Por: Lara Ely | Edição: Ricardo Machado | Tradução: Henrique Denis Lucas | 07 Outubro 2017
Para o professor e médico geneticista argentino Victor Penchaszadeh, as questões relacionadas à saúde são determinadas antes por questões sociais do que genéticas. Seu trabalho de pesquisa que desembocou no chamado “índice de abuelidad”, em 1984, foi pioneiro no uso dos estudos genéticos em favor dos direitos humanos. “Conheci as Avós da Praça de Maio em uma de suas visitas às Nações Unidas para denunciar o rapto e apropriação dos filhos de dissidentes políticos assassinados e desaparecidos. Eu contribuí para formação de um grupo de trabalho de geneticistas e matemáticos, nos Estados Unidos, para desenvolver uma metodologia de identificação dessas crianças”, explica Victor Penchaszadeh em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
“Para estabelecer parentescos, locais específicos do genoma são analisados e comparados com os de possíveis parentes. Se não há nenhuma correspondência, o parentesco é excluído, enquanto que, se houver semelhanças, calcula-se a probabilidade de que as coincidências sejam provenientes da hereditariedade, e não aleatórias”, descreve Penchaszadeh. “A genética deve agradecer às Avós por haver dado a esta disciplina a oportunidade de se redimir de seu passado com uma aplicação a favor dos direitos humanos, assim como é a recuperação da identidade dos netos raptados”, complementa.
Na sua opinião, os principais problemas relacionados à bioética dizem respeito ao agravamento das injustiças e ao crescimento das desigualdades, por exemplo, com o aumento da concentração de renda. Além disso, pontua ele, “critico as biopolíticas que buscam o controle dos corpos e da reprodução humana, interferindo na autonomia reprodutiva, que deve incluir necessariamente o direito de continuar ou interromper as gestações de uma forma que proteja a saúde das mulheres”.
Victor Penchaszadeh | Foto: YouTube
Victor Penchaszadeh é médico especializado em pediatria, saúde pública e bioética. Graduou-se em Medicina pela Universidade de Buenos Aires, fez especialização em Bioethics and Medical Humanities, Columbia University, em Nova Iorque e mestrado em Public Health, School of Higiene and Public Health, Johns Hopkins University, Baltimore, Estados Unidos. É, também, professor do Departamento de Ciências da Saúde da Universidad Nacional de La Matanza. É autor do livro Genética y derechos humanos: encuentros y desencuentros (Buenos Aires: Paidós, 2012).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que o levou à pesquisa genética? Foi o interesse da interface entre a medicina tecnológica e questões Sociais?
Victor Penchaszadeh – Desde meus tempos de estudante de medicina, eu me interessava pelos aspectos biológicos da medicina e sua aplicação na prevenção e cura de doenças. Mas, ao mesmo tempo, desde muito jovem, era consciente de que tanto o fenômeno da saúde quanto o das doenças dependem mais de determinantes sociais do que da biologia individual. Isto determinou uma concepção ideológica que eu mantive a minha vida inteira e que considera a justiça social como o principal objetivo para conseguir efetivamente o direito à saúde. Sempre mantive o duplo interesse entre a pesquisa genética e a militância social em medicina social e o direito à saúde.
IHU On-Line – Em dezembro de 1975, três meses antes do golpe militar na Argentina, você estava em seu consultório, quando seu trabalho foi interrompido por um grupo de homens armados com todas as características da Aliança Anticomunista Argentina (Triplo A), um grupo paramilitar organizado pelo governo, que tentou sequestrá-lo. Por que você foi perseguido e por que motivo se exilou em Caracas?
Victor Penchaszadeh – Eu tinha um histórico de militância estudantil e, já como jovem médico de empresas, também tinha demandas por serviços de saúde acessíveis para a população de baixa renda. Além disso, participei de movimentos de protesto contra os golpes de estado que ocorreram no Chile e no Uruguai, e contra a direitização progressiva do governo argentino. Durante 1975, o governo se direitizou ainda mais e começou a perseguir os ativistas, recorrendo à repressão com sequestros e assassinatos, em uma antecipação do que logo seria feito pela ditadura militar. Após a tentativa de sequestro, exilei-me em Caracas porque meu irmão já havia se exilado lá, assim como alguns de seus colegas e amigos.
IHU On-Line – E como você foi parar nos Estados Unidos?
Victor Penchaszadeh – Na Venezuela tive uma recepção muito boa no Instituto Venezuelano de Pesquisas Científicas e na Universidade Central, e pude desenvolver uma boa carreira durante cinco anos. No entanto, juntamente à minha família, decidimos que poderíamos desenvolver melhor nossas capacidades nos Estados Unidos, e por isso aceitei uma posição como médico geneticista em um hospital de Nova York, associado com a Escola de Medicina Mount Sinai.
IHU On-Line – Foi lá que o seu caminho se cruzou com o das Avós da Praça de Maio, quando elas tentaram provar o vínculo genético com seus netos, tendo seus filhos desaparecidos. Como você contribuiu nesta investigação?
Victor Penchaszadeh – Efetivamente, em Nova York, além de continuar minha carreira como médico geneticista, ocupei-me de denunciar as graves violações dos direitos humanos que estavam ocorrendo na Argentina. Foi assim que eu conheci as Avós da Praça de Maio em uma de suas visitas às Nações Unidas para denunciar o rapto e apropriação dos filhos de dissidentes políticos assassinados e desaparecidos. Eu contribuí para formação de um grupo de trabalho de geneticistas e matemáticos, nos Estados Unidos, para desenvolver uma metodologia de identificação dessas crianças.
IHU On-Line – O que a adaptação do índice de paternidade para o "índice de abuelidad" representou em termos de estudos genéticos e políticos? Do que se trata, exatamente? Como vocês chegaram a este resultado?
Victor Penchaszadeh – Para estabelecer parentescos, locais específicos do genoma são analisados e comparados com os de possíveis parentes. Se não há nenhuma correspondência, o parentesco é excluído, enquanto que, se houver semelhanças, calcula-se a probabilidade de que as coincidências sejam provenientes da hereditariedade, e não aleatórias.
Quando em 1982 as Avós da Praça de Maio exigiram da ciência um método para identificar seus netos raptados pela ditadura, ainda não existiam técnicas de análise direta do DNA, nem informática suficiente para calcular as probabilidades de parentesco, e dependia-se da análise menos precisa de marcadores genéticos, tais como os grupos sanguíneos e a histocompatibilidade. Uma vez que os pais dos netos estavam desaparecidos, a fórmula conhecida de probabilidade da paternidade não era aplicável, de modo que o grupo de trabalho teve de adaptar esta fórmula, considerando que, pelas leis da hereditariedade, a probabilidade de compartilhar perfis genéticos entre avós e netos é menor do que entre pais e filhos. A fórmula que foi alcançada por meio de complexos cálculos matemáticos a puro "lápis e papel" foi chamada de "índice de abuelidad", que estabelece a probabilidade de que supostos avós de uma pessoa em particular sejam efetivamente seus avós biológicos. Este índice foi provado com sucesso, pela primeira vez no mundo, na Argentina, em 1984, identificando o primeiro filho com este índice após a restauração da democracia.
Em termos científicos, foi a primeira vez no mundo que foi possível identificar a filiação genética de uma pessoa ao comparar seus marcadores genéticos com os dos avós, e não com os dos pais. Também foi a primeira vez que a genética serviu a uma causa dos direitos humanos, como é o direito à identidade, o que causou um grande impacto científico.
IHU On-Line – Os dados armazenados no Banco Nacional de Dados Genéticos possibilitaram a recuperação da identidade de 122 netos. O que isso significa em termos políticos?
Victor Penchaszadeh – Em termos políticos, significou derrotar o objetivo dos militares de expropriar os filhos dos dissidentes assassinados e proporcionar provas condenatórias nos julgamentos dos militares, que demonstraram que o rapto de crianças foi um plano sistemático concebido a partir dos mais altos escalões do poder, e dos quais foram condenados à prisão perpétua o ex-ditador Videla e vários de seus oficiais.
IHU On-Line – Que tipo de desconforto o campo da genética lhe causava? O fato de ter sido usada muitas vezes para justificar o racismo lhe incomodava?
Victor Penchaszadeh – Eu era consciente de que a genética tinha sido usada no passado por setores reacionários que detinham o poder político em diversos países para estabelecer políticas racistas de discriminação e estigmatização, além de assassinar setores inteiros da população, que foi submetida à restrição de sua reprodução e ao genocídio, em nome da "eugenia", nos Estados Unidos, ou da "higiene racial", na Alemanha nazista. Certamente que dedicar-se a uma disciplina científica que teve um passado tão vergonhoso não era confortável, e era algo que me fazia relembrar permanentemente os meus princípios de justiça, equidade e aderência aos direitos humanos como um guia ético em minha carreira, tanto como geneticista quanto em outras disciplinas que exerço, tais como a saúde coletiva e a bioética. A genética deve agradecer às Avós por haver dado a esta disciplina a oportunidade de se redimir de seu passado com uma aplicação a favor dos direitos humanos, assim como é a recuperação da identidade dos netos raptados.
IHU On-Line – O que significa para você, como médico, fazer este trabalho de recuperação dos vínculos entre os familiares separados pela ditadura?
Victor Penchaszadeh – É uma satisfação enorme poder fazer o bem, não apenas para as famílias envolvidas, mas para toda a sociedade. De fato, a sociedade argentina foi totalmente agredida pela política genocida da ditadura. O trabalho de recuperação de identidades ajuda a sanar ou mitigar as feridas graves deixadas pela ditadura no tecido social.
IHU On-Line – Como consultor da Organização Mundial da Saúde - OMS e da Unesco, quais são as principais questões contemporâneas no campo da bioética e da biopolítica?
Victor Penchaszadeh – Os principais problemas bioéticos atuais, a nível global, são a persistência e o agravamento das injustiças e desigualdades no mundo, a concentração imoral da riqueza em cada vez menos mãos, a pobreza crescente, a falta de vigência do direito à saúde, a intolerância às diferenças e a violência alimentada por um sistema capitalista voraz, que só está interessado no lucro econômico, a deterioração acelerada da biosfera e a progressiva degradação da democracia, que está caindo nas mãos dos mesmos comerciantes que Jesus Cristo expulsou do templo há dois mil anos, transformando cidadãos em consumidores.
Na área específica da genética, o reducionismo e o determinismo genéticos que pretendem reduzir o ser humano simplesmente aos seus genes continuam exercendo uma influência muito nociva sobre o desenvolvimento desta ciência, em consonância com o respeito aos direitos humanos. Finalmente, critico as biopolíticas que buscam o controle dos corpos e da reprodução humana, interferindo na autonomia reprodutiva, que deve incluir necessariamente o direito de continuar ou interromper as gestações de uma forma que proteja a saúde das mulheres.
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Genética a favor dos direitos humanos e da preservação da vida. Entrevista especial com Victor Penchaszadeh - Instituto Humanitas Unisinos - IHU