles, Pierre fez uma repreensão clara: "Se estamos juntos, em real comunhão hierárquica — comunhão hierárquica que permeia nossos corações e não é meramente palavras — tornamo-nos sinal visível de paz, unidade e amor, da verdadeira sinodalidade."
DiNardo parecia irritado com o fato de o Papa ter agido em cima da hora, na véspera da sessão plenária. Realmente. Mas a Conferência dos Bispos só distribuiu as propostas na semana passada, então como o Papa poderia agir antes?
Há grandes expectativas para a reunião de fevereiro. Os bispos agora devem discutir a mensagem que querem que DiNardo transmita nessa reunião. Por mais que possam reclamar que os bispos precisavam fazer alguma coisa esta semana, se o problema é a cultura clerical, nenhuma decisão vai corrigir esse problema. O corpo machucado e ensanguentado de Cristo deve estar nesta Cruz da liderança episcopal equivocada por algum tempo. As conversões geralmente não acontecem rapidamente. Muitos dos nossos bispos nunca estiveram na estrada para Damasco, apenas para a irrelevância e o egocentrismo. Eles não caíram do cavalo, caíram do pedestal, e já faz algum tempo.
Acredito que Francisco entende isso, pelo menos grande parte. Ele vê como os bispos dos Estados Unidos se corromperam por dinheiro, de uma forma bastante preocupante, pois são selecionados para a liderança da comunidade cristã principalmente por conseguir arrecadar dinheiro para preservar a instituição e sua imensa e sufocante infraestrutura, e não por seu zelo missionário. Quem espera que a Igreja pode ressurgir das cinzas de agora, também deve esperar que o Papa entenda o quanto o povo de Deus está cansado dessa hierarquia e o quanto confrontar a negligência dos bispos é, para muitos de nós, uma preocupação com os limites: se isso não se resolver em fevereiro, as pessoas já não vão mais querer pertencer a esta Igreja.
Certamente a notícia bombástica abalou a reunião. Mas antes de aceitar o discurso que em breve será noticiado pela mídia que odeia o Papa, não podemos nos esquecer de que nada impediria mais a conversão genuína e a reforma necessária do que um esforço falso de mudança, que só aprove um novo procedimento aqui e crie uma nova comissão ali. Há 16 anos, em Dallas, os bispos promulgavam os procedimentos e políticas que contribuíram para o drástico declínio da incidência de abuso sexual no clero. No entanto, a cultura clerical persiste, e pode ser uma enfermidade ainda mais maligna. Mudar essa cultura vai levar mais do que uma semana, mais do que alguns votos, mais do que uma mera mudança processual. E Francisco confronta essa cultura clerical e pede uma mudança radical desde que foi eleito! É muita hipocrisia ouvir seus oponentes reclamarem agora.
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EUA. Bomba na reunião dos bispos: Vaticano impede votação sobre crise de abusos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU