11 Janeiro 2018
Anne Soupa, biblista, de forma narrativa apresenta o percurso realizado pelo "Comité de la jupe", do qual é fundadora, em relação ao tema da ordenação de mulheres. Ao tema da ordenação das mulheres não poderia não se entrelaçar o do sacerdócio comum, assunto que a autora define como um prenúncio de uma revolução copernicana.
O relato é publicado pela revista Esodo, no. 4, 2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Comité de la jupe1, nasceu de uma expressão ofensiva do cardeal André Vingt-Trois, arcebispo de Paris e presidente da Conferência Episcopal, que foi questionado sobre a ordenação das mulheres. Esse não era o seu objetivo específico, mas acabou envolvido. Parece-me interessante contar como surgiu essa questão, e depois continuar.
Em 2008, a questão debatida no Comitê de la jupe era sobre a dignidade das mulheres.
O cardeal, retornando do Sínodo sobre a Palavra de Deus - onde tinha debatido sobre a fundação de um eventual ministério permanente do leitor e acólito (que não teria sido possível recusar, evidentemente, às mulheres) - tomou a palavra na Rádio Notre Dame e, em resposta à pergunta de um jornalista, disse: "A coisa mais importante é ter mulheres formadas; não é o suficiente usar uma saia, o que vale é ter alguma coisa na cabeça". Ainda mais estranho é que o jornalista não replicou nada.
Mais de 300 cartas de repúdio de mulheres se acumulam na escrivaninha do cardeal, sem que ele se preocupasse em responder; a jornalista e escritora Monique Hebrard fez de tudo para conseguir no La Croix um pequeno artigo em que expressou seu assombro. De minha parte, só fiquei sabendo da frase em questão três semanas mais tarde, quando decidi com Christine Pedotti, denunciá-lo no tribunal eclesiástico de Paris. Ao mesmo tempo, a Agência France-Presse, alertada, transmitiu a informação em menos de 10 minutos. No dia seguinte, o cardeal estava na primeira página do jornal Le Parisien, sob a acusação pouco lisonjeira de "machismo". Diante de suas explicações enfáticas (que ele quis dizer exatamente o contrário) retiramos a denúncia. Mas o mal - ou o bem – já tinha sido feito.
A questão da ordenação das mulheres nos mobilizou e provocou um intenso debate em nosso grupo. Era necessário pedir a ordenação de mulheres? Em 2010, mais ou menos, o grupo de mulheres já era em grande parte composto por conhecidas teólogas ou exegetas, cujas publicações eram bem focadas, como Mariy Dealy, Kari Elisabeth Borresen (Subordination et équivalence,1969) ou Elisabeth Schüssler Fiorenza, (En Memoire d'elle, 1986). Também eram muitas as vozes que se manifestavam do Quebec, especialmente (Femmes et Ministères), da França e de outros lugares, vozes que pediam para reconsiderar a posição das mulheres. Tudo fazia pensar que nos anos 1970-90 o próximo passo seria, se não o sacerdócio, ao menos o diaconato. Mas quando o Comitê de la jupe entrou em jogo, a onda restauradora já estava em marcha, especialmente na França, terra marcada pela presença mordaz de Charles Maurras.
De "ativas", fomos transformadas em "reativas". Devemos, no entanto, reconhecer que a nossa posição era bastante ambivalente: por um lado, professávamos a igualdade aos brados, especialmente ao nível de responsabilidade nas decisões gerais da Igreja. Pelo outro lado, nós não reivindicávamos abertamente o acesso ao presbiterado, coisa que nos reservava sorrisos "benévolos" por parte do magistério: não éramos, então, tão perigosas! Tínhamos sido, no entanto, muito críticas sobre o diagnóstico da Igreja: tínhamos "denunciado tudo"! A prepotência de um predomínio masculino nos relatos da criação, a proletarização das mulheres, o confisco de sua palavra, a contradição flagrante entre o comportamento de Jesus e o do magistério, o discurso adoçado e anestesiante deste último e, finalmente, a acusação de querer 'tomar o poder' (curiosamente, o poder é “bom” quando está na mão do clero e “mau” quando aqueles que não têm o pedem)2. Outras pessoas desconstruíram exaustivamente os grandes textos magisteriais sobre esse tema3.
Sobre o sacerdócio feminino, também respondemos às objeções do magistério:
1.- "Jesus escolheu doze homens, mesmo quando ele estava cercado por mulheres, isso mostra muito bem a sua vontade de escolher apenas homens como apóstolos". A resposta é que os Doze foram escolhidos como imagem das doze tribos de Israel, e este elemento chama justamente todos/as e serem apóstolos/as
2.- De acordo com a Declaração Inter Insigniores, "o próprio Cristo foi e continua sendo um homem”4. Se for o Cristo ressuscitado a partir das aparições da Páscoa, ele certamente permanece com a identidade de homem. Mas se for designado o Cristo de todos os tempos, como aquele que sustenta e vivifica a sua Igreja, que recebemos no pão e no vinho, a declaração é inadmissível. O Corpo e o Sangue da Eucaristia seriam sempre do sexo masculino? E essa unidade formada pelo Corpo e Sangue, deve ela própria apenas pertencer ao sexo masculino? A Declaração, afirmando no mesmo parágrafo, que "a encarnação do Verbo realizou-se de acordo com o sexo masculino", sugere que é o Verbo próprio de Deus que seria sexuado. Mas Deus é imutável, sem dúvida! A segunda consequência é que, se Cristo continuasse ad aeternum a ser do sexo masculino, ele, que não foi mulher, que não foi "mãe" (essa condição tão essencial no magistério para definir o ser mulher!) não conheceu tudo na condição humana. Um Cristo assim não poderia saber nada sobre as mulheres.
3.- O uso do simbolismo nupcial, poético no tempo dos profetas do Antigo Testamento, assumiu um caráter jurídico sob a influência do espírito latino. O símbolo, portanto, ficou desnaturado, a ponto de parecer contraditório, como quando confere à masculinidade do sacerdote um caráter de fundamento, já que ele, atuando in persona Christi5, "deve" obrigatoriamente ser um homem, enquanto a fêmea Igreja, "noiva de Cristo" não poderá que ser governada por "homens"6. Prova, caso fosse necessário, que o símbolo funciona como instrumento de poder e de subserviência para aqueles que são os maus “beneficiários”.
Fortalecidas por essas análises, nós - na verdade, era insustentável, midiaticamente falando, ficar fora da arena - mudamos o nosso estatuto para inserir o empenho por uma plena igualdade, em todas as áreas de responsabilidade.
Mas tomamos essa opção apenas para defender uma posição igualitária e não diferencialista. A essa altura, os bispos já faziam menos sorrisos. Por outro lado, não é difícil verificar que as mulheres, que há cerca de 5 anos prestam atenção ao Vaticano e às quais são confiadas responsabilidades - em doses homeopáticas - são abertamente diferencialista. Elas aceitam a situação atual e sem hesitação validam a "diferença feminina", que serve para assujeitá-las.
Para nós, é evidente desde o início que o problema está mal colocado. As mulheres que se lançam destemidamente na militância em favor da ordenação estão sendo ludibriadas por um jogo de espelhos: querem o que o outro tem. É o reflexo mimético bem desmascarado por René Girard. A montante da questão do sacerdócio das mulheres, é necessário, parece-me, colocar dois questionamentos: o que é o carisma cristão acerca do sacerdócio? Quais são as expectativas dos nossos contemporâneos?
Primeiro é preciso (de novo!) denunciar o ressurgimento atual, violento, reivindicativo - de maneira autoritária por jovens padres formados em seminários tradicionalistas - de uma concepção de padre que se acreditava tinha desaparecido. Pode ser observada a partir das recentes medidas tomadas na maioria das grandes cidades da França, disposições que convidavam a discriminar meninas e meninos no serviço do altar, de acordo com o slogan: "os meninos no altar, as meninas do coração".
Sobre essa questão, Paris é bem mais reacionária do que Roma! É preciso considerar que, tentando favorecer as vocações presbiteriais, tais disposições separam de acordo com a "pureza". O povo, em sua totalidade, seria impuro, e as mulheres, mais ainda. O sacerdote assume assim uma posição de mediador, como era às vezes no Antigo Testamento. Ele governa o coração, que se tornou "o seu espaço" de "mediação" entre a assembleia e Deus. Devemos lembrar que as únicas menções à palavra "sacerdote" nos Evangelhos são as do sumo sacerdote que condenou Jesus à morte, e parece-me bastante importante entender o que diz o teólogo Joseph Moingt em resposta à nossa primeira pergunta. Esse homem centenário, de incrível dinamismo, de cultura enciclopédica, é verdadeiramente o maître à penser do amanhã, aquele em que os batizados podem fundamentar o próprio agir como cristãos.
Ele definiu o cristianismo como um "novo humanismo", baseado no paradoxo do exercício do poder sem domínio e sem desigualdade, e colocou profundamente sob julgamento a preeminência do sacerdócio ministerial, a partir do motivo de que ele não obedece à injunção evangélica, além de outras três razões essenciais.
1. A tese [a preeminência do ministério sacerdotal, ndr] é teologicamente mal fundamentada. É, de fato, concebida segundo o modelo de mediação em vez do que o da missão histórica do Espírito Santo7. A Ascensão de Jesus é destinada a favorecer a vinda do Espírito, para não dar à Igreja uma finalidade cultual. Mas, para combater as heresias gnósticas, a Igreja dos primeiros séculos ressuscitou o modelo vétero-testamentário do sacerdócio sagrado8. É uma consequência, também, da rivalidade (esta também mimética) com o judaísmo, que a impeliu a vincular a esse sacerdócio um sentido de sacrifício que uma liturgia deveria renovar indefinidamente9. Portanto, desviou-a de sua trajetória evangélica.
2. A tese não tem nenhuma justificação histórica: não há sacerdócio sagrado antes do terceiro século! Joseph Moingt insiste em martelar: "Quando se consultam os relatos das origens cristãs, não se vê nenhum apóstolo, nem mais ninguém, colocar-se dentro da comunidade, assumindo um caráter sagrado, nem agir como ministro de um novo culto, nem realizar atos especificamente rituais ; não pode ser encontrado nenhum traço de distinção entre consagrados e não-consagrados [...], a lista de ônus de uma instituição sacerdotal está vazia10". E acrescenta: "a funcionalidade do sacerdócio é atribuída à hermenêutica da Igreja, que a define de acordo com as suas necessidades11".
3. A tese é demasiado radical. Coloca o povo cristão sob a dependência do clero, e o reduz ao status de menoridade jurídica. Além disso, esconde a evasão real dos fiéis e o fosso que se cava na cultura atual.
Como pode ser visto, o problema vai além da questão da ordenação das mulheres ou do acesso de pessoas casadas ao presbiterado. O desafio atual é inventar um novo estar-juntos, uma "com-cidadania" fora de qualquer lógica clerical, tendo, desde o início, restabelecido como base, a igualdade e devolvido a palavra a todos12.É uma tarefa em longo prazo, para a qual é preciso semear ... A Conférence des baptisées, por exemplo, tem investido fortemente na criação de uma opinião pública católica, através do seu site e de sua presença muito ativa nas mídias sociais13. Por causa de um conluio interesse com o poder mundano, a partir do IV século, a Igreja logo se acostumou a agir segundo uma lógica de relações de domínio. A distinção clero-laicos tornou-se um abismo impossível de ser cruzado, e o clero confiscou o anúncio do Evangelho. Em nosso mundo democratizado, a autoridade na Igreja aparece como um sinal da desigualdade, e a palavra não é mais anunciada para o mundo, porque o modelo religioso que a sustenta esgotou-se.
O impasse permanecerá enquanto os ministérios continuarem a ser pensados a partir do sacerdócio ministerial. E com isso, a posição das mulheres recebe uma nova luz; ela não será reconhecida até que todos os ministérios não tiverem sido repensados com referência não mais ao sacerdócio ministerial, mas ao sacerdócio comum dos batizados, reabilitados pelo Vaticano II. É, portanto, dever de cada batizado trabalhar na revitalização desse fundamento evangélico.
Embora nossas ações nesse sentido sejam ainda muito modestas, estendo-as para a vossa reflexão. Na Conférence des baptisées, cuja vocação é despertar a consciência dos batizados, definimos três "ministérios" - no quadro do sacerdócio comum - que parecem particularmente decisivos. São da benevolência, da escuta e da esperança. Tanto nas relações intraeclesiásticas como no anúncio do Evangelho ad extra, essas três funções são centrais.
A benevolência, virtude evangélica, retomada em seu tempo por Inácio de Loyola nos seus exercícios, é a resposta a uma sociedade acossada pela pressa, cheia de arestas nas relações interpessoais, uma sociedade em mudança, em contato com estrangeiros sem descanso, uma sociedade onde um número impressionante de trocas, estabelecida sem a presença de corpos e rostos, leva rapidamente à invectiva. É também uma resposta aos problemas de uma Igreja (pelo menos na França) ameaçada por rompimentos.
Também a escuta é hoje uma necessidade vital. Na Igreja e na sociedade, a escuta amortece a dor de mudanças demasiado bruscas, a solidão das grandes cidades, a liberdade que se tornou um ídolo e que pode se transformar em abandono.
A esperança, por fim, possibilita que os indivíduos - em um mundo em mudança, pouco preocupado sobre o seu passado - permitam-se ter novamente um futuro onde sejam esperados.
Outra questão - ainda não resolvida pela Conférence - é traduzir esses ministérios em ações concretas através do prisma do sacerdócio comum dos fiéis. Como fazer com que cada batizado descubra que ele é, como batizado, depositário desses três missões? Essa seria a base de outra pastoral? De uma espiritualidade? Continuamos a nossa reflexão, e ficaremos muito felizes em continuá-la junto com outros.
Gostaria de encerrar esta análise com um questionamento sobre a "maneira correta" para iniciar a revolução copernicana que, para as mulheres, mas também para os leigos homens e para todos os batizados, é o único horizonte de sentido que realmente vale a pena. Certamente, seria necessário trabalhar sobre o sacerdócio comum, o sensus fidei, a espiritualidade batismal, a definição do laicato. Mas, uma urgência nos chama para outro lugar: a necessidade de inserir na realidade concreta a revolução copernicana do sacerdócio comum.
Com um espírito de criatividade e teimosia, e, principalmente, sem imaginar que o trabalho poderá ser logo terminado...
É o hic et nunc que o Reino provoca dentro de nós! A primeira maneira que eu sugiro é atrair a simpatia de muitos homens, especialmente das paróquias, pois o ganho será para todos. A segunda é de ultrapassar as nossas fronteiras para agir ao nível europeu. Finalmente, é necessário produzir gestos fortes, ao mesmo tempo subversivos e evangélicos.
A primeira reunião mundial que se realizou em Paris do “Conselho das Mulheres” organizado pelo Comité de la Jupe três dias antes da eleição de Francisco teve uma intuição profética, concluída com o pedido por um papa da misericórdia e não da lei. São ações desse tipo nas quais, parece-me, temos uma possibilidade de ser produtoras de significado. Diante dessa falsificação do evangelho constituída pelo clericalismo, tudo é melhor do que o silêncio ou a inação.
1. www.comitedelajupe.fr; [significa: comitê das saias, ndr].
2. Christine Pedotti e Anne Soupa, Les Pieds dans le bénitier, Presses de Renascença, 2010; Anne Soupa,Dieu aime-il les femmes? Médiaspaul, 2012; Anne Soupa, Douze femmes dans la vie de Jésus, Salvator, 2014. Michèle Jeunet,Masculin-Féminin, Où en sommes-nous?, 2015.
3. Maud Amandier et Alice Chablis, Le Déni, Bayard, 2014.
4. Inter Insigniores, V, 27.
5. Inter Insigniores, V, 32.
6. Inter Insigniores, V, 33.
7. De Dieu aqui vient à l'homme t. 2, 2, p.839.
8. Croire au Dieu aqui vient, t.2, p. 438).
9. Croire au Dieu aqui vient t.2, p. 490.
10. Dieu qui vient à l'homme , t. 2, 2, p. 842.
11. Dieu qui vient à l'homme , t. 2, 2, p. 843.
12. Croire quand même, p. 193.
13. www.baptises.fr
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A ordenação de mulheres. Artigo de Anne Soupa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU