Por: João Vitor Santos | 11 Novembro 2017
A Modernidade realinha vários conceitos que há séculos já vinham sendo trabalhados, mas noutras perspectivas. Para Carolina Molina, que recentemente concluiu a graduação em Filosofia, não foi diferente com o que houve com o campo da Filosofia. Se antes, para os gregos, o ato de filosofar era se pôr a pensar a partir da vida concreta, hoje essa visão já não tem a mesma força e ela é posta numa perspectiva moderna de campo científico. Com isso, as reflexões foram se tornando cada vez mais teóricas e abstratas, quase que se constituindo como algo alheio a vida que se vive. Na sua pesquisa de conclusão de curso, Carolina quis subverter essa lógica e pensar a Filosofia como forma de vida, muito próximo ao helenismo grego. “É na Filosofia Antiga que se vê essa Filosofia como forma de vida. Algo muito diferente da representação que temos hoje”, reitera. E dispara: “a academia deixou de fora todos os aspectos filosóficos mais helenísticos, que justamente fazia da filosofia uma forma de vida e não um estudo mais teórico”.
Carolina foi a conferencista na última edição do IHU Ideias, ocorrida na quinta-feira, 9-11, dentro da programação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. E, ainda antes de falar em helenismo, Filosofia ou academia, ela abre sua exposição clareando o que de fato é essa tal Filosofia como forma de vida. “É quase o contrário do que estou fazendo aqui, dentro desse processo da academia. Pesquisamos, escrevemos e depois falamos, damos aulas sobre essa nossa experiência. Para os gregos, mais importante do que esse discurso era viver a experiência, partilhar as ideias”. Ou seja, era propriamente fazer Filosofia e não teorizar sobre. “Essa perspectiva visa a transformação do sujeito. Ele escolhe uma escola filosófica e faz dessa uma escolha de vida”, acrescenta.
Carolina: "É na Filosofia Antiga que se vê essa Filosofia como forma de vida" (Foto: João Vitor Santos/IHU)
Para esse percurso de busca pelo fazer filosófico grego, Carolina se apoia nas reflexões do filósofo e historiador francês Pierre Hadot (1922 –2010). Especialista em filosofia do período helenístico e, principalmente, platonismo, Hadot recupera justamente a ideia da filosofia como um modo de vida. “Ele é provocado a pensar sobre Filosofia Antiga a partir do que vai lendo em notas de filósofos modernos. Dizia-se que os filósofos clássicos escreviam muito mal. Isso incomodou Hadot e o fez pesquisar sobre”, destaca Carolina. Segundo ela, na verdade, o que havia era uma predileção pela experiência filosófico e não pelos escritos. Os poucos escritos que se tem, são meros guias, quase que como anotações esparsas. “O nosso problema é que lemos obras antigas com olhos modernos. Queremos achar nelas questões acabadas e resolvidas. A Modernidade nos faz ver a filosofia dessa forma”, pontua Carolina.
Carolina Molina ainda destaca que é importante ter a clareza de que a representação que temos do conhecimento hoje é muito distinta do período helenístico. Atualmente, por exemplo, temos a escrita, o livro impresso e nas mais diferentes plataformas. “A oralidade e a experiência para os fundadores da Filosofia era o mais importante. Eles sempre buscavam a formação e não apenas a informação”, completa. Assim, ressalta que a Filosofia tinha um caráter psicológico de transformação do ser a partir da forma de vida que escolhe. “Existia sim um discurso, mas todo em função de uma vida filosófica. O discurso em si não era o mais importante”, reitera. É nesse contexto que emergem filósofos como Sócrates. “Tanto é que não temos tantas obras dele escritas. Ele é um modelo de filosofia como modo de vida”.
Academia de Platão, Mosaico em Pompéia | Foto: Wikipedia
Mas como esses filósofos alcançavam esse grau de filosofia? Carolina explica que um caminho é pelos exercícios espirituais, objeto de estudo de Hadot. São, segunda sua pesquisa, exercícios dirigidos para buscar essa Filosofia como forma de vida. São quase que como técnicas, mas não descritas de forma pragmática e sim muito mais da ordem do experiencial, que aparecem nas mais distintas escolas filosóficas antigas. “Essas escolas escolhem caminhos diferentes, mas que tem o mesmo propósito de destacar essa forma de vida. Isso porque todas elas concebem o ser humano como em constante agonia e a Filosofia pode ser um caminho para buscar a libertação desse sofrimento. É uma busca pela tranquilidade da alma”.
A associação do conceito filosófico dos exercícios espirituais com a perspectiva teológica é quase que inevitável. Entretanto, Carolina explica que a visada teológica e religiosa é apenas uma da complexidade que é o conceito para a filosofia. Ou seja, experiências como os exercícios espirituais de Inácio de Loyola são apenas uma das facetas, um desdobramento desses exercícios como eram compreendidos na Filosofia Antiga. “A opção por esse conceito é, inclusive motivo de críticas a Pierre Hadot, pela associação que se faz a religião. Mas ele opta pela ideia de espírito porque diz respeito a com a integralidade da pessoa humana”, esclarece. “Para Hadot, os exercícios são práticas físicas, discursivas, intuitivas, mas todas destinadas a modificação e alteração dos sujeitos”, explica.
É por esse motivo, também, segundo ela, que não há um manual dos exercícios propriamente dito. Hadot consegue chegar apenas a uma ideia de classificação, com base em como eram desenvolvidos em cada escola filosófica. Demonstrando essa classificação, Carolina reitera a reincidência de algumas perspectivas como os exercícios relacionados a morte e a meditação. “Mas não é só pensar sobre. Há um diálogo que assume uma centralidade para que se deixe o seu próprio discurso e se chegue ao outro. E vai além: perpassa esse outro e busca algo em comum”, exemplifica. “Por isso que o conteúdo pouco importa, mas sim a experiência que se vive”, completa.
Pierre Hadot é frequentemente referenciado como o filósofo que inspirou o pensador francês Michel Foucault (1926 —1984) na concepção de seu conceito de “cuidado de si”. Carolina Molina explica que é importante observar a repercussão da obra de Hadot em Foucault. Entretanto, destaca que os dois não chegaram a estabelecer um diálogo muito profundo. “O próprio Hadot diz que lamenta não ter lido Foucault antes. Esse primeiro só soube da produção do conterrâneo depois que teria sido procurado pelo próprio Foucault”, ilustra.
Fato é que sobre a obra de Michel Foucault, Pierre Hadot tem poucas palavras. E nessas poucas palavras algumas críticas. Embora tenha ido até os gregos para pensar noutras formas do governo de si, para Hadot, Foucault descola da perspectiva da filosofia antiga quando centra a reflexão muito em si e suprime em grande parte o contato com o outro. “Não é por nada que ele recusa a razão universal e busca apenas algo para si e não o bem comum. Tem o foco no indivíduo e não no bem comum, não na união do todo”.
Pierre Hadot | Foto: Wikipedia
Voltando a esquema apresentado por Carolina anteriormente, quando a filosofia como forma de vida busca não só a meditação para o diálogo com o outro para transcender o outro e chegar a união com um todo, para ela, Foucault ficaria nesse primeiro movimento. Isto é, buscava um contato dialógico com o outro, mas que volta a si e não a transcender o outro em busca de um bem comum.
Carolina Molina ainda reflete acerca da história da filosofia para pensar como a perspectiva da experiência vai sendo preterida em detrimento a constituição do discurso teórico. “Não é que depois da Antiguidade se deixou de exercer a filosofia como forma de vida, mas essa experiência já não é mais feita em 100%. Ela não some, mas vai ficando muito reduzida”, esclarece. Um dos processos que contribuem para isso é a cristianização. Quando o cristianismo rebatiza e incorpora as práticas do fazer filosófico essas marcas vão sendo suprimidas. “A filosofia ficou reclusa pelo ser cristão. Isso a reduz porque não a vê mais as experiências das formas de vida e se coloca como a própria Filosofia, a experiência da vida”.
Ao longo de sua exposição, ao passar pelas escolas da Filosofia Antiga, Carolina fala acerca da liberdade. Mais adiante, é questionada sobre essa ideia de liberdade. A pergunta feita por Jean, um jovem estudante de Filosofia da Unisinos, revela uma segunda lógica que reduz a experiência da filosofia como forma de vida. Ele questiona se não seria o cristianismo que reduz ainda mais essa ideia de liberdade, que na antiguidade já é restrita pois a liberdade que se tinha era de aceitar ou não um determinado designo, ou acontecimento da vida. “O problema é que o conceito Moderno que temos de liberdade é muito diferente do que os gregos tinham”, responde Carolina, ainda tentando defender o conceito dilatado de liberdade na Antiguidade. Mas, para compreender isso, seguindo com ela, é preciso não olhar para a filosofia e até para teologia clássica com olhos modernos.
Assim, a partir de sua experiência de vida, Carolina lança o desafio de se pensar a filosofia como forma de vida em nosso tempo. Ou, seguindo a metodologia helenística, provoca a pensar a nossas práticas de forma reflexiva, como que buscando estofo teórico as opções que tomamos por nossa vida. Para ela, fazer esse exercício é fazer filosofia prática como forma de vida, superando o academicismo de tratados filosóficos alicerçados apenas na teoria. Lógica e provocação que são destinados ao campo da filosofia, mas que podem muito bem servir a outros tantos campos dados como científicos.
Carolina em projeto social da Comunidade Missionária de Cristo Ressuscitado em São Leopoldo (Foto: Susana Rocca/IHU)
Carolina Alejandra Reyes Molina é chilena, possui graduação em Ciências Religiosas pela Pontificia Universidad Católica de Valparaiso, no Chile, e em Filosofia pela Unisinos. Ela também integra a Comunidade Missionária de Cristo Ressuscitado. Ela conta que o tema da Filosofia como Forma de Vida, a partir de Pierre Hadot não foi uma escolha só sua. Conhecendo o seu trabalho missionário junto a pessoas carentes, seu orientador no curso de Filosofia, Castor Bartolomé Ruiz, professor do Programa em Pós-graduação em Filosofia da Unisinos, propôs que se aproximasse dessa perspectiva. “E considero que nada é por acaso. Penso que essa teoria tem muita relação com as opções que fiz para minha vida”, destaca Carolina.
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Os limites do vício moderno de ver o passado com olhos no presente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU