18 Fevereiro 2018
Céline, Maurras, Brasillach ou Rebatet pertencem ao círculo daquilo que na França se chama de “los collabos”, isto é, homens e mulheres que “colaboraram” com o ocupante nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Suas ideias estão em pleno auge.
A reportagem é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 11-02-2018. A tradução é de André Langer.
Os escritores fascistas retornam com uma legitimidade fora de suspeita. Tirar do armário da proscrição autores que flertaram intimamente com o antissemitismo mais feroz e a barbárie do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, tornou-se, na França, um tema maior que ultrapassa o mundo das letras. O projeto de reedição dos textos antissemitas de Louis-Ferdinand Céline, o aniversário e as homenagens a outro fascista famoso, Charles Maurras, teórico do conceito “nacionalismo integral”, tão na moda nas retóricas políticas atuais, as já reeditadas obras de outro ilustre fascista, Lucien Rebatet (Os Escombros) e as futuras reedições de Robert Brasillach, um fascista fuzilado no final da Segunda Guerra Mundial, cavaram trincheiras a partir de onde partidários e opositores dessas iniciativas defendem ou contestam a circulação de livros que remetem aos tempos mais sombrios da França e da Europa.
A crise das reedições começou em 2017, quando a editora Gallimard comunicou seu projeto para reeditar, sob o título Escritos Polêmicos, três livros do Céline escritos entre 1930 e 1940 e perpassados por um espantoso antissemitismo: Bagatelles pour un Massacre, Les Beaux Draps e L'Ecole des Cadavres. A iniciativa não demorou muito para acender uma fogueira. A pertinência de reeditar esses livros, em momentos em que essas ideias tiveram um peso eleitoral funesto, foi questionada inclusive pelo governo. O editor, Antoine Gallimard, e o especialista que deveria escrever o prólogo, Pierre Assouline, foram convocados por Frédéric Potier, delegado interministerial encarregado da luta contra o racismo, o antissemitismo e o ódio anti-LGBT, que exigiu “garantias” e um acompanhamento crítico apoiado cientificamente.
A publicação desses livros não é proibida na França, mas não foram editados desde o final da Segunda Guerra Mundial. Podem ser adquiridos clandestinamente nas livrarias que se encontram às margens do Sena e consultados livremente na internet. Tanto Céline, autor da obra suprema que é Viagem ao Fim da Noite, como sua viúva, Lucette Destouches, sempre se opuseram à reedição desses três livros. No entanto, em 2017, a viúva, que agora tem 105 anos, mudou de ideia. O advogado e presidente da Associação dos Filhos e Filhas de deportados da França, Serge Klarsfeld, atacou fortemente um projeto que considerou “um chamado insuportável ao ódio” e uma “agressão aos judeus da França”.
A chuva de críticas à editora foi tão densa que, em 2018, a Gallimard decidiu abandonar o seu projeto. Conforme explicou Antoine Gallimard, “as condições metodológicas e de memória não estão dadas”. Apesar de tudo, o editor esclareceu que “os livros do Céline pertencem à história mais infame do antissemitismo francês. Condená-los à censura é impedir o pleno conhecimento de suas raízes e de seus alcances ideológicos”. A controvérsia não se deu por encerrada com esse gesto. Voltou a ser estimulada quando se descobriu que no livro das Comemorações Nacionais, previsto para ser publicado no corrente ano, constava o nome de Charles Maurras.
Este autor, ao contrário do Céline, teve uma influência muito grande na França e na Argentina. Maurras, cujo nascimento completa um século, foi um dos líderes do grupo monárquico e nacionalista Ação Francesa que começou a se desenvolver na França no início do século XX. Ele era, como muitos fascistas radicais, um aguerrido adversário da República, um furibundo anti-parlamentar e um antissemita extremo que costumava qualificar os judeus como “dejetos humanos”. Os responsáveis pelo livro das Comemorações Nacionais também recuaram e retiraram o seu nome das homenagens oficiais.
Entretanto, Maurras está e continuará presente. Hoje, sua retórica nacionalista envolve as narrativas dos líderes da extrema direita francesa da Frente Nacional e soube atravessar a fronteira e alimentar o discurso do partido conservador Os Republicanos, fundado pelo ex-presidente Nicolas Sarkozy e dirigido atualmente por um homem que não retrocede diante das evocações de Maurras, Laurent Wauquiez. Suas ideias circulam também abundantemente por meio de jornalistas que fizeram do nacionalismo mais tosco seu pão ideológico de cada dia. Como o soube fazer na sua época o fundador da extrema direita francesa, Jean-Marie Le Pen, Maurras, diante da presença de estrangeiros na França, costumava se perguntar “se os franceses ainda sentem que estão em sua casa”.
A frase já é um slogan da extrema direita e da direita sarkozista. Além disso, suas obras vão retornar às livrarias. Em abril, aparecerá um volume na coleção Bouquins com boa parte de sua obra. Jean-Luc Barré, diretor da coleção Bouquins, alega que “sua obra marcou o século XX. Nós apostamos na inteligência do autor”. As ideias nacionalistas de Maurras atravessaram as fronteiras e, na Argentina, funcionaram como um arco fundador dos nacionalistas argentinos oriundos de diferentes setores ideológicos. Em 1972, 20 anos após sua morte, a “Comissão Argentina de Homenagem a Charles Maurras” celebrou-o com todas as honras.
Céline, Maurras, Brasillach ou Rebatet pertencem ao círculo do que na França costuma se chamar “los collabos”, ou seja, homens e mulheres que “colaboraram” com o ocupante nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Suas ideias estão em pleno auge. Em 2015, a reedição do romance Les Décombres (Os Escombros), de Lucien Rebatet, foi um best-seller. Os cinco mil exemplares editados por Robert Lafont foram vendidos em um único dia. O historiador André Loez explica: “vemos muito bem o ressurgimento de um pensamento reacionário e tradicionalista, cuja fonte são todos esses textos. Essas ideias foram se desinibindo nos últimos anos”. Rebatet era amigo de Charles Maurras e era um incansável divulgador do fascismo extremo. Ele publicou muitos artigos no jornal Je suis Partout, a flor mais visível da imprensa colaboracionista, cujo administrador era o franco-argentino Charles Lesca. Nascido em Buenos Aires em 1887, Lesca, a quem Jorge Asís consagrou um romance, Lesca, o fascista irredutível, foi um fanático dos mais singulares.
As obras de Robert Brasillach, outro colaboracionista e assíduo colaborador do jornal Je Suis Partout, são de domínio público desde 2015 e já se prevê a reedição de vários de seus livros. Estes livros devem ser publicados ou não? Não há resposta absoluta, tanto mais que as obras circulam, e muito. Apenas o Gallimard anunciou que estava suspendendo a nova publicação dos livros do Céline. Seu livro Bagatelles pour un Massacre, do qual existem edições piratas e uma oficial no Canadá, ocupou o segundo lugar na lista dos mais vendidos do Amazon.
Os opositores argumentam que retomar as edições equivale a promover suas ideias. Os seus defensores, pelo contrário, refutam a censura. Argumentam que não se deve preservar apenas o belo e, em todo caso – e isso é muito certo –, suas ideias se propagaram pelo espaço político e social francês nos últimos 30 anos. Esses “collabos” estão presentes. Seus herdeiros ideológicos reeditaram suas ideias com um sucesso irresistível, tanto eleitoral como ideológico. Suas obras, proscritas por consenso, há muito tempo são a espinha dorsal da reconquista da opinião por parte desses populismos cinzentos que, pouco a pouco, foram seduzindo as sociedades europeias. Ali está a sua vitória póstuma mais luminosa.
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A obra de escritores fascistas franceses está de volta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU