17 Abril 2017
"A semana santa nos convida exatamente a esse pensar sobre as evidências que não têm nada de evidente, montadas ideologicamente para desarmar qualquer opinião contrária ao egoísmo e à ganância do mal intrínseco da sua manutenção e reprodução. Se existe um aviso político e jurídico a ser revelado no assassinato de Jesus Cristo, válido para ateus e crentes, esse é o de a tortura e morte de inocentes não poder ficar sem revelação das suas causas e responsáveis, sejam elas diretas ou indiretas", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
Feriadão, período para quem tem dinheiro se desligar de problemas, viajar, aproveitar um prolongado lazer, descansar. Para grande parte das pessoas, a isso reduz-se a celebração da semana santa e da páscoa. Como acontece também com o panetone natalino, a lembrança remota do assassinato de Jesus Cristo e de tudo quanto sofreu e por quanto foi morto, fica obstruída pela tradicional compra e venda de peixe, de colomba pascal, de bombons, coelhos e ovos de chocolate.
Entretanto, a manobra publicitária e diversionista de ocupar-se a imaginação de todo o mundo com esses truques, é vencida ainda agora por muita gente que ainda crê e reza durante esta semana, com todo o pensamento e vontade voltados para o que aconteceu quase vinte séculos passados. Para esse povo, cristão ou não, as lembranças desta semana, por isso mesmo chamada de santa, têm um grau de plenitude suficiente para, da morte provocada por todo o mal e toda a injustiça, identificar hoje, onde e como há necessidade de ressuscitar o bem da verdade, da justiça, do amor e da paz.
As torturas aplicadas em Jesus Cristo e sua morte na cruz, não são relembradas então com aquele dolorismo inconsequente e piegas da pura compaixão, limitada a uma contemplação da cruz e do crucificado como se aquele sangue escorrendo de pregos e espinhos por todo o seu corpo, a sede saciada com vinagre, o seu grito de queixa contra o abandono de Seu Pai, a fuga dos seus amigos, o golpe de misericórdia lançado contra seu peito, só tomem sentido distante, remoto, exclusivamente espiritual, alienado e sem ligação nenhuma com o hoje da vida de cada um/a.
Bem diferente, pois, é a postura daquelas/es que buscam na realidade presente as causas e os responsáveis pelas torturas que levaram a morte o Crucificado; se foram suficientes, por toda a desumanidade e horror do seu uso, para barrarem a sua repetição.
As Comissões da Verdade no Brasil, algumas ainda em plena atividade, e a Comissão de Anistia, fizeram e fazem uma recuperação histórica das tragédias humanas impostas por torturas iguais ou pelo menos semelhantes às sofridas por Jesus. O estranho dessas vergonhosas revelações está na repercussão que elas provocam na sociedade. Se escandalizam parte dela por sua desumanidade, seria lícito esperar o mesmo efeito diante das torturas infligidas ao povo pobre pela injustiça social imperante, a tortura da fome, da doença, do desemprego, do envenenamento da terra, dos recursos públicos necessários para os direitos sociais serem desviados para sustentar a corrupção política e aumentar os arsenais etc...
Mas não. O escândalo é seletivo conforme de onde ele parte. Embora o Brasil tenha ratificado, em 1989, a convenção da ONU de 1984, contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, embora a Constituição Federal, no inciso XLIII do seu artigo 5º, tenha previsto como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia a prática da tortura, e a lei 13.260 de 2016, regulamentando essa disposição, ainda sobrevive com força no país a defesa dessa forma de crueldade utilizada no passado pela ditadura militar. Ela entende que o terrorismo de Estado deve ser aceito em nome da segurança pública, por mais privada, individual, repressora, violenta e indiferente com a insegurança alheia se mostre e execute: “Desde que a minha tranquilidade e os meus bens estejam assegurados, o resto não é comigo”.
Aloysio Nunes, por exemplo, o atual ministro das relações exteriores do país, foi ao ponto de advogar, com o apoio da maioria do Senado, disposição diversa da que está prevista agora no parágrafo 2º do artigo 2º da referida lei 13.260, para impedir fosse considerada como não terrorista “a conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.” Para ele, isso tudo é terrorismo...
A semana santa nos convida exatamente a esse pensar sobre as evidências que não têm nada de evidente, montadas ideologicamente para desarmar qualquer opinião contrária ao egoísmo e à ganância do mal intrínseco da sua manutenção e reprodução. Se existe um aviso político e jurídico a ser revelado no assassinato de Jesus Cristo, válido para ateus e crentes, esse é o de a tortura e morte de inocentes não poder ficar sem revelação das suas causas e responsáveis, sejam elas diretas ou indiretas.
Jon Sobrino o demonstra de modo muito claro no seu “O princípio misericórdia. Descer da cruz os pobres crucificados” (Petrópolis, Vozes, 1994). Como a Cruz de ontem, na qual morreu Jesus Cristo, se disseminou em muitas outras, fazendo padecer e morrer muita gente, pelas mesmas causas que o assassinaram, partindo dos mesmos poderes, econômicos, políticos, jurídicos e até religiosos:
“Povos crucificados” é a linguagem útil e necessária no nível fatual-real, porque “cruz” significa morte, e morte é aquilo a que estão submetidos de mil maneiras os povos latino-americanos. É morte lenta, mas real, causada pela pobreza gerada por estruturas injustas – “violência institucionalizada”-; e, assim, “pobres são os que morrem antes do tempo”. É morte rápida e violenta, por causa de repressão e guerra, quando os pobres põem aquelas em perigo. É morte indireta, mas eficaz, quando os povos são privados inclusive de suas culturas para enfraquecê-los em sua identidade e torna-los mais indefesos.” (pág. 85)
Como se estivesse denunciando hoje a bancada ruralista presente no Congresso Nacional, em tudo apoiada pelo desgoverno vigente em seu empenho de perseguir e crucificar gente sem terra, quilombolas e índias/os, entregar o território do país a empresas estrangeiras, afirma o mesmo autor:
“Morrer crucificado não significa simplesmente morrer, mas ser morto; significa que há vítimas e há verdugos; significa que há um gravíssimo pecado.” {...} “Por mais que se queira mitigar o fato, e verdade que a cruz dos povos latino-americanos lhes foi infligida pelos diversos impérios que se apossaram do continente - espanhóis e portugueses ontem, Estados Unidos e aliados hoje - seja através de exércitos ou de sistemas econômicos, através de imposição de culturas e de visões religiosas, em conivência com os poderosos locais.” (pags. 85/86).
Desanimar diante dessa realidade nos fará cúmplices dela. Que todo o mistério presente na dor da morte do Crucificado, assim, se é necessário ser muito bem e conscientemente lembrado na sexta-feira desta semana, não nos permita privar da alegria posterior, para crentes e não crentes, do mistério implicado no domingo da Ressurreição, por si só suficiente para sustentar o Caminho a seguir, a Verdade vencer o erro, a Vida vencer a morte, a Justiça garantir a Paz, o Amor vencer o ódio. É o que partilho, com fé e esperança renovadas, junto as/aos nossas/os leitoras/es, desejando a todas/os uma páscoa muito feliz.
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Semana santa: entre torturadoras/es e crucificadas/os - Instituto Humanitas Unisinos - IHU