23 Agosto 2018
“A ausência do Brasil como ator regional na busca da paz na Colômbia, assim como a chamativa passividade diante da crise venezuelana, são exemplos de que o Brasil vai caminhando para se tornar um “anão sul-americano””, escreve Esteban Actis, doutor em Relações Internacionais pela Universidade Nacional de Rosário e pesquisador do CONICET, em artigo publicado pela revista latino-americana de ciências sociais Nueva Sociedad, Agosto/2018. A tradução é do Cepat.
Durante todo o século XX, o Brasil foi um claro exemplo de um intermediate state no sistema internacional. Sua influência esteve associada a atributos clássicos de poder como o território, a população e uma importante economia. No entanto, a carência de recursos militares significativos ou os problemas internos derivados de uma sociedade dual e de ciclos econômicos flutuantes, identificam o Brasil com a maioria dos países em desenvolvimento.
As diferentes formas de internalização – por parte dos construtores de políticas – destas ambiguidades em relação a “quão poderoso” é o Brasil explicam, junto com contextos nacionais e internacionais determinados, as descontinuidades de sua política exterior recente. Entre 1995 e 2015, as percepções daqueles que detêm o poder sobre o papel do Brasil no cenário internacional não foram homogêneas. Não obstante, independente desta situação, a diplomacia brasileira soube dar conteúdo e substância à estratégia de inserção internacional.
Durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), a visão preponderante foi de “periferia moderna”. Em um cenário caracterizado por uma unipolaridade crescente e o auge do multilateralismo liberal, a avaliação dos principais agentes (Celso Lafer, Luiz Lampreia) era que a ordem mundial estava cristalizada (poderes instituídos), razão pela qual o Brasil não podia almejar desempenhar um papel protagonista em assuntos globais, especialmente em uma conjuntura doméstica de instabilidade econômica, política e de alto déficit social.
No entanto, a condição periférica não significava que o Brasil não pudesse ampliar algumas margens de manobra a partir da potencialização da “autonomia pela integração e a participação”. Em outras palavras, mostrar-se como ator central do “regionalismo aberto” e convalidar as regras da ordem internacional liberal no plano multilateral foram as estratégias para mostrar sua condição de potência média moderna, ao lado da expansão do setor privado, aspirando ser um ‘global trader’ na globalização vindoura. Em fins do século XX, as grandes empresas da indústria que sobreviveram à abertura econômica começaram a ganhar mercados na região e no mundo.
A partir de 2003, com a chegada de Lula da Silva à presidência, o Brasil irá sofrer uma mutação em relação à autopercepção e o papel que deveria ocupar no mundo. Em um contexto internacional mais permissivo (crescente multipolaridade e boom das commodities) e de expansão econômica em nível local, os principais construtores de políticas (Celso Amorim e Marco Aurélio Garcia) percebiam que o Brasil precisava tentar evitar a cristalização das relações de poder no plano internacional e assim poder discutir (e redefinir) as regras da ordem global. Para o governo de Lula estavam dadas as condições de que o Brasil havia se convertido em um global player, a partir de uma política exterior “ativa e altiva”, segundo o jargão lulista. Naquele momento, a aposta era aprofundar a dimensão do poder relativa à autonomia (via diversificação dos vínculos externos e soft balancing) e começar a exercer a dimensão relacionada à influência.
Em outras palavras, reforçar a capacidade para resistir pressões externas e conseguir incidir em alguns acontecimentos e resultados. O papel central do Brasil no bloqueio à Rodada de Doha, na Organização Mundial do Comércio (OMC), e a frustrada tentativa de mediar entre o Irã e as potências ocidentais o plano nuclear do primeiro representaram claros exemplos da busca em expandir a influência no plano global.
Embora entre 2013 e 2015 – sob a presidência de Dilma Rousseff –, a intensidade minguou e certos objetivos foram reformulados (recuo brasileiro nas palavras dos acadêmicos Carlos Lessa e Amado Luiz Cervo), a percepção sobre o papel do Brasil no mundo não se modificou. Mesmo assim, a consolidação e a expansão internacional do setor privado, durante toda a primeira década do século XXI (multilatinas brasileiras), contribuíam para fortalecer a percepção de que o Brasil estava para ocupar uma cadeira no Clube dos poderosos.
Com a chegada de Michel Temer ao Palácio do Planalto, em maio de 2016, após o traumático e questionado processo de impeachment, a percepção de seus principais construtores de políticas em relação ao lugar do gigante sul-americano no mundo mudou novamente. Assim como na década de 1990, a ponderação tem estado sobre os déficits e limitações do país na hora de planejar a presença internacional. A grave crise política e econômica (esta última arrastada do governo de Rousseff), somada a um contexto internacional caracterizado por uma redução do auge dos emergentes (exceto China), reforçou a tese de que o Brasil não estava em condições de ser um “ator global”. Caso se rastreie as declarações de José Serra e Aloysio Nunes (Ministros de Relações Exteriores na administração Temer) e se analise as ações da política exterior, é possível interpretar um retorno à “condição periférica” como locus da estratégia de inserção internacional.
A incorporação da noção de “megalomaníaca” à léxis dos servidores brasileiros no governo de Temer (conceito utilizado pelos detratores da política exterior do Partido dos Trabalhadores) coloca implicitamente em relevo a rejeição a uma pretensão de se perceber como um país poderoso. Com Michel Temer, a política exterior brasileira volta a girar sobre a ideia de que o Brasil não é um país poderoso, condição sine qua non para desempenhar uma polícia exterior assertiva.
Desse modo, o dado de destaque e inovador da política externa do Brasil sob a presidência de Temer não é o retorno a uma autopercepção periférica, mas a falta de substância e forma à estratégia de inserção internacional. Diferente da visão de “periferia moderna” implícita nos mandatos de Cardoso, onde se tinha claro o que se queria obter das relações internacionais e por onde transitar para conseguir maiores margens de manobra, o retorno periférico do Brasil está totalmente delineado. Não há construção clara de poder algum e sua estratégia de inserção internacional parece desatualizada.
As tentativas de se mostrar novamente como uma periferia confiável e portadora do status quo da ordem internacional não tiveram boa receptividade. O Brasil pediu o ingresso na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) com o desejo de que sua candidatura fosse aprovada rapidamente, mas após um ano a pertença parece distante. O próprio presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, manifestou publicamente o desejo do ingresso da Argentina na organização, situação que gerou estupor nos círculos políticos e empresariais. Por sua parte, o papel do Brasil no G-20 foi meramente reativo e em muitos dos casos uma dor de cabeça. O custo pago nas idas e vindas na decisão da participação de Temer na Cúpula do G-20, na Alemanha, em 2017, foi altíssimo. Após reverter a decisão de não participar pela grave crise política, o mandatário do Brasil ficou sem nenhuma reunião bilateral importante em Hamburgo.
Por sua parte, os esforços do Brasil para se mostrar como um poder emergente também sofreram um duro golpe nos últimos dois anos. No interior dos BRICS, o papel do Brasil ficou ofuscado à luz da crescente projeção internacional da China e Rússia. Na última Cúpula, em Joanesburgo, a proposta de Xi Jinping de criar “BRICS plus”, incluindo grande parte da África, não foi bem recebida pela diplomacia brasileira, que tem interesses históricos em tal continente. A decisão de Temer de se levantar da reunião com os países africanos, antes de seu encerramento, demonstrou o mal-estar existente sobre o que se considera um avanço a mais da influência da China na África. Em um jogo de soma zero, onde o Brasil se contrai (cortes orçamentários, postos diplomáticos e projetos de cooperação na África e Ásia), os outros “emergentes” avançam.
Nesse contexto, a herança do breve intervalo de Temer no Palácio do Planalto não só marcará o aprofundamento da perda de ferramentas autonomistas, como também, e mais grave ainda, a constituição daquilo que o Brasil como potência média sempre tentou evitar: a dependência. E mais, lentamente Brasília está estruturando uma “dupla dependência” ou “dupla periferia” com Washington e Pequim. Longe de poder girar entre os dois grandes poderes, o Brasil navega em uma subordinação passiva a interesses e demandas externas.
No plano regional, a diplomacia de Temer deixou órfã a política de liderança regional conduzida a motorizar o acordo e a integração com seus vizinhos, ativo da política exterior desde a redemocratização. A busca pela “unidade coletiva” esteve no centro da política exterior brasileira recente, independentemente da percepção sobre o lugar do Brasil no mundo. Cabe apenas mencionar os esforços de Sarney pela integração do Cone Sul, a proposta (falida) de Itamar Franco da Área de Livre Comércio da América do Sul (ALCSA), a concretização por parte de Fernando Henrique Cardoso da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana e, finalmente, a ideia brasileira da Comunidade Sul-Americana de Nações, tornada UNASUL sob os governos de Lula.
O governo de Temer não esboçou nenhuma proposta concreta no que concerne ao regionalismo, exceto a ideia de flexibilizar e “modernizar” o Mercosul com uma aproximação à Aliança do Pacífico. A ausência do Brasil como ator regional na busca da paz na Colômbia, assim como a chamativa passividade diante da crise venezuelana, são exemplos de que o Brasil vai caminhando para se tornar um “anão sul-americano”.
No que diz respeito ao agravamento da situação venezuelana, o Brasil teve um papel de baixo perfil no denominado Grupo de Lima, sem capacidade alguma para liderar tal espaço. A decisão de deserção da UNASUL, único espaço de diálogo sul-americano criado pelo próprio impulso brasileiro é todo um símbolo na noção de “periferia perimida”. Ao invés de propor uma reformulação ou uma nova inovação político-institucional, o governo de Temer apostou em baixar o polegar ao processo de acordo.
Por último, a noção de “periferia dependente” também tem seu correlato na falta de uma visão clara a partir do Estado em relação à internacionalização do setor privado brasileiro. Tanto a ideia de global trader (comércio) como a política das empresas denominadas “campeãs nacionais”, sob os governos de Lula, tinham em comum, independente de seus resultados, uma visão de disputa e conquista de mercados externos via a melhoria na competitividade sistêmica. No entanto, no marco do aprofundamento de um processo de reprimarização das exportações (iniciado nos anos do PT) e do ocaso das multilatinas brasileiras (Petrobras, Odebrecht, Eletrobras, Vale), a estratégia governamental parece estar colocada em aprofundar uma estratégia de agro trader, apostando nas vantagens comparativas.
Nos últimos 25 anos, o gigante sul-americano se autopercebeu tanto como um ator com escassos atributos de poder, como parte da periferia, mas também como um ator emergente com recursos para incidir ativamente no cenário internacional. No entanto, tanto a ideia de “periferia moderna” como a de global player tinham em seu seio, para além das conquistas e resultados alcançados, uma bússola em relação à construção de poder e um conjunto de iniciativas e políticas que lhe davam substância. Desde maio de 2016, o governo de Temer volta a se visualizar como um país sem pretensões de se colar entre os poderosos, mas a partir de um projeto externo sem um norte claro. A política exterior brasileira se edifica a partir de uma “periferia perimida”.
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O mundo não é para Temer. Brasil a caminho de ser um 'anão sul-americano' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU