15 Novembro 2011
O medo dos imigrantes contagia também o multiculturalismo progressista disposto a aceitar o Outro contanto que seja privado da sua Alteridade.
A opinião é do filósofo esloveno Slavoj Žižek, em artigo publicado no jornal La Stampa, 14-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Depois de décadas de esperança sustentada pelo Estado social, durante os quais os cortes financeiros eram despachados como temporários e compensados pela promessa de que as coisas logo voltariam à normalidade, estamos entrando em uma nova época em que a crise – ou, melhor dizendo, uma espécie de estado econômico de emergência, com a relativa necessidade de medidas de austeridade de todos os tipos (cortes dos subsídios, redução dos serviços de saúde e de educação, maior precariedade dos postos de trabalho) – tornou-se permanente.
A crise está se tornando um estilo de vida. Depois da desintegração dos regimes comunistas em 1990, entramos em uma nova era, na qual uma administração técnica, despolitizada, e a coordenação dos diversos interesses se tornaram a forma predominante de exercício do poder estatal. O único modo de introduzir paixão nesse tipo de política, o único modo de mobilizar ativamente as pessoas, é alavancar o medo: o medo dos imigrantes, o medo do crime, o medo da ímpia depravação sexual, o medo de um Estado invasivo (com o seu fardo de taxas elevadas e controle), o medo de uma catástrofe ecológica, e, além disso, o medo dos incômodos (o politicamente correto é a forma progressista exemplar da política do medo).
Uma política desse tipo se fundamenta sempre na manipulação de uma multidão paranoica: a assustadora mobilização de mulheres e homens assustados. Por isso, o grande evento da primeira década do novo milênio foi o momento em que a política anti-imigração se tornou largamente generalizada e cortou o cordão umbilical que a ligava aos partidos minoritários de extrema direita.
Da França à Alemanha, da Áustria à Holanda, cavalgando o novo espírito de orgulho na identidade própria histórica e cultural, os partidos majoritários acham aceitável agora ressaltar que os imigrantes são hóspedes que devem se adaptar aos valores culturais que definem a sociedade hospedeira: "É o nosso país, peguem-no ou deixem-no", essa é a mensagem.
Os progressistas, obviamente, estão horrorizados com essa forma de racismo populista. No entanto, um exame mais atento revela como a sua tolerância multicultural e o seu respeito pelas diferenças compartilham, com aqueles que se opõem à imigração, a necessidade de manter os outros à devida distância. "Os outros, ok, eu os respeito", dizem os progressistas, "mas não devem invadir muito o meu espaço. No momento em que fazem isso, me incomodam... Apoio sem reservas a afirmação da sua identidade própria, mas não estou disposto a ouvir música rap em volume alto".
O que está se impondo como direito humano central nas sociedades do capitalismo tardio é o direito de não ser incomodado, ou seja, o direito de ser mantido a uma distância segura dos outros. O lugar de um terrorista cujos planos homicidas devem ser frustrado é em Guantánamo, a zona vazia isenta do exercício da lei. Um ideólogo do fundamentalismo deveria ser reduzido ao silêncio, porque instiga o ódio. Tais pessoas são sujeitos tóxicos que comprometem a minha tranquilidade.
No mercado atual, encontramos toda uma série de produtos privados das suas propriedades nocivas: café sem cafeína, creme de leite sem gordura, cerveja sem álcool. E a lista poderia continuar: o que dizer do sexo virtual, ou seja, sexo sem sexo? E da doutrina de Colin Powell sobre a guerra sem vítimas (das nossas fileiras, naturalmente), ou seja, guerra sem guerra? E da atual redefinição da política como arte dos técnicos da administração, ou seja, política sem política? Tudo isso leva ao hodierno multiculturalismo tolerante progressista como experiência do Outro privado da sua Alteridade: o Outro descafeinado.
O mecanismo dessa neutralização foi teorizado da melhor maneira possível, como tenho dito muitas vezes, em 1938, por Robert Brasillach, o intelectual fascista francês, que se via como um antissemita "moderado", que inventou a fórmula do antissemitismo razoável. "Permitimo-nos aplaudir Charlie Chaplin no cinema, um meio judeu. admirar Proust, um meio judeu; aplaudir Yehudi Menuhin, um judeu... Não queremos matar ninguém, não queremos organizar pogroms. Mas pensamos também que o melhor modo para impedir as ações sempre imprevisíveis do antissemitismo instintivo é organizar um antissemitismo razoável". Não é, talvez, a mesma atitude que encontramos difundida no modo em que os nossos governos tratam a "ameaça imigração"?
Depois de termos rejeitado desprezivelmente o racismo populista enquanto "irrazoável" e inaceitável para os nossos padrões democráticos, apoiamos medidas "razoavelmente" racistas, ou, como nos dizem os Brasillach de hoje, alguns dos quais até social-democratas: "Permitimo-nos aplaudir atletas africanos e do Leste Europeu, médicos asiáticos, programadores de software indianos. Não queremos matar ninguém, não queremos organizar pogroms. Mas pensamos também que o melhor modo de impedir as instintivas ações violentas e imprevisíveis anti-imigração é organizar uma proteção anti-imigração razoável".
Essa perspectiva de desintoxicação do próximo sugere uma clara passagem da barbárie direta à barbárie com rosto humano. Revela a regressão do amor cristão pelo próximo ao instinto pagão de privilegiar a própria tribo com relação ao Outro, o bárbaro. Embora travestida de defesa dos valores cristãos, constitui a maior ameaça à herança cultural do cristianismo.
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O estrangeiro descafeinado. Artigo de Slavoj Žižek - Instituto Humanitas Unisinos - IHU