01 Fevereiro 2018
Jaqueline Vassallo, pesquisadora do Conicet da Universidade de Córdoba, trabalha sobre as maneiras pelas quais as mulheres tentavam evitar, negociar ou, diretamente, sofrer os códigos de comportamento dessa época.
Recuperar a história das mulheres que eram consideradas adúlteras, criminosas e feiticeiras no período colonial, é um exercício saudável para compreender como eram os processos de negociação e as formas de resistência desenvolvidas pelas mulheres. É útil saber como a Inquisição agiu com aquelas que eram acusadas do que se supunha serem crimes e de que maneira, em alguns casos, até mesmo as mulatas mais marginalizadas desenvolviam vias de fuga, desde que se dedicassem à magia e às curas para se relacionarem com as elites políticas como forma de ascensão social.
Nesta entrevista, Jaqueline Vassallo – pesquisadora independente do Conicet no Centro de Pesquisas e Estudos sobre Cultura e Sociedade da Universidade Nacional de Córdoba – ressalta que os exemplos de resistência não eram isolados e mostra que aquelas outras mulheres, as silenciadas (mas não mudas) e invisibilizadas (mas de carne e osso), também construíram a história, numa época em que a Argentina ainda nem existia.
A entrevista é de Pablo Esteban, publicada por Página/12, 31-01-2018. A tradução é de André Langer.
Seu tema de pesquisa são as mulheres e a Inquisição na época colonial. Como era Córdoba nessa época?
A Córdoba colonial transitou por vários momentos históricos. Para começar, há diferenças entre o que acontecia no século XVI, quando recém fundada por Jerónimo Luis de Cabrera, e o que aconteceu mais tarde, no final do século XVIII (contexto em que concentra seus esforços). Era uma cidade central que pertencia ao governo de Tucumán e mais tarde ao Vice-reinado do Rio da Prata; estava no Caminho Real e unificava o trânsito de Buenos Aires-Cuyo-Chile, bem como conectava Buenos Aires com o Alto Peru. Contava, além disso, com um centro religioso chave (torna-se sede do bispado), uma universidade (com um número significativo de bibliotecas) e a delegacia da Inquisição.
Neste contexto, qual foi a percepção social que foi construída sobre as mulheres?
Existe um modelo ideal que é compartilhado em toda a América colonial e na Espanha, e guarda relação com a ideia de inferioridade construída a partir de discursos biológicos (elas têm menos habilidades para dominar o seu ambiente) e religiosos (as mulheres foram tiradas da costela de Adão). Partindo disso, pensa-se que elas são seres dominados por seus úteros, seus corpos, seus humores e, portanto, elas precisam de uma tutela masculina, seja pai, irmão, marido ou sacerdote. No entanto, há várias distinções a serem feitas: na Córdoba colonial não é a mesma coisa ser uma mulher indígena, uma escrava ou uma espanhola. Dentro dos grupos são estabelecidos diferentes códigos de comportamento, gozos de direitos de acordo com as hierarquias.
Isso é interessante. Distinções também podem ser estabelecidas na marginalidade.
Não podemos observar as mulheres do mesmo modo, mesmo quando experimentam experiências semelhantes. Por exemplo, quando uma mulata livre e uma mulher espanhola eram infiéis aos seus maridos, elas passavam por jurisdições similares, mas enfrentavam castigos muito diferentes. De acordo com os registros documentais, o marido que pertencia à elite europeia, em geral, dirigia-se à justiça comum acusando-a de ser uma adúltera para obter uma sentença judicial e assim reparar sua honra ofendida; ao contrário, em um contexto de pobreza, os homens não se dirigiam à justiça, nem à igreja porque não concebiam que tivessem uma honra a corrigir perante seus pares, nem contavam com bens para distribuir.
Ou seja, eram visibilizadas e punidas de um modo diferente segundo o lugar social que ocupavam. Os castigos públicos eram comuns ou como agia a Inquisição?
Quando me refiro a processos judiciais comuns (homicídio, adultério, roubo de gado, etc.), as sentenças eram executadas na Plaza Mayor (atual Plaza San Martín). Pois bem, como em Córdoba não havia um Tribunal da Inquisição (havia uma delegacia com seu comissário: o sacerdote), as mulheres que cometiam alguma heresia ou falta de algum tipo eram enviadas a Lima com o expediente para serem processadas lá. Na verdade, tornava-se muito complicado, as causas deviam ser de grande importância, porque as acusadas tinham que pagar as despesas de translado e, em geral, não estavam em condições, porque antes disso tinham os bens embargados. Por esta razão, tradicionalmente, implementavam-se castigos privados, como uma temporada de confinamento na prisão do Cabildo de Córdoba sem sentença judicial.
Em vez de castigos públicos?
Bem, embora existam registros de castigos públicos e torturas no México, Lima e Cartagena de Índias, havia também muitas outras que penalizavam de outras maneiras sem a necessidade de atingir a exposição pública. Havia vias de fuga para as mulheres, resistências perante as acusações cotidianas e mecanismos de diálogo entre os próprios atores envolvidos nos conflitos. Então, desenvolviam-se processos de negociação que, às vezes, diluíam as denúncias. Nem tudo era repressão.
Neste cenário, como influía a presença do divino, do infernal, do milagroso e da feitiçaria em relação ao protagonismo que a Igreja tinha?
Em Córdoba, as mulatas são as que receberam o maior número de denúncias por feitiçaria, já que no período colonial as pessoas estavam muito próximas das práticas mágicas e da religião como estratégia para mitigar os medos sociais: quando uma peste se alastrava as pessoas corriam para a igreja para rezar. Enquanto, por um lado, recorriam a feiticeiras para curar um membro da família, também buscavam sacerdotes para que lhes expulsassem o diabo do corpo. No século XVIII, as pessoas que denunciam para os comissários uma feitiçaria não o faziam por ortodoxia – isto é, porque “de acordo com os editos, as pessoas que faziam feitiços deviam ser julgadas” –, mas porque os resultados da magia, muitas vezes, não eram os esperados.
Em seu trabalho, você assinala que as mulheres faziam magia para encontrar objetos perdidos, curar doenças e para ter melhor sorte no amor. Algum exemplo para compartilhar?
É curioso porque muitas das mulheres denunciadas aprenderam com os próprios sacerdotes a curar doenças. No campo da magia amorosa, há um caso muito interessante. María López morava em Córdoba e tinha um amante que não podia manter relações sexuais com sua esposa. Então, ocorreu-lhe começar a suspeitar de María e denunciou que, sempre que terminavam as relações sexuais, ela recolhia o sêmen com um lenço branco. Na ausência de María, um dia dirigiu-se à sua casa e encontrou uma pequena estátua de seu pênis feito de cera, perfurado por um fio vermelho e perfurado com agulhas. Perante o comissário, algum tempo depois, ela explicou que se tratava de um objeto que ela utilizava para retorcer a lã com que trabalhava. Para a nossa pesquisa, foi muito importante analisar o vínculo que o homem fazia com a feitiçaria e a associação das ações de seu amante com a incapacidade de fazer sexo com sua esposa e procriar.
Que atos de resistência diária as mulheres ofereciam a essas acusações dos homens?
Depende das mulheres, dos seus vínculos e da sua posição social. No entanto, além das limitações sociais e da falta de possibilidades legais, também se deve dizer que muitas passavam suas vidas sozinhas, criavam seus filhos de forma independente e tinham amantes. Na verdade, em muitos casos, elas eram mais livres do que tendemos a acreditar. Há registros de mulheres que violavam literalmente todas as normas: eram proprietárias, administravam seus bens e dirigiam-se diretamente à justiça do arcebispado caso quisessem a dissolução de seus matrimônios.
Quais eram as possibilidades de ascensão social?
Ser feiticeira ou curandeira em tempos coloniais – sempre e quando não eram processadas – significava experimentar boas possibilidades de ascensão social. Elas ocupavam lugares de poder sempre que eram requeridas pela elite para curar seu pessoal doméstico, para fazer algum feitiço contra seus maridos e para elaborar “brebajes” [bebidas elaboradas com ingredientes que, em geral, eram poucos saborosos] que se ajustavam aos objetivos do caso; e também, é claro, porque provocavam medo nos demais.
Sua pesquisa permite perceber as resistências de outras mulheres na América Latina.
Claro, por isso é fundamental estudar os contextos. Na década de 1990, achei que era fundamental pesquisar a história das mulheres, mas não apenas a história daquelas que pertenciam às elites; mais especificamente, o desafio era conhecer o que teria acontecido com as criminosas, as adúlteras e as feiticeiras. Com a ajuda de categorias como “gênero”, conseguimos desconstruir as representações sociais que vinham de discursos do período colonial e que em muitos casos continuam agindo e produzindo ações judiciais.
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Resistências femininas na Inquisição. Entrevista com Jaqueline Vassallo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU