09 Outubro 2017
Talvez o maior desafio que o Papa Francisco coloca para seus críticos e para todas as pessoas em nosso mundo dividido é que ele não é um ideólogo. Pelo contrário, é radicalmente evangélico. Assim como seu homônimo, o amado santo Francisco de Assis, é um místico envolvido na força dinâmica e vivificante do Evangelho "sine glossa".
A reportagem é de Robert Mickens, publicada por La Croix International, 07-10-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
O Papa Francisco voltou a ser criticado por várias pessoas e grupos que discordam seriamente de seu estilo de liderança, suas opiniões sobre questões cruciais da nossa época e de algumas de suas decisões.
Os críticos mais abertos são os "tradicionalistas da Igreja" ou "católicos ortodoxos". Outros admitem ser "capitalistas de livre mercado" ou "conservadores" políticos.
Mas, de tempos em tempos, o papa também é criticado por pessoas que se identificam como católicos "progressistas", "reformistas" ou "defensores do Vaticano II". E liberais sócio-políticos e alguns adeptos de "paz e justiça" que sempre encontraram razões para criticar a liderança do Vaticano também têm aparecido recentemente.
Na semana passada, Francisco foi bombardeado por todos os lados.
Os defensores das vítimas/sobreviventes de abuso sexual clerical voltaram a persegui-lo, pelo menos indiretamente, por não negociar de forma transparente com um diplomata papal recentemente acusado de acessar pornografia infantil pelo computador.
Eles atingiram o papa através do Secretário de Estado, o cardeal Pietro Parolin, a quem criticaram por não mencionar o caso de pornografia infantil em uma palestra que o cardeal deu em Roma, na terça-feira, em uma conferência internacional sobre... pedofilia na Internet.
Havia também algumas pessoas e defensores da comunidade LGBT que criticaram o papa por continuar em uma linha mais dura a respeito da "cirurgia de confirmação de gênero", ao falar, na quinta-feira, a membros da Pontifícia Academia para a Vida. Eles disseram que a situação mostrava, mais uma vez, que "o pontífice ainda não compreende as questões de identidade de gênero".
Ironicamente, poucos dias antes, grupos "pró-família" da Itália perseguiram de Francisco - novamente, de forma indireta - basicamente por ser enganado pela comunidade LGBT. Direto do baú de "Não há como inventar isso!", surgiu esse título intencionalmente enganoso no Breitbart: "Prefácio do novo livro do papa escrito por ativista da teoria de gênero".
O papa não escreveu um novo livro.
Imparare ad imparare (aprender a aprender) é meramente uma coleção de seus escritos e discursos sobre questões relacionadas à Educação, que foram compilados e editados por Lucio Coco, professor e especialista em textos cristãos antigos (patrística) e espiritualidade. Os textos foram publicados em um livro pela Marcianum Press, fundada pelo cardeal Angelo Scola em 2005 e agora propriedade de uma editora que o papa Paulo VI iniciou em 1927. E a "ativista da teoria de gênero" que escreveu o prefácio é Valeria Fedeli, ministra da Educação da Itália.
Assim, pelo menos, as críticas ao novo "livro" descreveram o papa Francisco como um tolo.
Um dos jornais neoconservadores mais incisivos da Itália, Il Foglio, fez o mesmo. Mas o autor anônimo e malicioso que escreve uma coluna semanal chamada "La Gran Sottana" (a grande batina) foi menos sutil na quinta-feira passada, ao acusar o papa latino-americano (mais uma vez) de ser comunista.
É uma acusação antiga, claro.
Mas surgiu novamente recentemente porque Francisco permitiu que o mais antigo jornal de ideologia marxista da Itália , il manifesto, publicasse um livro (sim, outro) consistindo em três longos discursos seus ao Encontro Mundial de Movimentos Populares.
Claro, essas bombas mais recentes contra o Papa Bergoglio não são nada se comparadas às acusações de certos católicos que realmente acreditam que estão sendo justos e leais - ou seja, que o papa está causando confusão entre os fiéis e até mesmo promovendo heresia.
Primeiro, houve um grupo de 13 cardeais - dos quais alguns chegaram a ter cargos no Vaticano - que advertiram o Papa Francisco, durante uma reunião do Sínodo dos Bispos, sobre a tentativa de encontrar maneiras de ser mais acolhedor a pessoas que não estão seguindo completamente as regras da Igreja em relação ao matrimônio e à sexualidade. Vários deles até escreveram um livro para defender seu ponto de vista.
Depois, apresentaram-nos o espetáculo incomum dos quatro - depois três, e agora apenas dois - "cardeais duvidosos" que, de forma semelhante aos fariseus antes de Jesus, tentaram testar sua fidelidade às normas e nuances da lei eclesial. Esses homens são nomes conhecidos da casa. E foi justamente o âmbito do lar, e o que esses religiosos veem como ideias equivocadas do papa sobre quem pode legitimamente constituir família, que chateou tanto esses cardeais.
E há ainda o grupo de sacerdotes e estudiosos leigos de várias disciplinas que promovem a Missa Tridentina e são simpatizantes da Sociedade de São Pio X (Lefebvrists), um grupo sem status canônico na Igreja Romana. Eles emitiram uma "correção filial" ao papa, acusando-o de promover heresia sobre os mesmos itens que foram sinalizados pelos cardeais da dubia.
O que todos esses grupos não conseguiram compreender, embora o tom e o jeito dos tradicionalistas tenham sido extremamente cáusticos, é que o Papa Francisco está tentando ampliar o diálogo em toda uma variedade de questões, para que se baseie na realidade, e não em ideias, teorias ou ideologias inflexíveis.
Os críticos insistem que estão agindo de boa fé. Eles veem a abertura do papa como uma ameaça ao ensinamento da Igreja de tanto tempo, que é a âncora que lhes dá segurança e o emblema que lhes confere identidade. Portanto, querem conter o foco e a discussão em fórmulas fixas - prescrições que o papa acredita terem se tornado obsoletas, estáticas e até rígidas. E estão desafiando-o usando métodos, como dar uma resposta fechada para questões complexas, que também estão desatualizados e não são mais adequados à época ou situação atual.
Com efeito, os que se identificam como católicos tradicionalistas ou ortodoxos recusam-se a aceitar a realidade de que a Tradição da Igreja é viva e dinâmica, e que continua a crescer e a se desenvolver.
Mas talvez o maior desafio que o Papa Francisco coloca para seus críticos e para todas as pessoas em nosso mundo dividido é que ele não é um ideólogo. Pelo contrário, é radicalmente evangélico. Assim como seu homônimo, o amado santo Francisco de Assis, é um místico envolvido na força dinâmica e vivificante do Evangelho " sine glossa".
E somente através da disciplina diária de contemplação e do discernimento é que ele conseguiu utilizar de forma tão profética e concreta a lente da Boa Nova de Jesus Cristo para interpretar eventos humanos nos níveis individual, comunitário e global.
O papa também representa um desafio para nós, por não ser sectário e partidário. Católico, para ele, significa universal e abrangente. Todas as pessoas são ícones do Deus vivo. Todas as pessoas, no centro de seu ser, são feitas à imagem e semelhança de Deus. Não importa se têm consciência disso ou se dizem crer em Deus.
É por isso que o papa quer envolver todas as pessoas no planeta e deseja ouvi-las, caminhar com elas e tornar-se seu amigo. Para ele, ninguém deve ficar de fora.
E é por isso que não tem medo algum de ser usado por teóricos de gênero ou comunistas, aqueles que os verdadeiros crentes facilmente rechaçam, na escuridão, como inimigos da fé.
Assim como São Paulo, cujos escritos sobre o Cristo cósmico muitas vezes foram incompreendidos ou manipulados, o papa deseja ser omnia omnibus - todas as coisas para todas as pessoas -, para que pelo menos alguns possam ver que a nossa verdadeira natureza encontra-se no Deus infinito e, para a nossa compreensão humana, sem seguir lógica alguma, de enorme (pródiga!) misericórdia.
Como disseram no início do seu pontificado: "Quaisquer que sejam suas posições - liberal, conservador ou em algum lugar intermediário - se você não for desafiado pelo Papa Francisco, você não está ouvindo".
O papa não divide o mundo em bons e maus, pretos e brancos, sagrado e profano. Ele acredita que toda a história humana e todo o cotidiano são sustentados "através de Cristo, com Cristo e em Cristo".
Como deixou implícito no domingo, durante o Angelus , no dia 23 de julho, todos somos um campo de ervas daninhas e de trigo. E assim como Deus é paciente com cada um de nós, somos chamados a ser pacientes uns com os outros - até mesmo com aqueles que pensamos serem terríveis.
Vale a pena repetir as palavras do papa, porque hoje em dia muitos de nós parecem ignorá-las.
"Jesus nos diz que neste mundo o bem e o mal estão tão interligados que é impossível separá-los e erradicar todo o mal. Só Deus pode fazer isso e Ele o fará no Juízo Final", disse ele.
"Jesus... ajudai-nos a entender que o bem e o mal não podem ser identificados comoáreas bem definidas ou grupos humanos específicos: 'Estes são bons, aqueles são os maus' ", continuou o papa.
E sobre essa frase é que devemos parar e refletir profundamente:
"A fronteira entre o bem e o mal passa pelo coração de cada pessoa; passa pelo coração de cada um de nós, ou seja: somos todos pecadores."
Essas palavras são direcionadas a todos nós. Não apenas aos críticos aparentemente justos do Papa Francisco, mas também àqueles de nós tentados a criticar, depreciar ou difamar essas pessoas.
E quando aceitamos verdadeiramente que a linha do mal atravessa todos os corações humanos – inclusive os nossos - talvez possamos começar a viver com as ambiguidades das diferenças na Igreja e no mundo, mas como irmãs e irmãos de uma grande família colorida, e não como inimigos separados em facções sombrias de guerra.
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O papa evangélico e não ideológico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU