22 Agosto 2017
A centralidade do trabalho nunca esteve tão fortemente em debate. O trabalho assalariado como lugar determinante de coesão social na perspectiva durkheimiana está em crise. A acelerada desregulamentação das relações de trabalho, a desconcertante evolução das forças produtiva e sua consequente pulverização de postos de trabalho associada à financeirização que vem engolindo a esfera produtiva, coloca em questão o lugar do trabalho na sociedade contemporânea.
Culto a maquina. Exposição na Pensilvânia, Filadelfia (1876) em comemoração aos cem anos da Declaração da Independência americana.
O artigo é de Cesar Sanson, professor na área da Sociologia do Trabalho, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
Eis o artigo.
Há um debate relativamente recente, sobretudo na sociologia do trabalho, sobre o lugar que o trabalho ocupa na sociedade. É um debate que surge nos países centrais, particularmente na França, estimulado principalmente pela produção teórica de André Gorz que em suas obras Adeus ao Proletariado (1980), Metamorfoses do Trabalho (1980) e, sobretudo Misérias do Presente. Riquezas do Possível (1997) coloca em questão a centralidade do trabalho. Entre os autores que falam da crise do assalariamento podemos identificar, entre outros, o próprio Gorz, Jeremy Rifkin (O fim dos empregos, 1995), Claus Offe (Capitalismo desorganizado, 1995), Dominique Méda (Le travail: une valeur en voie de disparition, 1995), Françoise Gollain (Une critique du travail: entre écologie et socialismo , 2000), Roger Sue (La richesse des hommes: vers l’économie quaternaire, 1999).
Esses autores, grosso modo, destacam que os anos dourados do capitalismo ficaram para trás e a sociedade do pleno emprego jamais voltará. Afirmam que as transformações do capitalismo mundial, particularmente a partir da evolução das forças produtivas e a perda da força política do Estado como regulador da assimetria capital versus trabalho instauraram a crise da sociedade salarial. Gorz vai mais longe, ao afirmar que se faz necessário “ousar o êxodo da sociedade salarial” e sugere a superação do assalariamento propondo um “minímo vital” – espécie de renda cidadã para todos independente da condição assalariada ou não.
A tese da crise terminal da sociedade salarial, do assalariamento, ou ainda do emprego não é acompanhada por uma série de outros autores. Destacam-se aqui, sobretudo, Robert Castel (As Metamorfoses da Questão Social. Uma crônica do salário, 1995) e Manuel Castells (Sociedade em Rede, 1996). Castel reconhece a desestruturação da condição salarial, porém, destaca que a ‘nova questão social’, exatamente daqueles que se encontram na precariedade, fora da sociedade salarial, precisam retornar a ela e não serem contemplados com medidas escapatórias ou compensatórias. Manuel Castells, por sua vez, contesta as “profecias apocalípticas” daqueles que afirmam que estamos diante do fim do emprego. O autor catalão destaca em sua obra pesquisas para indicar que se assiste a um declínio do emprego industrial, resultante da Revolução Informacional, mas esse declínio, aponta ele, é compensado pela ampliação de postos de trabalho no setor de serviços, sobretudo naquele potencializado pela nova dinâmica da economia informacional.
No Brasil, um dos principais autores que contesta a perda da centralidade do trabalho na sociedade é Ricardo Antunes. O autor reconhece que há uma desestruturação da sociedade salarial e utiliza o conceito ‘classe-que-vive-do-trabalho’ para configurar a nova classe trabalhadora. Na realidade, Antunes incorpora os que estão fora do assalariamento tradicional, como os trabalhadores informais, no conjunto dos “assalariados” sob o argumento de que também ‘vendem a força de trabalho’, logo diz ele, “a classe trabalhadora engloba também os trabalhadores improdutivos, aqueles cujas formas de trabalho são utilizadas como serviço, seja para uso público ou para o capitalista, e que não se constituem enquanto elemento diretamente produtivo, enquanto elemento vivo do processo de valorização do capital e de criação de mais valia” [1].
Antunes polemiza com Gorz e desautoriza o argumento da perda de centralidade do trabalho. Na realidade, a contestação de Antunes a Gorz é imprecisa. O autor francês faz uma importante distinção entre trabalho e emprego e quando está falando em perda da centralidade do trabalho, o faz pensando no trabalho assalariado, formal, de ‘carteira assinada’. Gorz nunca questionou o caráter e a natureza da centralidade ontológica do trabalho para a vida das pessoas. A confusão estabelecida deve-se muito mais ao fato de que os pesquisadores brasileiros do mundo do trabalho, com raras exceções, conhecem pouco o pensamento de Gorz e fazem uma leitura aligeirada de suas proposições.
Entre as duas posições, daquela que fala da perda da centralidade do trabalho na sociedade, resultante das mudanças das forças produtivas que com o advento de novas máquinas ferramentas informacionais eliminam postos de trabalho e poupam mão-de-obra, e de outra, que fala que não se pode falar em crise do trabalho, pois esse continua no centro das relações de produção, mesmo que em um contexto mais precário; encontram-se autores que falam em desestruturação da sociedade salarial fordista como Richard Sennett (Corrosão do Caráter, 1999), David Harvey (A Condição Pós-Moderna, 1992), Daniele Linhart (A desmedida do Capital, 2007). Esses autores, entre outros, destacam, o padrão flexível de produção como a característica central no novo modo produtivo e as suas consequencias. Estão aqui também os autores nacionais como o próprio Ricardo Antunes, Marcio Pochmann, Márcia Paula Leite, Dari Krein, Giovanni Alves, José Ricardo Ramalho, Marco Aurélio Santana, Roberto Véras, entre outros. Todos eles acentuam a ofensiva do capital frente ao trabalho, manifesta no trinômio flexilibilização, terceirização e precarização chancelada pelo Estado subordinado aos interesses do capital.
No debate ainda sobre o lugar teórico do trabalho há autores vinculados ao conceito do “capitalismo cognitivo”, “pós-fordismo” ou “sociedade pós-industrial”. Autores, entre outros, como Antonio Negri e Michael Hardt com a trilogia Império (2001), Multidão (2005) e Bem-Estar Comum (2016), Maurízio Lazzarato (Trabalho imaterial, 2001), Antonela Corsani (Capitalismo cognitivo, propiedad intelectual y creación colectiva, 2004), Paolo Virno (Grammaire de la multitude, 2002), Guiseppe Cocco (Capitalismo Cognitivo, 2003), destacam que no epicentro do deslocamento do capitalismo industrial para o pós-industrial, encontra-se a economia do imaterial e do trabalho imaterial. Essas características estão alterando a configuração do trabalho na sociedade. Em contraponto ao ‘trabalho morto’ da sociedade industrial assiste-se a emergência do ‘trabalho vivo’. Agora, e sempre mais, a essência do capital produtivo da sociedade pós-industrial se vale cada vez menos de um controle sobre os corpos e as vidas e, ao contrário, investe nas vidas e nos corpos como capacidades produtivas singulares – o ‘trabalho vivo’. Investe não mais para subordiná-los, adestrá-los e controlá-los, mas para ativar sua cooperação subjetiva e possibilitar a produção do comum – a somatória das performances individuais que torna possível o plus produtivo numa economia extremada pela competitividade.
Esses autores não entram em cheio no debate sobre a crise do trabalho assalariado, mas ao indicarem o deslocamento da natureza do trabalho que hoje se realiza, evidenciam que o modelo fordista esgotou-se. Destacam que com o advento do capitalismo cognitivo, a teoria valor tende a ser desencadeada em diferentes formas de trabalho ou mão de obra que rompem com as horas de trabalho efetivamente verificadas para coincidir cada vez mais com o tempo geral da vida. Em outras palavras, o conceito ‘emprego’ enquanto unidade pré-estabelecida de uma jornada de trabalho padrão com produtora de valor (mais valia) rompeu-se. A teoria valor deve agora ser encontrada numa dinâmica em que não existe mais o ‘dentro’ e o ‘fora’ do trabalho. Cocco destaca, “agora, o mundo do trabalho complexificou-se e não passa mais apenas pela prévia implementação na relação salarial tal qual no período fordista. Agora, o trabalho dos incluídos enquanto excluídos é um trabalho de tipo diferente: ele é precarizado (do ponto de vista da relação de emprego); imaterial (do ponto de vista que depende da recomposição subjetiva e comunicativa do trabalho manual e intelectual) e terciário (do ponto de vista da cadeia produtiva, aquela dos serviços” [2].
No contexto dos autores que abordam a emergência do capitalismo cognitivo, vale destacar ainda a instigante elaboração teórica de autores como Gigi Roggero, Carlo Vercellone, Andrea Fumagalli, Christian Marazzi [3]. Para eles, a financeirização assumiu o comando da economia real, ou ainda antes disso, a financeirização não é mais um processo externo à produção, mas constitui-se, ao contrário, a sua forma econômica real com impacto em toda a dinâmica econômica. Nesse sentido, a financeirização – longe de contrapor-se à economia real – é a forma da economia capitalista que exerce o comando sobre o capitalismo produtivo.
Fumagalli destaca que no paradigma atual do capitalismo cognitivo, os mercados financeiros, longe de serem o local de rendimento parasitário improdutivo, são o motor da economia. Segundo ele, a centralidade do mercado financeiro se manifesta em duas dinâmicas: “Eles [mercado financeiro], de fato, proveem o financiamento da atividade de acumulação, sobretudo no caso das produções cognitivas imateriais (conhecimento e espaço) e, em segundo lugar, na presença de mais-valias, desenvolvem o papel de multiplicador da economia e de redistribuição da renda. Trata-se de um multiplicador financeiro que induz uma distorção da renda diversamente daquele real keynesiano baseado no ‘deficit spending’” [4]. Ou seja, doravante vivemos uma relação permanente de débito-crédito em que o risco de insolvência das dívidas é constitutivo ao crescimento da base financeira e ao mesmo tempo em que sufoca a base produtiva, desloca o papel antes exercido pelo Estado na oferta dos serviços públicos para a esfera privada com mercantilização dos mesmos serviços.
Finalmente, há um acontecimento novo em curso que interage fortemente com os conteúdos descritos anteriormente: a Quarta Revolução Industrial, também denominada de Revolução 4.0. Essa Revolução anuncia efeitos devastadores sobre o mundo do trabalho, particularmente sobre a estrutura ocupacional. Por ora, percebem-se duas posições em debate: Aqueles que acreditam num final feliz (trabalhadores deslocados pela tecnologia encontrarão novos empregos desencadeados pelas novas tecnologias) e aqueles que vêem um processo crescente de destruição de empregos. Estudos que procuram traçar cenários acerca do futuro do emprego não são nada animadores [5]. O que se antevê com a disseminação de tecnologias cada vez mais sofisticadas - inteligência artificial, robótica, internet das coisas, veículos autônomos, impressão em 3D, nanotecnologia, biotecnologia – é a eliminação acelerada de postos de trabalho.
O debate teórico sobre o lugar do trabalho na sociedade contemporânea é oportuno e necessário em função de que o trabalho ocupa desde a Revolução Industrial uma centralidade determinante na sociedade. A vida individual e coletiva se faz através do trabalho. É a atividade profissional que permite não apenas ganhar a vida como também o reconhecimento social. Considerando-se os sinais do esgotamento da sociedade salarial, surge uma indagação: Como as pessoas serão incluídas socialmente? Pensar uma sociedade inclusiva requer colocar em discussão que tipo de sociedade do trabalho queremos ou, ainda mais, ousar perguntar se já não reunimos condições, mesmo que parcial, de avançar para uma sociedade do pós-trabalho.
Notas
1 – ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho, Boitempo Editorial, São Paulo, 2013.
2 – Cf. entrevista: Mobilização reflete nova composição técnica do trabalho imaterial das metrópoles. Entrevista especial com Giuseppe Cocco, 25 de junho 2013 – Sítio do IHU.
3 – Cf. entrevistas nas revistas IHU On-Line: O capitalismo cognitivo e a financeirização da economia. Crise e horizontes – IHU On-Line, Edição 301, 20 julho 2009; Biocapitalismo e trabalho. Novas formas de exploração e novas possibilidades de emancipação – IHU On-Line, Edição 327, 03 maio 2010 (ver abaixo);
4 – Cf. entrevista: A morte da democracia e a farsa neoliberal da neutralidade da moeda. Entrevista especial com Andrea Fumagalli, 20 de setembro 2015 – Sítio do IHU.
5 - Estudos da Universidade de Oxford coordenada por Michael A. Osborne e Carl Benedikt Frey, da Universidade de Oxford indicam que 47% dos empregos vão desaparecer nos próximos 25 anos.
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Debate teórico sobre o lugar do trabalho na sociedade contemporânea - Instituto Humanitas Unisinos - IHU