27 Junho 2016
O Reino Unido quebrou o que parecia inalterável. O Brexit balançou as bolsas de valores europeias, deixou a classe política do Velho Continente em estado de nocaute e despertou as ambições separatistas de uma extrema direita que, desde alguns anos atrás, tem a sua hostilidade à construção europeia como uma de suas frentes de batalha preferidas. A chanceler alemã, Angela Merkel, alertou para as consequências do "golpe" contra a construção europeia e o consequente "processo de unificação da Europa". Figura destacada do euroliberalismo, Merkel convidou na segunda-feira o presidente francês, François Hollande, e o chefe do governo italiano, Matteo Renzi, para uma reunião fechada. François Hollande, por sua vez, com sua prosa literária característica, admitiu que a Europa já não poderia "agir como antes" e propôs que a Europa se concentrasse em um "roteiro", cujo conteúdo seria "o investimento em favor do crescimento, da harmonização fiscal e social ", assim como, "o reforço da zona do euro e a sua governabilidade democrática".
Estas medidas são exatamente o contrário do que tem se realizado até agora, especialmente no que tange à "governabilidade democrática" da zona do euro. A crise grega e a maneira com que as medidas de austeridade foram impostas a Atenas são um filme de terror da metodologia atual. O Brexit posiciona a narrativa central da extrema-direita europeia em uma aura de legitimidade e possibilita um campo de influência política de difícil avaliação no momento. Nada resume melhor seu entusiasmo do que a frase postada no Twitter por Matteo Salvani, líder da Liga do Norte italiana: "Agora chegou a nossa vez."
A reportagem é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 25-06-2016. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Na França, que é atualmente o país mais popular dessa corrente política em nível europeu, a líder da Frente Nacional, Marine Le Pen, convocou um referendo semelhante ao britânico "na França e em outros países da União Europeia". A mesma exigência foi levantada na Holanda por Geert Wilders, líder da formação de extrema-direita e antimuçulmana, o Partido da Liberdade. O entusiasmo da ultradireita está, no entanto, cheio de incertezas, porque ninguém sabe exatamente o que vai acontecer e a quem essa ruptura da UE realmente vai beneficiar. O presidente do Parlamento Europeu, o social democrata alemão Martin Schulz, estimou que "não haverá espaço para a reação em cadeia que os eurocéticos celebram hoje". Ainda assim, com a França na liderança, as extrema-direitas na Itália e na Holanda são muito poderosas. Se elas conseguissem impor um esquema semelhante ao do Reino Unido, a ruptura de um destes três países fundadores da UE desencadearia a decadência ao inferno. As extrema-direitas da Alemanha, da Áustria e da Dinamarca também esperam contabilizar este primeiro exemplo de um país que, mesmo se tivesse estatuto especial dentro da UE, decidiu que é possível viver fora do rebanho, sem "desencadear o apocalipse", de acordo com o que disse a Frente Nacional na França.
As extrema-direitas estão em fase de aposentadoria. A vitória do Brexit valida a possibilidade de que essa sugestão de viver "fora" não seja uma proposta absurda, nem um atentado contra a democracia discutida por uma minoria extremista. Os Eurocéticos obtiveram um triunfo radical. Como expressava o extremista de direita holandês, Geert Wilders: "a elite europeia eufórica foi vencida. Os britânicos nos mostram o caminho para a libertação". Em termos de dimensão política, o Brexit veio a desempenhar o papel de um teste em tempo real para as propostas de ruptura da extrema-direita europeia. Através do ocorrido na Grã-Bretanha, a Frente Nacional francesa assiste à realização do seu projeto, ou seja, a retirada da França da UE e da zona euro.
A questão da "soberania nacional" e, portanto, monetária (em relação ao euro), deixou de ser um discurso concentrado tanto na extrema-direita quanto na extrema-esquerda soberanista. A votação britânica se antecipou como um dos principais eixos de discussão em todas as campanhas eleitorais a serem realizadas no futuro. Na França, a consulta presidencial se realizará em menos de um ano e o que acabou de acontecer, sem dúvida, alterará seu conteúdo. Trata-se de uma espécie de "revolução popular" (diário Libération) contra um projeto que deixou de ser de autoria do povo para ficar nas mãos das elites europeias. A cultura da fronteira fechada, da soberania, derrotou a temática oficialista de abertura e livre comércio.
Como um presente de Natal, isto recolocou no centro a relevância do que a extrema-direita está reivindicando desde a década de 90. Ela encontrou nos povos britânicos um aliado que desafiou todos aqueles que foram apontados como inimigos: a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu, a remuneração média da UE, os "partidos de governo" cúmplices da Euroburocracia, a "tecnocracia totalitária" (Marine Le Pen). Apesar de ainda obscuro, o terreno nunca foi tão propício para as propostas da Frente Nacional e seus movimentos afins: desencanto da opinião pública, uma aterradora imobilidade e egoísmo frente à crise migratória, além de uma desconfiança relacionada ao que é maior do que a referência nacional, que tanto agita os corações populares.
Hoje, inclusive se discute a possibilidade de uma ampla aliança entre as extremas direitas na Europa. Em 2014, após as eleições europeias, o líder dos eurocéticos ultradireitistas na Grã-Bretanha, Nigel Farage, havia descartado qualquer aliança com a FN francesa, porque este partido "tem o antissemitismo no DNA". Tudo pode mudar ali adiante. Desde já, a extrema direita da Alternativa para a Alemanha (AfD) está protagonizando uma reaproximação com a FN francesa, enquanto os aliados da extrema-direita francesa no Parlamento Europeu, se unem ao grupo parlamentar "Europa das Nações e das Liberdades", aos Partidos da Liberdade austríaca (FPÖ) e holandesa (PVV), além da Liga do Norte italiana, ganhando um grande peso em torno de sua maior narrativa, "a Europa das nações".
A síndrome da Nação contra o conjunto ganhou nuances arrojadas e levou a segunda maior economia da UE a se afastar após ter ingressado há 43 anos.
A referenciação nacional destruiu o projeto de um espaço geográfico pacífico, solidário e regulado por normas comuns. Os eurocéticos receberam reforços consistentes. No entanto, não é a primeira vez que os povos questionam o projeto europeu: é a segunda em pouco mais de um ano. Em 15 de julho de 2015, o primeiro-ministro grego Alexis Tsipras organizou um referendo para consultar a sociedade sobre a aceitação ou não do plano de rigor para contenção econômica, proposto pela famosa tríade (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI) em troca de um novo pacote de ajuda. O "não" venceu com 61,31% dos votos e, com ele, no momento, o Eurogrupo se perdeu. Então, comentou-se que a Grécia disse não à Europa e ao euro. Em outro sentido, em um âmbito mais amplo, a Grã-Bretanha repete uma segunda negação contundente, justo quando os populismos de extrema-direita cresceram e o declínio do sonho da União Europeia se agravou. Seus líderes só estão esperando que o pior aconteça para ficarem com os tributos do fracasso coletivo.
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Nocaute à elite europeia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU