27 Julho 2018
No dia 26 de julho, completam-se dois anos da morte por degola do padre francês Jacques Hamel por parte de dois fundamentalistas islâmicos, A. Kermiche e A. M. Petitijean, “soldados do Daesh”. No dia 13 de abril de 2017, começou o processo canônico para o reconhecimento do martírio. Com uma ênfase particular, reconhecida pelo Papa Francisco na homilia de sufrágio no dia 14 de setembro de 2016: a crueldade do assassinato está conectada com a demanda de apostasia. Às palavras dos seus assassinos (“Os cristãos são inimigos dos muçulmanos, um obstáculo à islamização do mundo”), a vítima respondeu reconhecendo o verdadeiro ator do delito: “Satanás, vai-te embora! Vai-te embora, Satanás!”.
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada em Settimana News, 25-07-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um recente estudo do historiador francês G. Cuchet (Reflexions sur les dernières paroles du père Jacques Hamel, em Études, julho-agosto de 2018, pp. 71-81) desenvolve o sentido exorcístico das palavras do mártir. Na verdade, trata-se de um breve exorcismo em relação a alguém considerado como possuído pelo maligno. Uma sensibilidade eclesial que derivava ao Pe. Hamel a partir da sua formação e da reza cotidiana da oração a São Miguel, antigamente obrigatória no fim da missa “baixa”, não dominical.
Rezada há muito tempo na Igreja, ela foi introduzida no ritual romano por Leão XIII em função antimaçônica e, posteriormente, anticomunista. Era também uma introdução aos exorcismos, até o advento da reforma litúrgica conciliar.
Além do fato de o delito ter sido cometido no fim e não durante a missa, Cuchet enfatiza a diversidade em relação ao assassinato dos monges de Tibherine (1996): Jacques Hamel opôs resistência a um ataque repentino em um contexto em que os agressores se qualificavam expressamente como fiéis islâmicos. Os sete trapistas, por outro lado, esperaram por muito tempo e com lucidez a possibilidade da morte à qual não se isentaram.
Uma religiosa, testemunha ocular do acontecimento de Saint-Etienne (Diocese de Rouen), lembra que um dos agressores, em certo ponto, cantava: “Eu percebi no canto como se expressava o desejo do paraíso”.
No caso do Pe. Jacques Hamel, os protagonistas falam a mesma língua de homens de fé e, de alguma maneira, se reconhecem. No seu testamento espiritual, o Pe. Christian de Chergé, um dos sete trapistas mortos, antecipa a defesa do coração espiritual do Islã em relação às possíveis manipulações da mídia e da política. No caso do Pe. Jacques Hamel, foi a Igreja, diocesana e nacional, que impediu qualquer interpretação em sentido anti-islâmico do ocorrido, mesmo na dificuldade de dividir a dimensão religiosa da política do assassinato.
Resta a surpresa daquele breve exorcismo em que se expressa a denúncia da doença da fé dos agressores e o poder inquietante do maligno, diante do qual se torna plausível a evidente rejeição da apostasia.
Um evento totalmente extraordinário no contexto dos atentados fundamentalistas no Ocidente que provocou uma vasta e sincera ressonância também entre os muçulmanos na Europa que, pela primeira vez, rezaram junto com os cristãos nas igrejas.
Foi publicado um notável texto de reação de Mohammed Nakim (pseudônimo): Requiem pour le pére Jacques Hamel. Lettres d’un musulman. Uma surpresa também para muitos católicos desmemoriados do que significa um exorcismo e do papel do maligno no contexto da fé.
A referência a Satanás e ao maligno é difícil de remover dos textos escriturísticos, das tradições litúrgicas também conciliares e, mais ainda, da consciência eclesial patrística e medieval. Seu declínio na sensibilidade difusa pode ser datado do século XVIII, com o fim da caça às bruxas e com a imposição do Iluminismo. Um lento declínio, que conheceu uma forte aceleração após a Segunda Guerra Mundial. O maligno sobrevive na literatura, na arte visual e nas tradições populares.
Com o Vaticano II e suas sucessivas interpretações, ele tem um lugar cada vez menor. Uma confirmação de uma dupla linha histórica: maximalista, que enfatiza, mesmo após a vinda do Cristo, o seu poder e a sua intervenção; minimalista, que o considera como um ator menor, operante apenas ocasionalmente com respeito à responsabilidade autônoma do ser humano.
A segunda é largamente majoritária no pós-Concílio, até elaborações bíblico-teológicas como as de H. Haag, La liquidazione del diavolo? (Bréscia, 1970): Jesus não teria lutado contra uma “pessoa” chamada Satanás ou com outros nomes, mas teria simplesmente lutado contra o mal existente no mundo, cuja origem deve ser atribuída apenas ao ser humano. Não faltaram os teólogos total ou parcialmente em discordância aberta com a posição de Haag (por exemplo, J. Ratzinger, Dogma e predicazione, Bréscia 1973).
A remoção da referência a Satanás não teve sequência nem na liturgia (o Rito dos Exorcismos é de 1998, a tradução italiana de 2002), nem no magistério dos papas.
Nos últimos dois séculos, e particularmente no século XX, pode-se registrar a consciência de algum protagonismo do maligno na história através de correntes culturais, organizações de lobby e ideologias totalitárias, cujos resultados se mostraram, às vezes, dramáticos.
Um exemplo disso é a interpretação de G. Dossetti dos massacres nazistas dos Apeninos bolonheses. Não são crimes de regime, nem de classe, nem de religião, nem de guerra. São mais semelhantes a crimes de casta, isto é, quando se afirmam diferenças entre os seres humanos não apenas étnicas ou biológicas, mas propriamente metafísicas (sub-humanos). Convicções arrastadas e justificadas por um impulso que faz da violência gratuita um dever-missão, um serviço ao próprio deus ou, melhor, como inspiração e impulso proveniente dele. Isto é, quando, de um ateísmo negativo, passa-se a um ateísmo assertivo, quando o idólatra é arrastado pela Potência (cf. G. Dossetti, Introdução ao livro de L. Gherardi, Le querce di Monte Sole, Ed. Il Mulino, 1986).
Quanto ao magistério, podem-se recordar as duas intervenções de Paulo VI: a homilia para o Santos Pedro e Paulo do dia 29 de junho de 1972 (lá ele pronunciou as palavras frequentemente citadas: “A partir de alguma fissura, entrou a fumaça de Satanás no templo de Deus”), e na catequese de 15 de novembro do mesmo ano: além da responsabilidade humana, existe “um agente obscuro e inimigo, o demônio”, em que “o mal não é mais apenas uma deficiência, mas sim uma eficiência, um ser vivo, espiritual, pervertido e pervertedor. Terrível realidade. Misteriosa e assustadora”.
Em geral, nunca faltaram as seguintes indicações:
- existe uma clara dissimetria entre o poder de Deus e o protagonismo do diabo;
- depois da encarnação, da morte e da ressurreição de Jesus, o poder de Satanás sobre o mundo foi destruído;
- Satanás é o mais eminente entre os anjos decaídos;
- o maligno é, ao mesmo tempo, o príncipe deste mundo, segundo a fórmula joanina, e o rei dos infernos e o carcereiro dos condenados.
Como recordava Paulo VI: “Sai do quadro do ensinamento bíblico e eclesiástico quem se recusa a reconhecê-la (tal realidade) como existente; ou quem faz dela um princípio em si mesmo, que não tem também, como toda criatura, sua origem em Deus; ou quem a explica como uma pseudorrealidade, uma personificação conceitual e fantástica das causas desconhecidas das nossas desgraças”.
O Papa Francisco fala com tranquila familiaridade sobre isso, sem qualquer hesitação. D. Manetti, no seu livro, Il diavolo c’è (San Paolo, 2017) elenca inúmeras citações sob títulos gerais como: portador de amargura, ladrão de esperança, semeador de fofocas e discórdias, criatura astuta, sedutor perigoso.
Na exortação apostólica Gaudete et exsultate, o papa o indica assim: “Portanto, não pensemos que seja um mito, uma representação, um símbolo, uma figura ou uma ideia. Este engano leva-nos a diminuir a vigilância, a descuidar-nos e a ficar mais expostos. O demônio não precisa nos possuir. Envenena-nos com o ódio, a tristeza, a inveja, os vícios. E assim, enquanto abrandamos a vigilância, ele aproveita para destruir a nossa vida, as nossas famílias e as nossas comunidades, porque, ‘como um leão a rugir, anda a rondar-vos, procurando a quem devorar’ (1Ped 5, 8)”.
A partir dos anos 1990, cresceu na Igreja o tema do maligno e do exorcismo. Impulso prudente diante das pressões midiáticas, guiadas por um confuso fascínio pelo oculto e consciente do que as ciências médicas e psicológicas constataram. “De fato, quando nos aproximamos do mundo do oculto e do demoníaco, entram em jogo inúmeras variáveis que tornam essa problemática ainda mais complexa do que já é. Contribui para isso uma certa publicística de mercado, assim como o revival de elementos que beiram entre a magia, a superstição e o verdadeiro demoníaco” (M. Sodi).
A associação internacional dos exorcistas reúne mais de 400 padres. Em diversas nações, há debates regulares entre aqueles que se revestem desse ministério na Igreja. Dioceses, faculdades e centros teológicos organizam seminários e grupos de estudo a respeito. São publicados livros como os de M. Lanza e A. Martone, Demonologia e psicologia (EDB, 2018). Combatem-se mais facilmente os escândalos de pseudoexorcistas.
Referências como o discernimento, a vigilância, o silêncio ganham novo vigor. Não só por causa dos exorcismos dos indivíduos, mas também do mal que condiciona a história comum. O pensamento teológico e a consciência eclesiástica ainda não absorveram o significado das grandes catástrofes humanas do século XX, “especialmente em relação às ‘irrupções’ das Potências espirituais negativas que a maioria ainda não quer denominar por um falso pudor já bem construído. Por medo de ‘demonizar’ aquilo que não deve ser demonizado, não se pronuncia mais – e não se exorciza – o nome, o poder, a ira, as operações e as categorias segundo as quais atuam na história dos seres humanos (especialmente a morte em massa) aqueles Seres que foram vencidos e ainda são vencidos apenas pela cruz de Cristo” (G. Dossetti).
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O exorcismo do mártir Jacques Hamel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU