26 Julho 2017
"Não ser autorreferencial não é uma questão de intenção, é uma questão de “práxis”. Lamentar-se pelo fato de que as violências nos quartéis não são tratadas pela mídia como as canônicas é uma forma de analfabetismo processual. O fato de que tal ingenuidade tenha sido escrita no órgão oficial da Santa Sé diz muito sobre a falta de clareza – ou sobre a nostalgia – que continua resistindo nos corações endurecidos e nas mentes estreitas."
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 23-07-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A renúncia de Marie Collins da comissão vaticano que se ocupa de combater a pedofilia na Igreja levantou, há alguns meses, um justo frisson. Até mesmo o secretário de Estado, Parolin, tinha definido o caso, na época, de “um modo para sacudir a árvore”. Mas Lucetta Scaraffia parece ter se esquecido disso.
Ao escrever, na última sexta-feira, o seu artigo no L’Osservatore Romano, ela apagou tudo como se nada tivesse acontecido e se lançou contra a mídia, que usaria dois pesos e duas medidas quando fala de “violências por parte de miliares” ou de “violências por parte de padres”.
Diante dessa grave amnésia, é preciso destacar, mais uma vez, que há uma conexão decisiva entre “reforma da Igreja” e “cuidado com os procedimentos”. Marie Collins tinha compreendido com muita lucidez uma contradição entre “afirmações de princípio” e “práxis adquiridas”.
Essa observação, que eu considero totalmente preciosa, permite-nos ampliar o discurso e avaliar, à luz desse episódio – à luz da coragem de Collins e da amnésia de Scaraffia –, o impacto global que as reformas do Papa Francisco têm sobre o plano da “recepção oficial”.
A reação de Collins, relacionando-se com um tema delicado como a “luta contra a pedofilia”, obteve imediatamente um destaque e um interesse particular. Reforma da Igreja não é apenas “reforma da mentalidade”, mas também “reforma dos procedimentos”. Isso significa que a Igreja aceita responder no tribunal pelos seus crimes e não se entrincheira atrás do silêncio irresponsável.
Marie Collins está justamente preocupada com uma Igreja que não responde. Lucetta Scaraffia, por sua vez, preocupa-se com a reação diferente que a mídia reserva quando as violências explodem em um quartel ou em uma escola “secular”, e quando, ao contrário, são cometidas em um seminário ou em uma escola diocesana católica.
Mas essa diferença é precisamente a justificação da reação diferente. Não há nada pior do que fazer o contrário daquilo que se prega: um quartel não é justificado pela caridade, mas pela defesa e pela proteção da ordem pública. Se um seminário ou uma escola de jovens cantores se justifica por ideais bem mais altos, ela cai muito mais ruidosamente quando contradiz a si mesma. Os antigos diziam, com sabedoria: corruptio optimi, pessima.
Portanto, a questão levantada por Marie Collins – e removida por Scaraffia – vai muito além da luta, embora importante, contra a pedofilia na Igreja. E é justamente isso que escapa ao olhar de uma observadora distraída como Lucetta Scaraffia.
A questão diz respeito a um déficit estrutural de Igreja Católica contemporânea, que Francisco trouxe claramente à tona e em relação ao qual pediu, com grande força, uma mudança estrutural. O exercício da violência contra os menores não é, acima de tudo, um problema moral, mas uma questão de exercício autorreferencial da autoridade, que anula os direitos dos terceiros. No sentido de que não percebe a sua existência e remove a sua consistência.
E aqui é preciso fazer uma dupla consideração, que ajuda a compreender melhor também as diversas resistências ao pontificado e ao seu ímpeto reformador. O pontificado de Francisco trabalha, acima de tudo, neste ponto: contesta frontalmente a autorreferencialidade, que é a verdadeira raiz da distorção formativa e relacional.
Diante disso, existem duas reações. Por um lado, há o número daqueles que se opõem aberta e substantivamente à reforma, defendendo inescrupulosamente toda forma de poder autorreferencial. E encontram todos os meios, processuais ou não, para obstruir a mudança e a conversão da Igreja.
Mas há também um certo número de sujeitos – em diversos níveis da hierarquia e também bem colocados nos jornais “amigos” – que estão dispostos a receber em palavras todos os conteúdos novos, mas fazem isso sem qualquer elasticidade no plano dos procedimentos.
Não ser autorreferencial não é uma questão de intenção, é uma questão de “práxis”. Lamentar-se pelo fato de que as violências nos quartéis não são tratadas pela mídia como as canônicas é uma forma de analfabetismo processual. O fato de que tal ingenuidade tenha sido escrita no órgão oficial da Santa Sé diz muito sobre a falta de clareza – ou sobre a nostalgia – que continua resistindo nos corações endurecidos e nas mentes estreitas.
E não é por acaso que quem preside a comissão que se ocupa dessa matéria é justamente o arcebispo de Boston: qualquer pessoa que tenha visto “Spotlight” – que está ambientado em Boston – sabe do que se trata e entendeu que, por trás do casos de “pedofilia”, sempre há, acima de tudo, um problema de compreensão do papel da autoridade na Igreja – e do imaginário clerical – em relação aos direitos dos jovens batizados e à igualdade de tratamento no campo civil.
A “pedofilia clerical” é – em certa medida e sem qualquer automatismo genérico – uma consequência do déficit formativo e relacional que a estrutura eclesial, às vezes, “impõe” aos seus futuros ministros.
A primeira reforma não diz respeito aos tribunais em perseguem os crimes, mas sim aos lugares formativos que impedem essas distorções das relações e essas perversas satisfação da libido. Que são crimes para todos aqueles que as cometem, mas são escândalos quando dizem respeito a quem anuncia, de modo radical e existencial, a salvação e a comunhão reservadas para cada homem e para cada mulher.
Lamentar-se diante de tudo isso, da mídia, que usaria “dois pesos e duas medidas”, assemelha-se muito aos caprichos de uma criança mimada que vê o seu brinquedo favorito se quebrar: aos de uma Igreja autorreferencial e que não responde a ninguém por aquilo que faz.
Ao pisar no pé caprichosamente, Scaraffia sabia muito bem que iria comprazer também alguns cardeais ainda influentes. Mas isso não a impediu de perder toda a autoridade ao se apresentar como intérprete do “novo curso”: aqui, ela aparece apenas como voz atrasada a defender o ancien régime.
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Pedofilia, dois pesos e duas medidas? Ou distorção formativa e relacional? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU