26 Julho 2017
“Ninguém duvida de que se trata de atos ignóbeis e vergonhosos, que deviam ser punidos e, principalmente, evitados, mas chama a atenção o nível de manipulação midiática do caso e, especialmente, a percepção diferente que a opinião pública tem de episódios semelhantes.”
A opinião é da historiadora italiana Lucetta Scaraffia, membro do Comitê Italiano de Bioética e professora da Universidade de Roma "La Sapienza". O artigo foi publicado no caderno "Donne Chiesa Mondo" do jornal L’Osservatore Romano, 22-07-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Dias atrás, no jornal Corriere della Sera, foi reconstruída, com um certo destaque, a história de um homem que contava ter sofrido, no início dos anos 1980, em um quartel romano, violências e estupros. Tão pesados a ponto de deixá-lo, por um longo tempo, desprovido dos sentidos.
Apesar da gravidade do caso e da difícil recuperação física e psíquica, a vítima tinha sido convidada pelos superiores militares a se calar, para não manchar o bom nome do Exército. E tinha obedecido, desesperando-se por ser ouvida.
Ao artigo, não se seguiu nenhuma indignação coletiva, nenhum pedido de denúncia dos estupradores, nem de reprimenda ao Exército com uma consequente abertura de inquérito sobre o caso, notoriamente não isolado, mas parte de um deplorável, mas inveterado, hábito de praticar violências e humilhações durante os rituais de iniciação.
Fatos como esses ocorreram, e existe um fundado temor de que ainda ocorram, em outras instituições “fortes”, até mesmo acadêmicas, como, por exemplo, nos mais célebres colégios ingleses, mas também em escolas de elite italianas. Justamente aqueles ritos de iniciação perversos que um comentário do jornal Il Fatto Quotidiano atribui, ao contrário, aos seminários, liquidados nada menos do que como fábricas de pedófilos.
Bem diferente foi a atenção que a mídia dirigiu à triste história dos pequenos cantores de Regensburg: um amplo espaço e manchetes que, denunciando 547 casos de violência, muitas vezes deram a entender que se tratou quase de 600 estupros, enquanto os casos de abusos sexuais ao longo de quase meio século foram 67.
E era preciso aprofundar para entender que foram principalmente desprezíveis ações manuais – mas certamente menos graves do que os estupros – por parte de professores, aliás, não raramente sádicos. E, acima de tudo, para entender que não era um furo jornalístico, mas o resultado de uma rigorosa investigação ordenada pelo bispo da diocese, portanto, pela própria Igreja, decidida a ir a fundo em rumores e denúncias sobre esse escândalo.
Ninguém duvida de que se trata de atos ignóbeis e vergonhosos, que deviam ser punidos e, principalmente, evitados, mas chama a atenção o nível de manipulação midiática do caso e, especialmente, a percepção diferente que a opinião pública tem de episódios semelhantes: de um lado, tolerância para com a vida militar e os excessos de um trote que degenera em violência, de outro, extrema severidade para com a instituição eclesiástica.
Além disso, o hábito de indicar a Igreja Católica como fonte de todos os males já faz parte da experiência cotidiana e prepara a opinião pública para considerar isso como normal. Um recente exemplo italiano: na televisão pública, em horário nobre, um programa apresentou o caso de uma família composta por duas mães com quatro filhos de três a dez anos. O entrevistador, pronto para acolher com evidente prazer cada aspecto positivo – o casal vivia imerso em uma perfeita felicidade, e as crianças eram alegres e muito bondosas – e com evidente dor os negativos, ou seja, que as duas mulheres na Itália não podem considerar as quatro crianças como filhos de ambas, embora repetissem sinceramente que se tratava, na realidade, de irmãos. E de quem é a culpa por essa evidente injustiça? Do Vaticano, obviamente.
O fato de que se trata de uma lei do Estado italiano e que há também muitas pessoas seculares contrários ao reconhecimento legal das famílias homossexuais foi habilmente esquecido: mais fácil, e presumivelmente compartilhado por grande parte do público, o velho truque de culpar a Igreja por tudo.
É claro que, como bem sabemos, a Igreja é uma instituição especial, e pede-se dela, com justiça, uma exemplaridade absoluta, mas esse recurso constante a dois pesos e duas medidas ao julgar os seus comportamentos e ao atribuir responsabilidade não ajuda ninguém. Não ajuda a clareza das perguntas e não ajuda, principalmente, quando se tenta eliminar injustiças, punir os culpados de violências, impedir que estas se repitam.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Pedofilia, dois pesos e duas medidas. Artigo de Lucetta Scaraffia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU