28 Setembro 2017
“A Correctio filialis deve ser considerada fruto de desorientação e de fantasia, sem qualquer efeito no plano da doutrina. É um ótimo documento que atesta a ‘nostalgia’ em relação a uma Igreja e a um mundo que não só não existem mais, mas que também nunca existiram.”
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 26-09-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No seu último livro póstumo – Retrotopia – Zygmunt Bauman cita uma bela definição de nostalgia, formulada por uma professora de Harvard:
“A nostalgia é um sentimento de perda e desorientação, mas é também uma história de amor com a própria fantasia.”
Bauman constrói todo o seu livro inteiro com base nessa “força nostálgica” do nosso tempo. Esse me parece ser um bom critério para entender também aquele documento, chamado Correctio filialis, com o qual 40 católicos, com o acréscimo de outros 22 signatários, pretenderam identificar sete heresias no texto da exortação apostólica Amoris laetitia, pedindo que o papa “corrija a si mesmo” e “volte para a reta via”.
Não quero abordar aqui todas as questões de oportunidade e de decoro de tal texto. Concentro-me, em vez disso, no seu conteúdo e nas “incorreções formais” que, de um ponto de vista puramente objetivo, manifestam as sete proposições que pretendem identificar os “erros papais”.
A nostalgia, de fato, joga muito mal contra aqueles que são suas vítimas: não só lhes impede de entender o presente, mas também as força a deformar o passado. Como diz a bela citação, ela é fruto de uma desorientação no presente e de uma fantasia do passado. Vejamos por quê.
A Igreja, na sua longa história, elaborou com fineza uma “expressão magisterial” que tomou a forma, desde o Concílio de Niceia, do “cânone de condenação”. Com ele, uma “proposição”, identificada como errônea, é formalmente condenada e tornada incompatível com a comunhão eclesial.
Obviamente, a proposição não é estabelecida por um “grupo de leigos” e de acordo com critérios rigorosos: ela deve corresponder efetivamente a posições existentes historicamente e deve estar correlacionada com uma posição adquirida e compreendida pelo magistério em vigor. Na proposição, só é condenado aquilo que ela efetivamente diz e do modo como diz, nada mais. Por isso, na história, o “cânone de condenação” também desempenhou uma função de “garantismo” em relação aos direitos dos sujeitos abstratamente condenáveis por heresia.
Mas, ao lado dessa antiga tradição, também é preciso reconhecer que ela, por explícita decisão dos dois últimos Concílios Ecumênicos (Vaticano I e Vaticano II), conheceu uma progressiva superação.
A partir da segunda metade do século XIX, percebeu-se que a função dos “cânones de condenação” não respondia mais às exigências do magistério e que era preciso fazer prevalecer a “reformulação dos usos”, em vez da “condenação dos abusos”.
A proposta de compor uma infindável lista de “Propostas condenadas” ao Vaticano I e a resistência a condenar também uma única proposição no Vaticano II são o testemunho de uma tendência que, embora sem desaparecer – basta lembrar a reação católica ao modernismo – atestam um processo irreversível e salutar. Sobre essa superação, leiam-se as belas páginas em G. Lindbeck e em A. Dulles, que teriam beneficiado os redatores do texto.
Entretanto, evocando, não por acaso, os fantasmas de Lutero e do Modernismo, o documento continua nessa estrada já fechada há décadas, mas faz isso, infelizmente, não respeitando as regras dessa linguagem clássica. Porque, para formular “cânones de condenação” – mesmo que por parte de sujeitos incompetentes – é preciso respeitar um duplo nível de coerência:
a) Por um lado, é preciso que a proposição formulada corresponda efetivamente a uma expressão teológica ou magisterial realmente existente. Qualquer forçação, ou analogia, ou generalização do texto torna inútil a formulação da proposição.
b) Por outro lado, é preciso que o parâmetro magisterial que seria contrariado pelo texto em questão corresponda efetivamente a uma “verdade” adquirida e definida pela tradição católica.
Para que haja uma “questão” interna à tradição, ou um “vulnus” que a dilacere, é preciso que ambos os critérios sejam escrupulosamente observados. Na ausência mesmo que de apenas um deles, a contestação é falaz e irrelevante.
No caso da “Correctio”, como veremos, nas suas sete proposições, ela carece sempre desses critérios e, portanto, deve ser considerada fruto de desorientação e de fantasia, sem qualquer efeito no plano da doutrina. É um ótimo documento que atesta a “nostalgia” em relação a uma Igreja e a um mundo que não só não existem mais, mas que também nunca existiram.
Passo, agora, a um rápido exame de cada uma das sete proposições e tento mostrar o “defectus” que as distingue. De um modo geral, também é preciso acrescentar que as proposições “incriminadas” nunca são citações literais da Amoris laetitia, mas reconstruções, muitas vezes, totalmente arbitrárias do seu conteúdo. Essa redução da Amoris laetitia a negação da doutrina do século XIX sobre o matrimônio é o erro metodológico que compromete toda a operação. Mas examinemo-las ponto a ponto:
- “Uma pessoa justificada não tem a força com a graça de Deus para cumprir os mandamentos objetivos da lei divina, como se alguns dos mandamentos fossem impossíveis de observar por aquele que é justificado; ou como se a graça de Deus, produzindo a justificação em um indivíduo, não produzisse invariavelmente e, por sua natureza, a conversão de todo pecado grave, ou que não fosse suficiente para a conversão de todo pecado grave.”
Nem a Amoris laetitia nem outras expressões do Papa Francisco permitem suspeitar minimamente que essa afirmação possa ter sido pronunciada. O vício teórico e teológico dessa proposição é o de entender o “mandamento objetivo” sem qualquer referência à experiência do sujeito.
A justificação pede uma resposta: o esforço dessa resposta não é eclesialmente irrelevante, senão para uma versão “impessoal” e “burocrática” da doutrina. Ninguém duvida, por exemplo, que Deus dá a cada um a força para “resistir” à tentação de matar. Mas há circunstâncias particulares em que o assassinato do próximo, se é condição da minha vida ou da do meu filho, torna-se possível, quando não necessária.
Aqui, não está em questão a “força do sujeito”, mas o contexto em que o sujeito responde à graça. Não é negado o dom objetivo de Deus, mas é salvaguardada a complexidade da experiência subjetiva.
- “Os católicos que obtiveram um divórcio civil do cônjuge com o qual estão validamente casados e contraíram um matrimônio civil com alguma outra pessoa durante a vida de seu cônjuge, e que vivem more uxore com seu parceiro civil, e que escolhem permanecer nesse estado com pleno conhecimento da natureza de seu ato e com pleno consentimento do ato pela vontade, não estão necessariamente em estado de pecado mortal e podem receber a graça santificante e crescer na caridade.”
A “condição objetiva” do divorciado em segunda união não é suficiente para formular o julgamento sobre a pessoa. A diferença entre “instituição matrimonial” e “pessoas casadas” é o fruto do caminho eclesial que começou desde o início do século XX e que progressivamente chega à Amoris laetitia: se a questão for formulada com base na experiência de meados do século XIX – que podia presumir prescindir do sujeito – é óbvio que se cai na desorientação e se chega a levantar a hipótese de que o único mundo católico justificado pode ser o daquele tempo.
Mas é apenas uma reconstrução fantasiosa: não há nenhuma necessidade de considerar em pecado mortal quem “permanece nesse estado”. Não se pode excluir isso, obviamente, mas não somos obrigados, por necessidade, a considerá-la como uma presunção eclesial que se impõe indistintamente, como poderia ser há 150 anos.
- “Um fiel católico pode ter pleno conhecimento de uma lei divina e voluntariamente escolher violá-la, mas não estar em estado de pecado mortal como resultado desse ato.”
A vontade de Deus e a lei divina não são a mesma coisa. Reduzir a vontade de Deus a uma lei positivamente formulada significa perder o espaço da fragilidade e da misericórdia como critério primeiro e último da ação eclesial. Além disso, o pleno conhecimento da lei divina não significa o seu conhecimento “abstratamente”, mas concretamente. No entanto, para o conhecimento concretamente, é preciso conhecer as circunstâncias e as condições do sujeito.
A proposição proposta pressupõe como claro a priori aquilo que, de vez em quando, deve ser esclarecido. Ela fala como se vivêssemos em uma “sociedade fechada”: por isso, é o fruto de uma desorientação e de uma fantasia que prejudica a relação com a realidade mundana e eclesial contemporânea.
- “Uma pessoa que obedece uma proibição divina pode pecar contra Deus por causa desse ato de obediência.”
Obedecer a lei divina não é o fim, mas o meio. Fazer a vontade de Deus é maior e mais complexo do que obedecer a uma lei. Por isso, os antigos já sabiam que “summum ius summa iniuria”. Por que nunca devemos nos escandalizar com a insuficiência de uma adesão à tradição pensada de acordo com o critério absoluto da “obediência à lei”?
Há, nessa proposição, a sombra longa das “fantasias institucionalistas”, que pensaram em conjugar o Evangelho como um “paralelismo jurídico” em relação ao Estado moderno. Esse projeto, que se coloca entre o fim do século XIX e o início do século XX, encontrou uma nova formulação a partir do Concílio Vaticano II. Mas a nostalgia repete obstinadamente a fórmula superada e a pensa como idêntica ao Evangelho.
- “A consciência pode reconhecer que atos sexuais entre pessoas que contraíram um casamento civil, mesmo que uma delas esteja casada sacramentalmente com outra pessoa, podem às vezes ser moralmente lícitos, ou sugeridos ou até mandados por Deus.”
Não há dúvida de que a exclusão da moral do âmbito do “matrimônio civil” é a herança estreita e asfixiante demais de uma contraposição entre Estado liberal e Igreja Católica que recebemos do século XIX. O ato sexual faz parte da identidade do sujeito: separar a sexualidade da identidade cristã é uma operação sobre a qual não existe nenhuma possibilidade de invocar uma univocidade da tradição anterior ao século XIX. Se apenas a nostalgia do século XIX permitisse ler a Divina Comédia, o Decamerão ou os registros dos párocos até o século XV, descobriria um mundo em que o pecado mais grave não era a luxúria, mas a inveja. Aqui, para defender a luta obsessiva contra a luxúria moderna, não se resiste à tentação de invejar não só o mundo contemporâneo, mas também a Igreja nas suas expressões mais altas.
- “Os princípios e as verdades morais contidos na revelação divina e na lei natural não incluem proibições negativas que proscrevem absolutamente certos tipos de atos, na medida em que eles são gravemente ilícitos em razão de seu objeto.”
Uma nova confusão ocorre nesse ponto. A tradição conhece bem a diferença entre mandamentos positivos e proibições negativas. Mas o maximalismo recente construiu um sistema blindado – fruto da desorientação e da fantasia – que, a partir da “gravidade do objeto”, pretende ser dispensado da consideração das circunstâncias. A indiferença em relação aos sujeitos é uma das consequências dessa impostação distorcida.
O que é “intrinsecamente mau” é um conceito-limite que não pode ser aplicado à experiência comum. A pretensão de que nós podemos dispor de uma lista fechada de casos para cuja consideração as circunstâncias subjetivas são irrelevantes é a resposta teoricamente defasada e tradicionalmente não fundamentada à desorientação diante da sociedade aberta, na qual o sujeito adquire maior autonomia e liberdade, que o discernimento eclesial deve levar em conta.
- “Nosso Senhor Jesus Cristo quer que a Igreja abandone sua disciplina perene de negar a Eucaristia aos divorciados recasados, e de negar a absolvição aos divorciados recasados que não expressem nenhuma contrição por seu estado de vida e o propósito firme de emenda nesse particular.”
Definir como “perene” uma disciplina do século XIX, que amadureceu a despeito do surgimento do Estado moderno e com o condicionamento do novo direito civil parece ser uma proposição falsa e gravemente unilateral. Ninguém – nem o papa nem o Sínodo dos Bispos – jamais disse ou escreveu que quer abandonar uma práxis eclesial de grande atenção à relação entre a vida dos sujeitos, a sua vida eucarística e o caminho de conversão ao “fazer penitência”.
Mas uma leitura da relação entre “segundas bodas”, vida de graça e conversão não pode ser identificada, de modo algum, precisamente por fidelidade à tradição, com o arranjo canônico e moral estabelecido entre meados do século XIX e o Código de 1917. O século XIX introduziu legitimamente uma leitura mais rígida e institucional, que, de forma igualmente legítima, com base em uma tradição mais antiga, pode ser corrigida, orientada e traduzida ao início do século XXI. Mas se deve lembrar que, já no início do século XX, as palavras de Pio X sobre a Eucaristia, que deve ser entendida não como prêmio, mas como remédio, entravam em tensão com essa releitura rígida da relação entre pecado, penitência e comunhão.
Um dos signatários do documento, o economista Gotti Tedeschi, depois de assinar um documento tão pouco honesto, fez uma declaração honesta: “Eu não chamo o papa de herético, nem penso isso remotamente. Eu seria estúpido se o fizesse, não sou teólogo”. Com efeito, entre os signatários, há alguns professores, alguns advogados, alguns religiosos, mas poucos teólogos. Talvez uma melhor competência teológica teria beneficiado o documento. Mas talvez seria preciso dizer, em geral, que é sempre arriscado para todos colocar a assinatura debaixo de textos que não se compreenderam. Porque, assim, corre-se o risco de fazer o que não se quer e de ser estúpido, mesmo sem querer. Mas a desorientação e a fantasia podem muito.
Diante desse tocante atestado de nostalgia, certamente fruto de uma grande história de amor com a fantasia, mas também repleta de graves desvarios teóricos e teológicos, é justo fazer uma pergunta final: quis corriget correctionem?
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Nostalgia de Pio IX: quis corriget correctionem? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU