Por: João Vitor Santos | Edição: Vitor Necchi | 30 Setembro 2017
Pernambuco tem um papel peculiar na construção de um projeto de nação para o Brasil. “O sertão do semiárido e os sertões em geral, com os seus pioneiros, seus fazendeiros, vaqueiros, almocreves e desbravadores, foram a sementeira de um Brasil menos europeu, menos lusitano, menos atlântico e, especialmente, menos litorâneo”, afirma o professor Antônio Jorge Siqueira.
O destaque da província de Pernambuco nas narrativas da expansão e ocupação do espaço interiorano decorre também do fato de que o “sertanejo se caracterizou por ser aberto e tolerante com a miscigenação de raças, contribuindo decisivamente para a formação da identidade e da especificidade do Brasil como nação plurirracial”, explica Siqueira em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
E a Revolução Pernambucana, por sua vez, ocorrida no século 19, “contribuiria no campo das lutas políticas e das ideias com propostas seminais para a semeadura de um Brasil independente, republicano e tolerante”. Ao contrário do que muitos apontam, essa insurreição não tinha um caráter separatista. “Pernambuco sonhava com o Brasil pátria e o Brasil nação, independentes”, destaca Siqueira. “Agora, 200 anos após, temos que ‘nacionalizar’ a revolução republicana de 1817. Pensá-la como um fato histórico emblemático para o Brasil como nação e não apenas para Pernambuco e os seus sertões. Nesse sentido, é urgente ‘despernambucanizar’ a Revolução de 1817”, defende.
Antônio de Siqueira | Foto: Jornal de Caruaru
Antônio Jorge de Siqueira é graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Viamão - RS e em Teologia pela Université Catholique de Fribourg, mestre em Sciences Economiques et Sociales – Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Leciona na Universidade Federal de Pernambuco. Publicou, entre outras obras, os livros Palavra, silêncio e escuta (Recife: Editora UFPE, 2007); Os padres e a teologia da ilustração: Pernambuco – 1817 (Recife: Editora UFPE, 2009); Sertão sem fronteiras: memórias de uma família sertaneja (Recife: Editora UFPE, 2010); e Labirintos da modernidade: memória, narrativa e sociabilidades (Recife: Editora UFPE, 2014).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A identidade sertaneja pode ser considerada um ingrediente importante para a revolta das capitanias do Norte e do Nordeste no período colonial, especialmente na Revolução Pernambucana de 1817?
Antônio Jorge de Siqueira – Eu pessoalmente não faço uma distinção entre a identidade do sertanejo pernambucano e a dos demais sertanejos dos estados no perímetro do semiárido nordestino: Bahia, Paraíba, Piauí, Alagoas, Ceará... Vejo mais o que há de comum entre eles do que mesmo eventuais diferenças ligadas ao sotaque da fala, ao preparo da alimentação e o manejo da agricultura etc.
Apontadas essas pequenas diferenças, sim, há uma comum mundividência do sertanejo nordestino do semiárido. Os traços comuns dessa cultura sertaneja no Nordeste provêm de fatores históricos, sociais e econômicos ligados à ocupação do espaço, à sua convivência com a natureza, às relações sociais advenientes da estrutura econômica de produção, da sobrevivência física, de suas relações sociais e do poder político. De tal modo que, de maneira geral, o sertanejo pernambucano tem mais afinidades do que mesmo diferenças com relação aos demais.
Óbvio, do ponto de vista histórico, a província de Pernambuco tem um destaque especial nas narrativas da expansão e ocupação do espaço interiorano. Ao lado da Bahia, Pernambuco foi uma das maiores províncias do Nordeste em extensão territorial, em antiguidade e importância do ponto de vista administrativo e econômico, especialmente no período colonial. Como narra Capistrano de Abreu, o espaço provincial pernambucano foi um dos caminhos de consolidação do perímetro ocupado para a conquista dos sertões inóspitos do interior nordestino, ao lado daquele do rio São Francisco que, partindo da Bahia, chegava até ao Piauí e ao Maranhão. Eram as históricas rotas dos caminhos do gado e da comercialização em geral.
Dito isso, é importante enfatizar, tal como historiadores como João Reis o fazem, que o sertão do semiárido e os sertões em geral, com os seus pioneiros, seus fazendeiros, vaqueiros, almocreves e desbravadores, foram a sementeira de um Brasil menos europeu, menos lusitano, menos atlântico e, especialmente, menos litorâneo. Eu diria mesmo, um Brasil mais autóctone, mais mestiço, que fugiu da dicotomia branca versus negra, da matriz colonizadora para uma ocupação pioneira. Foge, pois, da colonização em sua intrínseca relação de dependência com a africanidade, como se verifica na faixa litorânea.
E digo isso com o maior respeito pela contribuição dos afrodescendentes para a constituição da identidade daquilo que fez e faz o Brasil ser Brasil. Apenas me refiro a essa importância da mundividência-sertão, com a sua integração e inclusão étnico-racial, extrapolando aqui a especificidade de Pernambuco. Principalmente para ressaltar que o sertão tem na sua gênese e historicidade a coragem, a intrepidez e a bravura dos seus parcos habitantes de vencer os desafios da natureza inóspita, do isolamento, das distâncias, das agruras e adversidades – inclusive do próprio clima –, no caso do semiárido.
Desde o início do povoamento do interior do país que o sertanejo se caracterizou por ser aberto e tolerante com a miscigenação de raças, contribuindo decisivamente para a formação da identidade e da especificidade do Brasil como nação plurirracial. Do mesmo modo que a Revolução de 1817, no século 19, contribuiria no campo das lutas políticas e das ideias com propostas seminais para a semeadura de um Brasil independente, republicano e tolerante.
O sertão do semiárido, seja ele pernambucano, paraibano ou sergipano, contribuiu para o Brasil ser Brasil de maneira distinta de como a Revolução de 1817 concorreu com o seu protagonismo de lutas para o Brasil ser um país livre e independente. É preciso que se diga, entretanto, que Pernambuco, sem demérito da história de resistência das demais províncias da região Nordeste, tem uma trajetória rica na sua memória de lutas e na preservação do seu espaço – caso da expulsão dos holandeses –, na busca dos sonhos republicanos, com Bernardo Vieira de Melo e a Revolução de 1817, bem como na defesa do constitucionalismo e da autonomia das suas províncias, com Frei Caneca, entre tantos. Lutas essas que se teceram numa união de forças com outras províncias do Nordeste. Especialmente no caso da Revolução de 1817 e da Confederação do Equador, poucos anos depois. Sinal de que não foram lutas nem ideais separatistas, como muitos enxergaram. A nova república de 1817 tinha no seu emblema maior – a sua bandeira – a cruz, o arco-íris e três estrelas. Exatamente a configuração de uma confederação composta das três províncias: Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.
Como se sabe, os líderes revolucionários de 1817 pretendiam engajar as províncias nordestinas na luta pela emancipação nacional e não se fixar em uma rebelião local ou apenas regional. Conseguiram o apoio da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Enviaram emissários para os sertões da Paraíba, do Ceará, para a comarca das Alagoas e para a Bahia. Prova inconteste de sua liderança política regional e dos seus sonhos e protagonismo para um Brasil república a partir da região Nordeste.
Mas isso tudo não se fez ao acaso e nem do dia para a noite. Como disse, a província já era detentora de uma história de irredentismo político. Neste sentido, as insurreições pernambucanas soam como comprovação histórica de que fomos independentes, solidários e autóctones quando nos Guararapes expulsamos os holandeses, no século 17. Sem a ajuda da metrópole, contando com ajuda dos nativos.
Antecipadores da autonomia do Brasil quando ocupamos o espaço inóspito dos sertões do país a dentro, séculos 17-18, e quando, em 1817 e 1824, ousamos plantar a semente de um Brasil republicano e constitucionalista, com o martírio de mais de uma dezena de líderes protagonistas.
Em 1817, mais precisamente, Pernambuco sonhava com o Brasil pátria e o Brasil nação, independentes. Pagou caro por sua rebeldia e protagonismo. Fatiaram a porção física e geográfica do seu território, oferecendo-as aos aproveitadores áulicos de plantão. Por isso mesmo acho que, agora, 200 anos após, temos que “nacionalizar” a revolução republicana de 1817. Pensá-la como um fato histórico emblemático para o Brasil como nação e não apenas para Pernambuco e os seus sertões. Nesse sentido, é urgente “despernambucanizar” a Revolução de 1817.
IHU On-Line – No contexto da Revolução de 1817, Pernambuco reivindicava um protagonismo na política e na sociedade imperial. Hoje, o estado tem relevância na cena política nacional?
Antônio Jorge de Siqueira – Durante o período do primeiro e segundo Impérios, no Brasil, o Parlamento tinha duas bancadas da região Nordeste muito atuantes: a de Pernambuco e da Bahia. No regime bipartidário, a representação de Pernambuco se fez sempre presente com muita força e visibilidade na cena parlamentar, que ia dos conservadores aos liberais. Não é por acaso que, já neste período, a alcunha de Pernambuco era a de “Leão do Norte”.
É o caso de citar o nome de figuras lendárias na história parlamentar do Império, tais como Nabuco de Araújo, pai de Joaquim Nabuco, que, ao lado de João Alfredo, se destacaram como abolicionistas convictos. E tudo isso num país que não tinha a menor vergonha de continuar sendo escravocrata, sacramentando práticas patrimonialistas e tomando de assalto o Estado através de práticas corruptas, conservadoras e elitistas.
Pernambuco fazia reverberar no Parlamento as dores das desigualdades sociais e regionais que viriam a se manifestar em uma outra de suas revoltas históricas, no período, levadas a cabo pela representação liberal da província, a Revolta da Praieira (1848-1850). O Parlamento se negou a empossar um senador representante de Pernambuco, Chichorro da Gama.
Eu diria que, em Pernambuco, a política sempre esteve muito presente na vida dos seus habitantes, exatamente como consequência do papel primordial da liderança regional e da força de sua cultura nos períodos colonial e imperial. Um estado muito bem servido por uma imprensa, que não pode ser vista apenas como conservadora. Uma política cuja força reside na diversidade de suas demandas, conjugando o conservadorismo de suas elites interioranas e coronelistas com o da açucarocracia. Mesclando a demanda das desigualdades com a luta contra os privilégios das elites. A prova dessa politização de Pernambuco está na força histórica do seu voto e da sua representação plural no estado, e fora do estado, no Congresso Nacional.
Um político pernambucano famoso – Agamenon Magalhães –, ainda na época do Estado Novo, afirmava ser o Recife uma “cidade cruel”, exatamente pela força e pela simbologia de luta e resistência do seu eleitorado através do voto. Lembrar os nomes de políticos prestigiosos do estado como Agamenon Magalhães, Pelópidas Silveira, Josué de Castro, Cid Sampaio, Miguel Arraes, Marco Maciel, Jarbas Vasconcelos, Fernando Lyra, Marcos Freire e Eduardo Campos não é dizer tudo da relevância de sua representação no cenário local e nacional. Afinal, o Brasil continua com suas desigualdades regionais que se reproduzem na representação do parlamento, ao lado da representação dos demais estados das outras regiões do país. Mas, no foco da pergunta, bastaria citar um nome como o de Miguel Arraes de Alencar que, ao lado de Leonel Brizola e Ulysses Guimarães, bastariam para dignificar a atuação e o legado político da representação de qualquer estado da federação. Sem falar de Lula, pernambucano, carismático, mas cuja carreira política se gesta no movimento sindical do Sudeste.
O eleitor pernambucano é muito exigente. E, igual a muitos outros estados da federação, pratica também uma política muito próxima das vertentes coronelistas, que, aqui, se reciclam com muita frequência e desfaçatez política. Afinal, o Brasil é um país patrimonialista contra o que já se lutava em 1817...
IHU On-Line – A busca por uma identidade nacional pode ser considerada a gênese da Revolução Pernambucana? Por quê?
Antônio Jorge de Siqueira – Esta é uma pergunta que leva ao cerne de um dos significados e legados mais importantes da Revolução de 1817. Afinal, o Brasil como nação não existia no momento da eclosão da rebelião, aos 6 de março, na vila-cidade do Recife. Era apenas uma colônia, sede da monarquia portuguesa, que fugira às pressas para o Rio de Janeiro. A Coroa lusitana mantinha todas as pretensões de continuar dominando a porção mais preciosa do seu domínio absolutista na América, o Brasil, com seu vasto território e sua comunidade linguística. O sonho de um novo império luso-americano? Lisboa agora estava no Rio de Janeiro, e o Rio de Janeiro se travestia de Lisboa. Um domínio monárquico, absolutista, centralizador e absolutamente avesso aos princípios emanados do iluminismo, da Revolução Francesa e dos sonhos libertários da América espanhola.
O Brasil não era nada, além de consumidor de mercadorias provenientes da Europa e um mero fornecedor de metais preciosos e exportador de bens provenientes da sua agricultura. As províncias do Brasil pagavam as contas de uma corte que mantinha sob rígido controle o poder absolutista e centralizador das vaidades dos áulicos e dos cortesãos reinóis. A cobrança abusiva de impostos onerava os cofres das províncias. Algumas mais sacrificadas que outras, caso de Pernambuco, que pagava até despesas para iluminação da cidade do Rio de Janeiro, sede do reino, época em que a cidade-vila do Recife sequer tinha iluminação em suas ruas.
A Revolução de 1817 irrompe nesta cena política como uma proposta descolonizadora. Teríamos que trilhar os caminhos que nos libertassem do jugo e das amarras da colonização. Por isso mesmo, pode-se afirmar sem nenhuma pretensão bairrista que, aí, nesse momento e nessa sublevação, nasce o Brasil como nação, como pátria, como república, como Estado autônomo e confederado. O que, aliás, eram ideias e ideais caros ao momento histórico que se vivia. Especialmente plasmados no palco das Américas, mormente nos Estados Unidos. Claro, na política nada surge do nada, nem irrompe de um momento para outro. Por isso mesmo uso aqui a expressão “nasce”, o que pressupõe a semeadura de uma semente, num terreno fértil e com as condições de germinar como planta. Ou como projeto. Em 1817, o Brasil nasce como sonho, como desejo, como luta, como promessa. Algo que talvez se tenha vislumbrado na Revolta dos Alfaiates, na Bahia, e na Inconfidência das Minas Gerais.
Em 1817, no panfleto Preciso e nos demais documentos que foram divulgados nas hostes revolucionárias de Pernambuco e outras capitanias do Nordeste, o Brasil como projeto de país, de república, de pátria e de sociedade de direitos, livre e tolerante, se apresentava pela primeira vez no Brasil como proposta coerente, robusta e bem fundamentada juridicamente.
1817, diria Oliveira Lima, rompendo com o silêncio preconceituoso e mal-intencionado de Francisco Adolfo Varnhagen, patrono da historiografia cortesã do Rio de Janeiro, foi “a única revolução brasileira digna deste nome. A mais espontânea, a menos desorganizada e a mais simpática de nossas numerosas revoluções”.
Os Autos de Devassa lavrados no momento da repressão brutal que se abateu sobre as lideranças da rebelião pernambucana não escondem em suas entrelinhas os propósitos absolutamente antecipadores de um projeto generoso de república para o Brasil, que despontava nas entranhas das lutas descolonizadoras de então. Sob a inspiração das elites letradas de Pernambuco, onde sobressai um clero ilustrado que foi educado no Seminário de Olinda, propunha-se uma sociedade patriótica, livre e independente das cadeias do absolutismo reinol de Portugal. Uma república despojada de privilégios e honrarias próprias dos reis e do regime absolutista. Uma sociedade constitucionalista e tolerante quanto às práticas religiosas. Uma sociedade que nascia já condenando o escravismo, coisa inédita na história de um país como o Brasil, que cultivou e foi conivente com a escravidão por três séculos.
Aí, na gênese de 1817, nasceu o Brasil que sobreviveria por escassos dias e meses, terminando por soçobrar na desigual correlação de forças do centralismo reinol de Dom João VI e na descomunal carnificina da vingança da realeza absolutista. Vale citar, ainda uma vez, a opinião insuspeita de Oliveira Lima sobre a Revolução de 6 de março de 1817: “Instrutiva pelas correntes de opinião, que no seu alcance se desenharam, atraente pelas peripécias, simpática pelos caracteres, e tocante pelo desenlace”.
IHU On-Line – Qual a importância de se constituir um projeto de nação a partir do fortalecimento das identidades regionais?
Antônio Jorge de Siqueira – O Rio de Janeiro sediava a Corte do Império de Dom João VI, o que representava um ônus para as diversas províncias da colônia. Afinal, todo o aparato de uma realeza migrou de Portugal para o Brasil. O centro político e administrativo da colônia passou a ser exercitado no Sudeste, em torno do qual as demais regiões da colônia orbitavam. O Sudeste, entenda-se, o Rio de Janeiro, passa a ser o centro dinâmico, politicamente falando, de gestação de um poder centralizador. As províncias das outras regiões, do Sul, do Norte e do Centro do Brasil – naquele tempo não se falava do Nordeste, por exemplo! – eram periféricas com relação ao Sudeste. Em razão da realeza, do absolutismo e do centralismo político, uma só região pautava os procedimentos econômicos, religiosos, militares e administrativos para serem obedecidos pelas demais.
No caso do Nordeste, a região de há muito perdera a importância e o dinamismo de sua economia para a mineração e para o açúcar e o café do Sudeste. Já havia uma corrosão da economia pernambucana e nordestina, na natureza da sua produção canavieira e algodoeira. A aristocracia canavieira pernambucana vivia as suas dificuldades há muito tempo. Sem falar nas secas que assolavam grande parte do território dos sertões dessas províncias do Nordeste. O ano de 1816 foi época de uma seca avassaladora para a economia de Pernambuco. E pesava sobre a elite econômica da província o volume excessivo de impostos – François Tollenare aponta nada menos que 18 impostos –, aumentando o descontentamento e a insatisfação dos habitantes da província. O forte mesmo da economia pernambucana era o seu comércio portuário, com a importação e exportação e a prestação de serviços. A insatisfação com o centralismo da Corte, no Sudeste, aumentava ano a ano. E Pernambuco foi uma das poucas províncias que contou com uma elite letrada que havia frequentado os bancos do Seminário de Olinda, onde se lia Voltaire, Condorcet, Mably e Rousseau.
Tudo isso nos leva à percepção de que as possibilidades de se rebelar contra o centralismo do poder da Coroa estariam muito mais ao alcance da periferia do que mesmo do centro regional do poder absolutista e colonizador do Rio de Janeiro. Os líderes revolucionários pernambucanos logo perceberam que não seria impossível uma resistência confederada de províncias, começando pelo Nordeste, como de fato se iniciou. A adesão da Bahia seria fundamental para o êxito dessa expansão rebelde e revolucionária. E não faltaram argumentos de ordem religiosa, econômica, política e ideológica. Basta compulsar a documentação que dá conta dos informes, das cartas e das declarações dos chefes do governo provisório da iminente república de 1817. Interessante observar como esse mesmo protagonismo político das regiões periféricas, ainda mesmo no período colonial, em 1817, volta a se redefinir poucos anos após, no Brasil Império, em 1824, também em Pernambuco, nos meandros da Confederação do Equador. Delineava-se, assim, o que hoje denominamos na sociologia política como “questão regional”, uma verdadeira batalha pela hegemonia do Estado-Nação. Mas que, naqueles idos de 1817, se configurava ainda como uma luta descolonizadora, que trazia no seu bojo as dores do parto da identidade nacional.
IHU On-Line – Como o ingrediente religioso incide sobre a cultura e a sociedade pernambucanas? De que forma essa relação entre religião e sociedade se estabelece no período colonial?
Antônio Jorge de Siqueira – Começaria respondendo pela segunda questão, que trata da relação entre religião e sociedade na colônia e, em seguida, tentaria perceber como o aspecto religioso teve sua incidência na cultura e sociedade pernambucanas.
A colonização portuguesa tem uma relação muito particular e específica com a religião católica. A primeira característica é que o catolicismo praticado em Portugal tem um caráter de cristandade, no sentido que ele abarca por completo as apreensões do mundo profano e as dimensões da vida afetiva e espiritual de cada pessoa. Portanto, nada escapa aos quadrantes da religiosidade cristã.
Em segundo lugar, muito ligado ao poder temporal dos reis, a religião passa a ser um departamento que está na órbita e nas malhas dos cuidados do Estado, no caso português, da Coroa. É o regime denominado de Padroado pelo qual o Estado se encarrega de garantir a propagação da fé, nomeando bispos, criando dioceses, freguesias e paróquias, mantendo o culto, a construção e ornamento das igrejas, além de recolher o dízimo e empreender o pagamento do trabalho dos ministros da igreja, as côngruas. Desse modo, no sistema do Padroado, cada bispo e cada vigário passam a ser um funcionário da Coroa portuguesa.
Em terceiro lugar, algo muito especial e que nos toca enquanto país que foi longamente colônia lusa. Trata-se do fato que a colonização ibérica – Espanha e Portugal – é historicamente associada aos descobrimentos que, por sua vez, foram uma missão cristianizadora na medida em que os descobrimentos estiveram associados à dilatação da fé cristã. Ser colônia de Portugal, portanto, era sinal de redução de “infiéis” à fé católica. Por exemplo, os índios eram infiéis e, como tais, careciam de ser batizados. Ser colono em domínios lusos equivalia a ser um soldado a serviço do rei, na sua missão cristianizadora.
Ora, isso terá muita importância, no momento das lutas pela descolonização – caso da luta de 1817 – porque equivalia, em última análise, a romper com uma lógica de cristandade. E essa ruptura, visando à autonomia-independência do espaço colonizado, descolando-se do monarca, implicava recompor aquele espaço da fé cristã, agora sem a cosmovisão de cristandade. Sendo cidadão da república, sem ser súdito do rei, equivalia a praticar a fé cristã, agora no foro das subjetividades, enquanto sujeito e pessoa. Uma verdadeira revolução de que os padres de Pernambuco lançariam mão para cimentar junto à população iletrada as vantagens e os benefícios da sublevação contra um soberano que, então, era declarado impostor e, de modo algum, mediador da fé cristã e católica. Então, descolonizar era ir de encontro ao poder político absolutista, era se opor e se descolar do príncipe. Mas era, também, romper com a estrutura legitimadora do poder monárquico que se fazia valer da instrumentalização da cristandade para se dizer legítimo, porque ungido da missão de propagar a fé, de fazer os infiéis fiéis ao príncipe e a Deus. Aí está, de modo sucinto, a relação social e política que vislumbro entre a religião católica e a sociedade, no período do Brasil colônia.
Passo agora ao primeiro item da pergunta. A Revolução de 1817 recebeu a alcunha de “revolução dos padres”. E acho correta esta percepção de Oliveira Lima, a quem recorro novamente. Efetivamente, mais de 70 padres – entre religiosos e seculares – estiveram envolvidos no movimento revolucionário. O que é significativo em se tratando de um clero envolvido nas malhas do sistema do padroado, no qual os padres são funcionários públicos e, como tais, servem a Deus e ao príncipe. A Diocese de Olinda, em Pernambuco, era de uma enorme extensão geográfica que se estendia dos limites com Minas Gerais, seguindo o São Francisco, até as fronteiras com o Maranhão. No início do século 19, a situação era diferente porque houve desmembramentos da diocese com outras províncias, entre elas, o Piauí.
Como explicar de modo sucinto o envolvimento de tantos padres numa insurreição contra a realeza joanina, em 1817? Padres e bispos envolvidos com a política não era novidade para a época, na medida em que os clérigos eram ministros da religião e da coroa. Mas aqui não se trata de fidelidades e, sim, de inconfidências, de ruptura com a ordem e de envolvimento na luta armada. Muitos padres foram exímios chefes de guerrilha, como é o caso de Frei Caneca. O que justifica tal ordem de compromisso com as lutas contra o absolutismo português? Responder a isto aponta necessariamente para a formação intelectual do clero e a educação de qualidade que lhes foi ministrada para os padrões da época, em Pernambuco, no Seminário de Olinda.
Este seminário foi fundado nos anos finais do século 18 pelo bispo dom José de Azeredo Coutinho. Significa dizer que, naqueles anos iniciais do século 19, Pernambuco era realmente uma honrosa exceção em termos de educação de qualidade. Logo em educação, que foi um grande vazio, um verdadeiro desleixo da herança colonial portuguesa em sua empreitada colonizadora no Brasil.
Esta questão foi trabalhada por mim em minha tese de doutorado, que viria a ser publicada sob o título Os padres e a teologia da ilustração, Pernambuco 1817. Méritos do bispo Coutinho, que fundou o Seminário de Olinda em 1790 e trouxe para cá a vertente ilustrada da reforma dos estudos empreendida na metrópole por Pombal, no reinado de dom José I.
Não por acaso, o bispo Coutinho era muito próximo de outro bispo português, dom Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, que foi o grande incentivador e patrocinador na área dos estudos humanísticos dessa reforma pombalina dos estudos. Pessoa muito ligada ao bispo Cenáculo, Coutinho, ao ser nomeado bispo de Olinda, não teve dúvidas em implantar em escolas de Pernambuco um currículo cuja têmpera se forjara nos ventos amenos da ilustração portuguesa patrocinada pelos reformadores “estrangeirados”, entre os quis se perfila Luís Antônio Verney. Funda um seminário que garantiria formação atualizada dos futuros padres e também a educação dos jovens provenientes da elite, ou mesmo oriundos da pobreza material na província. Também funda um liceu para formação de moças, ao lado do seminário, nos mesmos moldes curriculares da reforma pombalina.
Pombal, sabemos, reforma os estudos para tornar a Universidade de Coimbra menos jesuítica e mais antenada com os ares do iluminismo da época. Essa reforma propugna uma formação pedagógica nova, voltada para o pragmatismo na vida, no comércio, na agricultura, na indústria. Do ponto de vista teológico, empreende uma redescoberta e valorização da natureza, em que Deus se manifesta no mundo com as maravilhas de sua criação. Além de uma prevalência dos conhecimentos da história que daria ensejo de compreender melhor o passado na construção do presente e do futuro da colônia, que vivia uma grande crise. Adota uma valorização das línguas estrangeiras, facilitando melhorar a comunicação com o mundo, em que se projetam novas ideias, novas filosofias, novas relações internacionais. Um realce especial para os estudos das ciências da natureza e das matemáticas, bem como a valorização da oratória persuasiva. Sinal dos tempos e de que o argumento de autoridade cedia lugar às evidências oriundas da ciência e das artes.
O currículo do Seminário de Olinda segue esse diapasão e fala por si só. Os professores são treinados na nova pedagogia e formados na nova orientação da Universidade de Coimbra. É assim que aquele seminário se tornaria para a história uma “escola de heróis”. Semelhante investimento na educação – ainda mais naqueles dias – daria ensejo a que produzissem efeitos no longo e médio prazos. Foi o que aconteceu com o envolvimento do clero na Revolução de 1817. Só que a província de Pernambuco já vinha investindo em educação de qualidade com a presença dos padres oratorianos na vila de Recife, substituindo os educadores de extração jesuíta. O Seminário de Olinda dá sequência, portanto, aos manigrepos do Oratório e da Madre de Deus.
Daí ser mais do que evidente que a revolta do dia 6 de março, que irrompe nas ruas e nos quartéis do Recife, não foi obra do acaso. Insuspeitas testemunhas e vários contemporâneos da insurreição, como François Tollenare, Henri Koster e o próprio revolucionário padre Muniz Tavares, são unânimes em descrever com muita clareza as qualidades intelectuais de grande parcela do clero pernambucano, em nada devendo para os seus pares europeus, como é o caso de padre João Ribeiro Pessoa, de Frei Caneca, de padre Miguelinho e do vigário Tenório, de Itamaracá. Todos mártires da repressão implacável de Dom João VI.
A vila-cidade do Recife possuía algo inimaginável naqueles tempos da colônia, bibliotecas com obras atualizadas em ciências e filosofia. E bibliotecas abertas ao público, caso daquela patrocinada pelo próprio padre João Ribeiro, no hospício da cidade. Sabe-se que os livros, na colônia, quando existiam, eram privilégio das prateleiras dos monastérios e das sacristias dos monges. Portugal simplesmente se recusava a investir em educação, no Brasil, do mesmo modo que nunca patrocinou o incremento da indústria, até mesmo de tecidos para a população se vestir. No Recife da época, as ideias circulavam nas sociabilidades da elite, seja nos banquetes patrocinados pela Maçonaria, seja nas tertúlias de final de semana, entre comerciantes, como Cruz Cabugá, e padres, como João Ribeiro. O próprio presidente da Província, Caetano Pinto Montenegro, foi alertado nas vésperas da insurreição de que algo de suspeito era ventilado nas sociabilidades da elite, o que ele menosprezou, bem o sabemos.
Os padres e os militares se puseram à frente do movimento revolucionário. No que tange aos padres, na sua missão religiosa, caberia legitimar em termos doutrinários os acontecimentos e alcance político da rebeldia política contra o rei. A população não dispunha de jornais, nem outros meios de divulgação e comunicação. Caberia então aos vigários chegar junto desse contingente de pessoas, fazendo com que se assumissem não mais como súditos, e, sim, como cidadãos, patriotas, livres e desimpedidos da obediência ao príncipe. Daí que os documentos dos Autos da Devassa, as proclamações, os editais e as cartas pastorais do bispado têm uma importância estratégica para entendimento da natureza descolonizadora da sublevação e, enquanto tais, necessitam ainda ser melhor estudadas. De qualquer modo, fica claro para mim que a insurreição pernambucana foi um fato eminentemente político, sem sombra de dúvida. Entretanto, sua natureza e relevância passam também pelos arcanos das sacristias e a eloquência dos púlpitos.
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A necessária 'nacionalização' da Revolução Pernambucana, semeadura de um Brasil independente, republicano e tolerante. Entrevista especial com Antônio Jorge de Siqueira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU