23 Outubro 2017
O princípio da não violência é central no budismo. Mas quando Mianmar deixou para trás 50 anos de ditadura militar e iniciou uma transição política em 2011, ganhou força nesse país do Sudeste Asiático uma vertente budista ultranacionalista que prega um ódio anti-islâmico que é em parte responsável por uma das maiores crises humanitárias da atualidade.
A reportagem é de Carolina Vila-Nova, publicada por Folha de S. Paulo, 22-10-2017.
A figura mais notória desse budismo é o Venerável (Ashin) Wirathu, 49, abade do mosteiro de Masoeyein, com cerca de 2.500 monges, em Mandalay, capital religiosa de Mianmar. Ele já foi apelidado de "Bin Laden budista", e uma capa da revista americana "Time" o chamou de "a face do terror budista".
Wirathu foi alçado a figura nacional, de sua natal Kyaukse, perto de Mandalay, há menos de 15 anos. Em vídeo, prometia que muçulmanos não teriam o que comer nem onde morar e pedia: "ao meu sinal, sigam-me".
Um mês depois, gangues budistas mataram 11 muçulmanos, destruíram duas mesquitas e incendiaram mais de 40 casas em Kyaukse. Wirathu foi preso e condenado a 25 anos de prisão por incitação ao ódio religioso.
Após cumprir nove anos da pena, Wirathu foi beneficiado em 2012 por uma anistia do governo de Thein Sein. Criou um canal no YouTube, uma página no Facebook e um movimento, o 969 —alusão às virtudes de Buda— para disseminar suas ideias.
Distúrbios étnico-religiosos logo irromperam no Estado de Rakhine (norte), onde grande parte da população de etnia rohingya, muçulmana, vive. Wirathu liderava marchas ali, defendendo proposta de Sein de mandar a minoria étnica, que perfaz 4% da população de Mianmar, para um terceiro país.
A onda de violência contra os rohingyas que entrou por 2013 fez com que o clero budista o bloqueasse nas mídias sociais e banisse o 969. Mas as pregações continuaram, e o 969 virou uma estrutura mais formal, a MaBaTha (Associação para a Proteção da Religião e da Raça).
Em janeiro último, quando o monge aplaudiu publicamente a morte de um advogado islâmico de direitos humanos, o governo o proibiu de pregar. Mas ele continua fazendo discursos em locais públicos, como este narrado pelo "Wall Street Journal": "Que tipo de gente são os muçulmanos? Eles comem arroz pelo ânus e excretam pela boca? Eles são o contrário de tudo que há na natureza", disse o venerável a cerca de mil pessoas perto de Yangon, a principal cidade do país.
Os budistas são 88% dos 54 milhões que vivem em Mianmar. Wirathu, porém, tem uma ideia fixa: a de que os rohingyas são um câncer que vai carcomer o país.
"Se vamos viver em paz e harmonia, não cabe ao povo birmanês. Depende dos muçulmanos. Eles estão devorando o povo birmanês, destruindo o budismo e a ordem budista, adotando ações para tornar Mianmar um país muçulmano", diz.
Seu discurso gira em torno da ideia de que a aniquilação muçulmana é condição necessária para a preservação da maioria budista no país.
"Toda nossa raça tem sofrido muito sob o jugo dessa minoria [rohingya]. A maioria dos birmaneses não se meteu com eles, não abusou deles, mas está sofrendo sob seu jugo. Se houver tantos muçulmanos quanto há budistas, nunca teremos paz", afirma.
Por isso, outra obsessão do abade é a proibição de casamentos interreligiosos. Em célebre sermão a mulheres budistas, Wirathu perguntava, e elas respondiam:
— "O que vai ocorrer com a nossa religião se vocês se casarem com um muçulmano?
— Ela vai desaparecer.
— Então é melhor se casar com um alcoólatra ou com um muçulmano? (rindo)
— Com um alcoólatra.
— Com um viciado ou um muçulmano?
— Com um viciado.
— Com um mendigo ou um muçulmano?
— Com um mendigo.
— Com um cachorro ou um muçulmano?
— Com um cachorro."
"A violência contra muçulmanos em Mianmar existe antes de Wirathu, mas seus discursos contribuem para o aumento do sentimento anti-islâmico ao redor do país", disse à "Vice" Bill Davis, da ONG Médicos pelos Direitos Humanos em Mianmar.
A mais recente onda de violência começou depois que um ataque do Arsa (Exército da Salvação Rohingya Arakan) no Rakhine levou a uma campanha de repressão pelo Exército que a ONU classificou de "limpeza étnica".
A campanha inclui a destruição das casas de muçulmanos, além de assassinatos, estupros e tortura, levando à fuga de 500 mil pessoas para a vizinha Bangladesh.
Refugiados relataram às agências humanitárias terem visto monges budistas com uniformes militares ou calças jeans sob seus robes, perpetrando alguns dos atos.
Sobre as acusações de estupro, Wirathu nega: "os corpos delas são nojentos".
"A mídia foca Wirathu e a MaBaTha, mas ambos foram estimulados pelo governo de turno entre 2001 e 2016, que usou o nacionalismo budista como arma política para tentar conter a popularidade de Aung San Suu Kyi [a hoje líder de fato de Mianmar]", diz Mark Farmaner, diretor da Burma Campaing UK.
"A atual onda de violência é mais étnica do que religiosa, mas o Tatmadaw [Exército] usou o sentimento anti-islâmico para angariar apoio de outras etnias na sua campanha de supressão dos rohingyas", afirma o cientista político Thitinan Pongsudhirak, da Univerisdade Chulalongkorn, de Bangkok.
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Monge budista entoa sermões de ódio contra minoria islâmica de Mianmar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU