22 Junho 2018
Passados cerca de dois anos do impeachment de Dilma Rousseff, predominam duas teses sobre a deposição da presidente. A primeira a entende como efeito da retomada do poder pelas elites. A segunda leitura atribui sua queda à intensificação dos conflitos entre os blocos políticos e ideológicos da direita e da esquerda.
Para Armando Boito Jr., professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nenhuma dessas leituras é capaz de apreender os processos que desencadearam uma das maiores crises políticas da história recente do país. No livro Reforma e crise política no Brasil: Os conflitos de classe nos governos do PT, lançado em coedição pelas editoras da Unicamp e da Unesp, o cientista político analisa a ascensão e a queda dos governos petistas como efeito de uma ampla, diversificada e instável aliança que colocou lado a lado diversos segmentos ligados aos trabalhadores e setores do empresariado nacional que não compactuavam com as propostas neoliberais, predominantes no cenário internacional no começo na época em que o PT ascendeu ao poder.
Essa aliança, que levou Lula à presidência em 2003, foi o sustentáculo do programa econômico neodesenvolvimentista, gerador de crescimento econômico e das políticas de redistribuição de renda. Para Boito Jr., a derrocada desse projeto ocorreu à medida que se intensificaram os conflitos e as contradições entre os grupos que integravam a coalizão, tendo como pano de fundo, já no governo Dilma, a desaceleração do crescimento econômico, as manifestações de junho de 2013, além da guinada liberal da política econômica da petista.
Nesse cenário, os setores empresariais que lideravam a aliança mudaram de posição, acatando o ideário e as propostas neoliberais, o que resultou no encerramento do ciclo neodesenvolvimentista e no avanço das reformas neoliberais capitaneadas por Michel Temer.
Foto: Antonio Scarpinetti. Fonte: Reprodução Agência Brasil
A entrevista é publicada por Jornal da Unicamp, 19-06-2018.
Eis a entrevista.
Por que, na sua opinião, o “neodesenvolvimentismo” de Lula se tornou insustentável?
A crise do impeachment foi o resultado de uma ofensiva restauradora do campo neoliberal ortodoxo num momento de aguçamento das contradições no interior da frente política neodesenvolvimentista que sustentava os governos do PT. Essa frente não se uniu na defesa do governo.
Em toda a América Latina o capital internacional e os Estados Unidos estavam retomando a iniciativa política. Havia uma fração da burguesia brasileira, que denomino “grande burguesia interna”, cujos interesses tinham adquirido primazia na política econômica dos governos do PT em detrimento dos interesses do capital internacional. Essa fração tem conflitos moderados com o capital internacional. Pois bem, parte importante dessa grande burguesia interna afastou-se do governo Dilma. A crise econômica e a propaganda oposicionista por novas reformas neoliberais – trabalhista, previdenciária e outras – atraíram boa parte da burguesia interna. Ela se bandeou para o campo neoliberal ortodoxo, que vocaliza os interesses do capital internacional e que tinha no PSDB o seu representante partidário.
Essa fração burguesa, que nos governos Collor, Itamar e no primeiro governo FHC, tinha apoiado, com ressalvas, o programa neoliberal, afastara-se dele e se aproximara do programa neodesenvolvimentista propagandeado pelo PT desde o final dos anos 1990. A partir de 2003, a burguesia interna seguiu com os governos Lula. Em 2005, durante a “Crise do Mensalão”, a burguesia interna saiu em defesa do governo Lula. Em 2015, seu comportamento foi outro. Convém lembrar que um segmento importante dessa fração burguesa foi colocado fora de combate já no início da crise política. Refiro-me ao resultado da ação da Operação Lava Jato contra as grandes construtoras nacionais.
Porém, outros segmentos dessa mesma fração iniciaram um caminho de volta, reconciliando-se com o neoliberalismo. Ou seja, a burguesia interna realizou um movimento pendular na história política recente do país. No momento, o movimento do pêndulo aponta para a direita.
O senhor falou da burguesia interna. Mas e as demandas e o papel dos movimentos sociais na aliança que sustentou o PT?
O principal conflito no processo político brasileiro nos anos recentes se deu entre, de um lado, a burguesia interna (que depende do capital internacional, mas, ao mesmo tempo, possui conflitos moderados com ele), e, de outro, esse capital internacional e os setores da burguesia brasileira a ele integrados.
No livro, desenvolvo isso com nuanças, dados e explicações. De todo modo, a verdade é que as classes dominadas se dividiram entre os dois campos dirigidos pelas forças burguesas acima citadas: o campo neodesenvolvimentista, dirigido pela grande burguesia interna, e o campo neoliberal ortodoxo, dirigido pelo capital internacional.
Por que isso se passou dessa forma? Porque o movimento popular encontrava-se segmentado e voltado para reivindicações específicas. Não possuía programa político próprio nacionalmente organizado. Isso não significa que as classes populares não tiveram peso na crise política.
Do lado conservador, a classe média – basicamente, sua fração superior (que não faz parte da classe dominante) – teve papel decisivo no golpe parlamentar. Seus movimentos recém-criados, com apoio ativo da mídia, lograram organizar grandes manifestações de apoio à Operação Lava Jato, influenciando a votação do impeachment no Congresso Nacional. Mas essa classe média abastada foi a base de apoio do golpe, não a sua força dirigente. Do lado do campo progressista, os movimentos sindical e popular tiveram papel importante no desencadeamento da crise, mas não defenderam à altura das necessidades o mandato de Dilma Rousseff.
O que isso significa?
O sindicalismo cresceu muito entre 2003 e 2013. O número de greves aumentou ano a ano. Em 2003 ocorreram 312 greves. Dez anos depois, foram mais de duas mil greves. As conquistas salariais são claras: enquanto em 2003, apenas 18% dos acordos e das convenções coletivas haviam sido reajustados acima da inflação, em 2013, 95% deles alcançaram esse objetivo.
Era muito mais fácil manter a unidade da frente política neodesenvolvimentista em 2003 que em 2013. Pior. Quando o governo Dilma foi atacado, o sindicalismo não saiu em sua defesa, tendo em vista as reivindicações do movimento sindical que o governo ignorara. As relações políticas entre um e outro não estavam muito boas. O ajuste fiscal de Joaquim Levy agravou esse quadro. Apenas as cúpulas de três centrais sindicais saíram em defesa do governo; os grandes sindicatos ausentaram-se das mobilizações.
No Brasil, o sindicalismo é politicamente fraco. As centrais não exercem seu papel. Os sindicatos de base não dão educação política ao trabalhador. Quem, de fato, se mobilizou em defesa do governo Dilma foram as organizações do movimento popular – MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra], MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto], MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens] e outras. Mas essas organizações, que se apoiam nos trabalhadores da massa marginal, organizam apenas uma parte diminuta desse grande contingente. A resistência ao golpe parlamentar foi frágil.
Qual a marca dos governos petistas? Por que o senhor afirma que eles se diferenciam dos governos do PSDB?
Há uma linha de continuidade entre os governos FHC e os governos Lula e Dilma. Todos eles operam dentro do modelo econômico capitalista neoliberal. Porém, as políticas econômica, externa e social dos governos tucanos e petistas são diferentes.
Os governos de FHC privilegiaram os interesses do capital internacional, tinham uma política externa de submissão aos Estados Unidos, suprimiram direitos e implantaram uma política repressiva e dura contra os movimentos sociais. Basta lembrar a repressão à greve dos petroleiros de maio de 1995 e a criminalização do MST.
A política econômica dos governos liderados pelo PT passou a priorizar os interesses das grandes empresas nacionais. Esses governos adotaram a política externa Sul-Sul, implantaram políticas sociais de combate à pobreza e passaram a reconhecer o direito dos trabalhadores à reivindicação. Porém, Lula e Dilma não romperam com o modelo econômico capitalista neoliberal. Operaram na margem do permitido por esse modelo. Por isso, o reformismo petista foi superficial.
Esse elemento de continuidade levou muitos analistas a sustentarem a tese de que os governos petistas eram mera continuidade dos governos tucanos. Discordo dessa tese e discuto isso no livro. Se o PT tivesse dado continuidade aos governos do PSDB, este último não teria permanecido na oposição e, muito menos, protagonizado um golpe de Estado contra o governo Dilma.
Como o senhor compreende o governo Michel Temer nesse cenário?
Ele é fruto de uma ofensiva política restauradora do campo neoliberal. Nesse sentido, retoma o programa dos governos tucanos da década de 1990 em condições históricas novas.
A política neoliberal tem dois inimigos: os mecanismos de proteção e promoção da economia nacional e os direitos dos trabalhadores. Talvez seja possível dizer que, na década de 1990, os governos neoliberais priorizaram o desmonte do Estado desenvolvimentista, enquanto agora, sob Michel Temer, o neoliberalismo elegeu o desmonte da proteção social como objetivo principal.
O que é o “neopopulismo” dos governos petistas?
Falo em neopopulismo, mas num sentido diferente daquele que é usado pelos liberais e conservadores de vários matizes. Os trabalhadores da massa marginal que, isoladamente, são o segmento social majoritário da população brasileira, têm muita dificuldade de se organizar devido à sua heterogeneidade e ao seu poder de pressão reduzido – encarregados de serviços domésticos, trabalhadores autônomos de baixa qualificação, vendedores ambulantes, camponeses com pouca terra em situação de penúria, subempregados etc.
Essa é a situação em que tanto os partidos quanto o próprio Estado podem fazer uma interpelação de tipo populista. Tomar a iniciativa de favorecer tais trabalhadores e esperar, em retorno, seu apoio político eleitoral. Apenas eleitoral, porque a interpelação populista os mantém politicamente desorganizados. Foi essa a política do PT para os trabalhadores da massa marginal. Os governos do PT atenderam, e isso foi um dos seus méritos, os interesses dessa população – Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, entre outros. O apoio desse contingente aos governos Lula e Dilma não se deve ao fato de Lula ter ludibriado as massas.
De um ponto de vista de esquerda, vale ressaltar que essas massas se mantiveram desorganizadas, como é típico da política populista. Tal apoio eleitoral, mas desorganizado, funciona bem enquanto o voto tiver um peso importante. Porém, quando grande parte da burguesia e também a alta classe média decidiram abandonar – mais uma vez na história do Brasil! – a disputa democrática e partir para um golpe de Estado, esse apoio revelou-se inócuo.
O impeachment de Dilma Rousseff pode ser interpretado como resultado de um conflito de classes?
Pode e deve. Trata-se de conflito distributivo de classe. Não temos uma situação de luta de classes, que coloca em jogo a forma de organização da vida social: um polo lutando para implantar um programa socialista e outro empenhado na manutenção do capitalismo. Esse tipo de polarização não existe atualmente no Brasil. Mas existe um conflito de classes pela redistribuição da riqueza produzida.
Quais são as contribuições mais originais da sua análise?
Caberá ao leitor do meu livro avaliar. De minha parte, penso que o mais original provém da análise do conflito político como um conflito de classes e de frações de classe. Procuro mostrá-lo na economia, mas também evidenciar como ele se manifesta em outras esferas.
A ideologia e as instituições possuem sua dinâmica específica, mas estão também ligadas aos conflitos de classe e de fração. Sem detectar essa ligação, não se vai muito longe. Daria como exemplo a análise que faço, num dos capítulos do livro, da Operação Lava Jato.
Também os governos, eu os caracterizo pela sua natureza de classe. Não me satisfaço com as classificações habituais “governo de direita”, “de esquerda”, “de centro” etc. Isso tudo é muito superficial. Exemplifico com minha caracterização dos governos do PT como governos da frente política neodesenvolvimentista sob a hegemonia da grande burguesia interna. Esse enfoque permitiu evidenciar dimensões da atual conjuntura que são ignoradas ou descuradas na maioria das análises disponíveis, que costumam examinar o processo político como um conflito entre correntes de opinião e/ou entre instituições. Procuro demonstrar que ele ignora uma dimensão em boa parte oculta da vida política, que cabe ao analista evidenciar.
Está muito em voga também recorrer à noção de “elite” para explicar o golpe de 2016. Ela é utilizada de modo vago. Amalgama-se burguesia e classe média e ignora-se a presença popular no processo. Em relação às análises que utilizam o conceito de classe social, a maioria delas trabalha com uma divisão simplificada que opõe “o capital” ao “trabalho”, a burguesia aos trabalhadores. Isso não explica os conflitos no topo da sociedade e do próprio Estado.
Minha análise considera a multiplicidade de classes (burguesia, classe média, operariado etc.) e de frações de classe (burguesia interna, capital internacional, o campesinato rico e o campesinato pobre e outras) envolvidas no processo político brasileiro, que é o que o torna muito complexo.
Num mundo onde o capital financeiro circula cada vez mais rapidamente conquistando espaço e fazendo valer seus interesses, há espaço para governos neodesenvolvimentistas?
Sim, existe. Tanto que os principais países da América Latina trilharam esse caminho nos últimos anos.
Bolívia, cujo projeto ainda está de pé, Venezuela e Equador, que estão em crise, aplicaram políticas para ultrapassar o programa neoliberal. Brasil e Argentina, onde o neoliberalismo foi restaurado, aplicaram, durante anos, políticas neodesenvolvimentista sem romper totalmente com o modelo neoliberal.
Se inserirmos a Ásia no campo de observação, o mundo aparecerá mais heterogêneo do que sugerem a mídia e os políticos conservadores. No momento, o neodesenvolvimentismo está derrotado no Brasil. Mas não é possível saber se não poderá voltar em breve. O capital financeiro internacional está muito forte, mas não pode tudo.
O seu livro situa-se no campo do marxismo, hoje minoritário nas ciências políticas brasileiras. De que modo essa abordagem ajuda a compreender o atual momento do Brasil?
Eu utilizo a teoria política marxista, que é sofisticada e ambiciosa, pois é parte do materialismo histórico, o qual abarca a economia, a cultura e a história. Atualmente, na Ciência Política predomina o neoinstitucionalismo, que é um enfoque limitado, mas contribui no estudo das instituições políticas.
Da maneira como utilizo a teoria marxista, ela comporta a incorporação, com retificações, dos aportes de outros campos, inclusive do institucionalismo. O marxismo, como é próprio da prática científica, tem de se desenvolver e se renovar. Porém, o institucionalismo, que é uma teoria de médio alcance, padece de um problema de base, já que separa as instituições políticas da economia e da sociedade. Da perspectiva da teoria marxista, essa separação não se sustenta.
Em que medida a deposição de Dilma Rousseff assemelha-se a processos parecidos em outros países?
Há uma hierarquia de poder econômico, político e militar em escala mundial. O topo é ocupado pelos Estados imperialistas. Exportam capitais, financeiro e produtivo para os países dependentes, controlam fontes de matérias-primas e de energia e promovem a guerra para defender seus interesses.
Recentemente descobriram como utilizar mobilizações populares a seu favor e também lançaram mão, em escala mundial, das campanhas que se dizem contra a corrupção. Aplicam essa política em toda a periferia do sistema. Na América Latina, o imperialismo retomou a ofensiva política, logrando, em harmonia com interesses de algumas classes e frações de classe latinoamericanas, contribuir decisivamente para a deposição ou derrota eleitoral de governos neodesenvolvimentistas e para colocar em crise governos populares do continente.
Em países como a Argentina, onde o partido peronista tem grande representação parlamentar, só puderam chegar ao poder pelo voto. Um impeachment, como no Brasil ou no Paraguai, seria inviável. No Brasil, onde o partido que liderava o governo reformista dependia de uma base parlamentar heterogênea, fisiológica e conservadora, foi possível aplicar a estratégia denominada neogolpismo.
Pode-se dizer que ele é composto, basicamente, por: mobilização de rua com base em denúncia sempre seletiva – ou falsa – de corrupção, erosão da base parlamentar e, por fim, a construção de um processo de impeachment que aplica a lei também de modo seletivo (todos sabem que as denominadas pedaladas fiscais são prática corrente no Brasil, mas só serviram de base para o impeachment de Dilma Rousseff).
O fato é o seguinte: a violação da universalidade da lei significa que o impeachment foi um golpe. Esse golpe foi uma demonstração de força, até porque a resistência a ele, como mostro no último capítulo do meu livro, foi frágil. Mas, por enquanto, as forças que ocuparam o poder não liquidaram a democracia liberal. Elas terão de vencer também pelo voto. Essa é a grande incógnita na conjuntura atual.
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Fratura em frente neodesenvolvimentista decretou queda de Dilma, avalia Boito Jr - Instituto Humanitas Unisinos - IHU