04 Outubro 2017
“Não existe uma possível coexistência entre uma ‘forma ordinária da teologia’ e uma ‘forma extraordinária’, que permite que os católicos sustentem pontos de vista que já não são ensinados pela sua Igreja.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por La Croix International, 02-10-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma das chaves hermenêuticas para interpretar o atual pontificado é a maneira como o Papa Francisco está lidando com o legado de Bento XVI.
Especificamente, trata-se de como o papa argentino lidou com a situação sem precedentes de ter que conviver, no Vaticano, com o bispo emérito de Roma, que tem sido chamado mais amplamente – mas inapropriadamente – de “papa emérito”.
Esse novo estado das coisas diz respeito a mais do que apenas ao espaço físico. É, ainda mais, uma questão de convivência teológica.
É como se o catolicismo global tivesse que fazer uma extraordinária transição de um papa europeu para o primeiro papa do mundo novo e não mediterrâneo da história. Parte desse componente são as complicadas relações que Bento e Francisco, respectivamente, têm com as suas terras natais da Europa e da América Latina.
A complexidade dessa transição sem fim tornou-se muito visível novamente quando Francisco emitiu o seu motu proprio Magnum principium sobre as traduções litúrgicas. O documento, de fato, foi publicado enquanto o papa estava fora de Roma em uma visita pastoral à Colômbia.
Essa não é apenas outra página das chamadas “guerras litúrgicas”, que começaram com o Liturgiam authenticam em 2001 (um documento vaticano sobre as regras de tradução) e continuaram com o motu proprio Summorum pontificum de Bento XVI em 2007 (que universalizou o uso da missa pré-Vaticano II). Em vez disso, ela marca um capítulo inteiramente novo, se olharmos para o contexto mais amplo e para dois elementos em particular.
O primeiro elemento é que, na década passada desde o Summorum pontificum, está claro agora que a intenção declarada de Bento com o documento – isto é, criar uma relação pacífica entre as duas formas do Rito Romano – não se materializou. Em vez disso, ocorreu exatamente o oposto.
Também ficou claro que os defensores de uma “reforma da reforma litúrgica” que se seguiu ao Concílio Vaticano II (1962-1965) substituíram o documento conciliar sobre a liturgia (Sacrosanctum concilium) como chave interpretativa da reforma por documentos litúrgicos publicados sob a égide de Joseph Ratzinger/Bento XVI (Liturgiam authenticam e Summorum pontificum).
A reforma litúrgica já não está mais sendo discernida à luz da totalidade do Vaticano II. Os promotores do “Rito Antigo” realmente interpretaram o Summorum pontificum de uma forma que, sem dúvida, é “rupturista” – isto é, está em clara “descontinuidade” com as intenções de Bento, como ele as apresentou em uma carta que acompanhou o motu proprio de 2007.
Não se trata mais da compatibilidade e da coexistência de uma chamada “forma extraordinária” da missa em latim e a sua forma ordinária. Trata-se agora da “forma extraordinária” olhando para o “futuro” da liturgia da Igreja Católica Romana.
O arcebispo Guido Pozzo, secretário da Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei”, afirmou mais ou menos isso durante o último mês de julho, em uma conferência em Roma que celebrava o 10º aniversário do Summorum pontificum.
Os promotores do Rito Antigo acreditam que as formas ordinária e extraordinária, como Bento as descrevia, são, de fato, duas liturgias diferentes e paralelas. Em vez de aceitarem a liturgia pré-Vaticano II como extraordinária, eles acreditam que ela eventualmente se tornará a norma e influenciará as mudanças naquela que atualmente é chamada de forma ordinária.
Claramente, as reformas litúrgicas decorrentes do Concílio Vaticano II não são definitivas e duradouras. Mas quaisquer reformas futuras dependerão da teologia que as sustenta. Existe um deslocamento hermenêutico contínuo na relação entre o Vaticano II e os documentos pós-conciliares sobre a liturgia, assim como na relação entre a forma ordinária e a extraordinária.
Esses deslocamentos estão ligados à recente petição online que busca “corrigir” heresias promovidas pelo Papa Francisco, especialmente na Amoris laetitia.
Não é coincidência que alguns dos proeminentes signatários da “Correção Filial” também são defensores públicos e de destaque do Rito Antigo e do tradicionalismo litúrgico em geral. Eles incluem o bispo Bernard Fellay, chefe da Fraternidade Sacerdotal Pio X (SSPX ou “lefebvrianos”), o autor alemão Martin Mosebach, o historiador italiano Roberto De Mattei e o ex-presidente do banco vaticano, Ettore Gotti Tedeschi.
Esses homens sempre foram críticos ao Vaticano II. Os seus pontos de vista, junto com a tentativa de corrigir o Papa Francisco, também devem ser lidos como rejeição e desaprovação da carta de Bento XVI que acompanhava e explicava a intenção do Summorum pontificum.
Naquele texto, o ex-papa reconhecia que “há o temor de que seja atacada a autoridade do Concílio Vaticano II e que uma das suas decisões essenciais – a reforma litúrgica – seja posta em dúvida”. Bento deixou imediatamente claro que “tal temor é infundado”.
Há dez anos, o Summorum pontificum foi visto como a abertura de uma porta para que os tradicionalistas litúrgicos voltassem à plena comunhão com Roma. Mas é claro que o tiro saiu pela culatra, e o documento produziu o efeito oposto. Como o liturgista italiano Andrea Grillo observou, “em vez de aproximar os lefebvrianos às posições católicas, o Summorum pontificum aproximou setores do mundo católico às posições lefebvrianas”.
Isso lança uma luz não apenas sobre a questão “política” do diálogo entre o Vaticano e a SSPX (a gênese e o futuro papel da Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei”), mas também sobre a questão teológica de que tipo de teologia é expressada pelo tradicionalismo litúrgico católico hoje.
Como historiador do Vaticano II, estou pronto para reconhecer que os textos do Concílio não tinham um foco específico na teologia e na beleza. Exceto na sua Mensagem Final dirigida aos artistas, há apenas alguns poucos casos em que o Concílio disse algo oficial sobre a beleza.
Como o teólogo jesuíta Gerald O’Collins notou há alguns anos, as únicas referências estão no documento litúrgico, Sacrosanctum concilium (par. 22) e no texto sobre a Igreja no mundo moderno, Gaudium et spes (par. 57 e 76).
Os tradicionalistas usaram a questão da beleza e da liturgia no catolicismo contemporâneo para atacar diretamente desdobramentos teológicos chave do Vaticano II. Não devemos nos surpreender em algum ponto no futuro se um grupo de “Old Rite kids” [crianças do Rito Antigo] passasse a vagar por uma espécie de deserto teológico, levando-os a pensar que “Pio IX estava certo no caso Mortara”...
Vocês se lembrarão que Edgardo Mortara foi um menino judeu em Bolonha, que recebeu um “batismo de emergência” por um servo familiar durante uma doença. O menino foi tirado da sua família e criado como católico sob a proteção de Pio IX, que recusou os pedidos desesperados dos seus pais pelo seu retorno. Mortara até se tornou padre, no fim. A sua história é até o tema do próximo filme de Steven Spielberg.
É hora de encarar o problema real aqui. Não é a forma bela do Rito Antigo, o uso da língua latina ou do canto gregoriano.
O problema é a visão teológica transmitida por alguns dos promotores mais ativos da Missa Antiga – pontos de vista teológicos que não são os mesmos da Igreja Católica na era entre o Vaticano II e Bento XVI.
Voltemos ao caso Mortara. O ensino oficial da Igreja sobre o judaísmo e as relações entre católicos e judeus é a do Concílio Vaticano II e a de todos os papas do período pós-Vaticano II. Não é o ensino de Pio IX.
Não existe uma possível coexistência entre uma “forma ordinária da teologia” (neste caso, uma teologia católica do judaísmo moldada especialmente entre a declaração conciliar Nostra aetate e São João Paulo II) e uma “forma extraordinária”, que permite que os católicos sustentem pontos de vista que já não são ensinados pela sua Igreja.
Esse é o ponto do debate hoje sobre a liturgia na Igreja Católica Romana.
As crianças podem ser “Old Rite”, mas a sua busca desesperada pela beleza litúrgica pode trazer de volta algumas coisas realmente feias.
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A ''correção filial'' e as questões litúrgicas. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU