27 Março 2018
"A busca seletiva de leis, firulas processuais que dispensem o trabalho de julgar conflitos judiciais onde a dura realidade pobre das pessoas com direitos sociais estão presentes, desobedecem outra vez o conselho de Claudia Prócula, e o 'não se envolver' funciona em sentido inverso, abandonadas aquelas pessoas e seus direitos como se direitos não se constituem" escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
De 26 de março a 1º de abril deste ano, cristãs e cristãos, pessoas de outras religiões e espiritualidades quem sabe, vão celebrar a semana que chamam de santa. Recordam um conjunto de eventos marcantes do passado, inclusive o do julgamento de Jesus Cristo, talvez o mais famoso da história da humanidade.
Entre as muitas interpretações do fato, causas do processo, grupos que promoveram a acusação e pediram a condenação do “réu” Jesus, aplicação das leis romanas vigentes na época para serem apuradas as provas, a forte e barulhenta pressão dos grupos religiosos e políticos da época forçando a condenação de Jesus, o ambíguo comportamento de Pilatos, a leviandade de Herodes reduzida praticamente a uma curiosidade debochada sobre Jesus, tudo isso tem merecido análise polêmica desde a crucificação do “acusa do”.
Sendo muitas as dúvidas sobre este processo, algumas chamam a atenção, do ponto de vista estritamente jurídico, se forem comparadas com as leis e as decisões judiciais posteriores à crucificação de Jesus Cristo. Uma delas aparece no evangelho de São Lucas, capítulo 23, 7-12, noticiando que Pilatos, sabendo que Jesus era de região governada por Herodes, mandou Jesus a ele para que o julgasse. Outra, constante no evangelho de São Mateus (capítulo 27, 19) noticia que Claudia Prócula, mulher de Pilatos, enviou-lhe recado durante o julgamento, para ele “não se envolver” com qualquer decisão contrária à inocência do acusado. Verdade ou não - há quem impugne a veracidade do fato - o certo é que, com exceção dessa frustrada iniciativa, Jesus Cristo não contou, oficial e publicamente, com ninguém, nenhum “advogado” (respeitado o tipo que fazia esse papel naquela época), nenhum defensor, uma palavra sequer que, se não desmentisse a acusação, pelo menos o livrasse da morte.
A iniciativa de Claudia Procula sobre seu marido “não se envolver” com o caso, o jogo de empurra sobre quem deveria julgar Jesus Cristo, Pilatos ou Herodes, a irresponsabilidade criminosa do primeiro entregando o acusando nas mãos de quem o desejava morto, são hipóteses sobre as quais os processos judiciais modernos estão absolutamente fora de qualquer suspeita poderem se repetir de novo?
Não se pode generalizar crítica negativa ao Poder Judiciário brasileiro, apenas baseada no que parte de suas decisões recentes, parece inspirada em tudo o que é contrário à justiça, à lei, à ética e à imparcialidade. O problema é que os traços da personalidade de Pilatos contaminando grande parte das/os suas/seus representantes procura transferir suas responsabilidades para qualquer Herodes que esteja mais a mão e isso aumenta muito o descrédito do povo na atuação deste Poder Público.
A busca seletiva de leis, firulas processuais que dispensem o trabalho de julgar conflitos judiciais onde a dura realidade pobre das pessoas com direitos sociais estão presentes, desobedecem outra vez o conselho de Claudia Prócula, e o “não se envolver” funciona em sentido inverso, abandonadas aquelas pessoas e seus direitos como se direitos não se constituem. Assim, elas e eles sofrem da mesma “entrega” de Pilatos e acabam crucificadas/os. São pessoas e direitos que não são, efetivamente, julgados. Sobre elas e eles, decide-se por nada decidir, deixando-a s/os sem qualquer defesa como aconteceu com Jesus Cristo.
Como Giorgio Agamben, no livro de sua autoria “Pilatos e Jesus” (edição brasileira da Boitempo em 2014) nega, inclusive, tenha acontecido realmente um julgamento. Sublinha desobediências formais do direito romano, no que esse já dispunha a respeito de regras processuais, salientando o trágico efeito disso:
“...as opiniões divergem quanto a regularidade do processo. Segundo alguns, nenhuma das formalidades procedimentais foi observada: nem a inscrição e a determinação da acusação, nem o acertamento do fato, nem o proferimento de uma clara sentença de condenação. Jesus de Nazaré não foi condenado, mas morto: seu sacrifício {...} foi um homicídio”. (p.51).
Em sentido rigorosamente técnico, então, a decisão de Pilatos não constituiu nem juízo nem sentença, já que “lavando as mãos” - outra discussão histórica sobre se isso aconteceu mesmo ou não - restringiu-se a “entregar” Jesus à quem o acusava: “Tomai-o vós e crucificai-o, pois eu não acho nele culpa alguma”, como se lê no evangelho de São João, capítulo 19, versículo 6.
Uma contradição indesculpável. Se o acusado era reconhecidamente inocente, lançá-lo nas mãos de quem o acusava constitui a mais abjeta e covarde denegação de justiça. Agamben o confirma na mesma obra:
“O processo de Jesus não é, pois, propriamente um processo, mas algo que nos falta definir e para o qual provavelmente não conseguiremos encontrar um nome. O desconforto é o mesmo no que tange à crucificação. Se não pode existir um processo sem juízo, muito menos pode existir, sem juízo, uma pena.” (página 67).
A semana santa pode ser uma boa oportunidade para aquelas/es juízas/es que julgam ações que “envolvem” pessoas pobres com direitos sociais, “se envolverem” com elas/es, assim afastando seus despachos, suas decisões, sentenças e acórdãos, de qualquer semelhança com Pilatos e Herodes.
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Quando as decisões judiciais, ainda hoje, vão de Pilatos a Herodes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU