24 Julho 2017
As ocupações de prédios e áreas públicas e privadas por movimentos de luta por moradia está expondo uma realidade dramática que a maioria da população ignora: o déficit habitacional que ainda faz com que milhares de pessoas vivam em condições extremamente precárias. O número de ocupações hoje em Porto Alegre é desconhecido pelas próprias autoridades. “Não conheço nenhum levantamento confiável. Há quem fale em 300 ocupações. Outros dizem que algo entre 20 e 25% da população da cidade está vivendo em áreas de ocupações. A Prefeitura fala em até 300 ocupações”, diz o promotor Cláudio Ari Mello, da Promotoria de Ordem Urbanística, do Ministério Público do Rio Grande do Sul. “Esse é um problema muito grande escondido em Porto Alegre”, acrescenta.
Em entrevista ao Sul21, Cláudio Ari Mello relata o trabalho que vem sendo realizado há pouco mais de dois anos pelo Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), que busca soluções negociadas em processos envolvendo conflitos possessórios coletivos. O promotor também aborda as delicadas e tensas relações entre o direito à propriedade e a ideia de função social da propriedade, no contexto destes conflitos possessórios. E fala ainda sobre o desconhecimento da realidade da cidade por parte da maioria da população:
“Em geral, as pessoas não sabem o que está acontecendo na cidade. Quem mora em Porto Alegre não conhece a realidade de grande parte da população da cidade. Não sabe o que é viver numa ocupação, numa casa de uma ocupação, o que é ter água por mangueira, ter luz de gato, o que é viver vendo os filhos no meio do esgoto. Não tem a menor ideia. A tendência é tratar as ocupações como um caso de esbulho”, afirma o promotor que defende a importância dos novos movimentos sociais de luta por moradia que estão se espalhando pelo país.
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 24-07-2017.
Porto Alegre, assim como tantas outras cidades brasileiras, vem lidando crescentemente com o tema do direito à moradia e das ocupações. Do ponto de vista legal, o Ministério Público é um dos atores centrais desse processo que afeta hoje a vida de milhares de pessoas. Como a Promotoria da Ordem Urbanística vem tratando esses temas?
A ideia de direito à cidade nasceu com um francês chamado Henri Lefebvre, na década de 60. De lá para cá, esse tema transitou especialmente entre aqueles que trabalham e refletem sobre a vida nas cidades: arquitetos, urbanistas, filósofos, sociólogos, antropólogos, ambientalistas, entre outros. Mais recentemente, esse título foi incorporado para refletir sobre questões que eram tratadas no âmbito do direito urbanístico. Desde a década de 60 também, se desenvolveu no Brasil uma área do Direito Administrativo que se chama Direito Urbanístico. Hoje, há uma espécie de convergência entre as reflexões mais abrangentes de urbanistas, filósofos, antropólogos e as dos juristas. Essa convergência tem modificado até a denominação do tema. Passamos a falar de direito à cidade. A promotoria onde trabalho se chama Promotoria da Ordem Urbanística, mas se fôssemos dar um nome bem contemporâneo a ela seria Promotoria da Cidade.
Essa promotoria trabalha com muitos temas, sendo um deles o do direito à moradia. Várias questões entram aí, inclusive o tema das ocupações que é o problema mais dramático de todos, mas não é o único. Temos também, por exemplo, o tema dos loteamentos irregulares ou clandestinos. Neste caso, não temos invasão, mas as pessoas estão morando irregularmente. Temos um número muito grande de ações judiciais envolvendo esse tipo de loteamento que, normalmente, nasce sem nenhuma infraestrutura. O possuidor da área simplesmente faz uma divisão física dos lotes e os vende, transferindo para o poder público o ônus da instalação da infraestrutura.
Quanto às ocupações, temos casos completamente consolidados, que são irreversíveis. Esses casos até são os mais fáceis, onde procuramos ajuizar ações de regularização fundiária. É o caso, por exemplo, da Chácara das Bananeiras, nas imediações do Presídio Central, onde moram cerca de 20 mil pessoas. O Morro Santa Teresa é outro exemplo de área com ocupações totalmente consolidadas. E temos as ocupações recentes, nos últimos 5, 10 anos, onde temos o conflito de posse para resolver. Nestes casos, normalmente, o proprietário, público ou privado, ajuizou ação de reintegração de posse, o que precisa ser resolvido antes de se tratar da questão da regularização fundiária. Às vezes, esses processos são extremamente demorados e as pessoas não podem encaminhar a questão da regularização, vivendo muito tempo em condições extremamente precárias.
Se há um processo de reintegração de posse em curso, isso significa, por exemplo, que a CEEE não pode sequer colocar luz nesta área, a não ser que o proprietário seja muito benevolente e aceite a instalação desse serviço enquanto durar a disputa judicial.
O que não deve ser a regra…
Sim, não é a regra. Esses são os problemas mais dramáticos. Trata-se de ocupações relativamente recentes que não podem dar início a um processo de regularização fundiária. Esse é um problema muito grande e escondido em Porto Alegre. Ele é muito pulverizado.
Existe algum levantamento sobre o número de ocupações hoje em Porto Alegre?
Não conheço nenhum levantamento confiável. Há quem fale em 300 ocupações. Outros dizem que algo entre 20 e 25% da população da cidade está vivendo em áreas de ocupações. Na verdade, um levantamento desse tipo exige uma metodologia científica que só uma universidade pode desenvolver. A Prefeitura fala em até 300 ocupações. Temos situações completamente diferentes. Uma pessoa que está vivendo em um loteamento que não é uma área de risco, tem total segurança na posse. Ela pode conseguir luz, água encanada e dar início à melhoria de sua casa. Esse é o extremo oposto de alguém que ocupou um vazio urbano que é objeto de uma ação judicial. Essa pessoa, às vezes, vive 10 ou 20 anos em situação de extrema vulnerabilidade.
Temos o caso da Vila Dique, por exemplo, que é diferenciado, mas não é incomum. As objeções da Promotoria do Meio Ambiente para a permanência das famílias ali são de natureza ambiental. Seria uma área muito degradada que, se fosse regularizada, exigiria que se removesse todo mundo, se recuperasse a área e depois disso as famílias voltariam ao local. Seria caríssimo.
Mas a maioria das famílias quer permanecer na área…
Sim, a maioria quer ficar. O problema da Dique é o processo de gentrificação. Ao invés de o poder público ter adquirido uma área ali perto para não desterritorializar aquela comunidade, jogaram para longe. Eles têm seu trabalho e sua vida ali, uma relação de afeto com o lugar. Eu entendo. É como me tirar do Menino Deus. É um processo traumático.
Além disso, apontam uma questão de segurança, pois as famílias que foram removidas em 2009 para um condomínio na zona norte começaram a enfrentar problemas com gangues do tráfico, por identificações e disputas territoriais. Há vários relatos sobre jovens que acabaram mortos neste processo de relocalização.
Sim, com a Nazaré acontece a mesma coisa. Esse é um problema bem difícil de resolver. Eu não faria a opção de mantê-los ali, mas, ao mesmo tempo, acho criticável que a solução não tenha sido mantê-los na região, mantendo a territorialidade deles. Além desse problema adicional da segurança que, às vezes, não é facilmente identificável no momento da decisão. Não sei se estava claro para a Prefeitura se as famílias poderiam enfrentar problema com esse problema de territorialidade de gangues do tráfico. Depois é difícil de corrigir, pois o empreendimento já foi feito. É uma variável bem complicada de se lidar.
A Promotoria da Ordem Urbanística divide o andar com a Promotoria do Júri. Uma não tem nada a ver com a outra, superficialmente falando. No entanto, olhando para baixo da superfície, elas têm tudo a ver. Grande parte da violência hoje em Porto Alegre nasce dentro de áreas de ocupações, que são absolutamente vulneráveis ao tráfico. Raríssimas são as ocupações hoje que não são dominadas pelo tráfico. São áreas em que o Estado não entra e, quando entra, é de modo muito superficial.
A Promotoria tem atuado nesta área só quando é demandada ou tem tomado iniciativas também na busca de soluções para esses problemas?
As duas coisas. No ano passado, instauramos um inquérito civil público, que está começando a andar agora, para debater o processo de expansão imobiliária e urbanística na direção do extremo sul da cidade, avaliar os critérios que vêm sendo adotados para licenciamento ambiental de empreendimentos de médio e longo porte e que tipo de infraestrutura vem sendo construída nesta região. Um projeto do porte do empreendimento imobiliário que pretende se implantar na antiga Fazenda do Arado tem como obrigação adotar medidas de compensação e de mitigação. Já um empreendimento do tipo Minha Casa Minha Vida não tem nenhuma obrigação desse tipo. Esse é o caso, por exemplo, do Jardim das Figueiras, na Juca Batista, que deve levar entre 4 e 5 mil pessoas para morar lá. Na hora em que você licencia um empreendimento como este, tem que prever que no entorno deve haver ruas, linhas de ônibus, escola, creche, etc. Esse inquérito que estamos realizando tenta intervir no planejamento, ou na falta de planejamento urbano na cidade.
Outro projeto do qual estamos participando é o do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), um serviço oferecido aos juízes de Porto Alegre que tenham nos seus juízos ações que envolvam conflitos possessórios coletivos. Geralmente, são ações de reintegração de posse, mas não necessariamente. O objetivo é buscar uma tentativa de conciliação. Esse projeto tem obtido resultados mais modestos do que gostaríamos, mas a ideia parece ser muito mais promissora do que manter essa tentativa nos juízes. De certa forma, ela é um ensaio para uma especialização. Não estou falando necessariamente de criar uma vara para esses conflitos, até porque não há um número suficiente de processos para justificar tal criação. Uma alternativa seria especializar uma vara para tratar de conflitos possessórios coletivos urbanos.
Uma das questões mais difíceis de lidar envolvendo esse tipo de conflitos é que o universo jurídico de modo geral e a população de classe média para cima têm uma visão muito preconceituosa em relação às ocupações. Muitas vezes, quando um juiz recebe uma ação destas, por não possuir uma compreensão do todo, ele interpreta a ocupação como sendo um movimento na fronteira com o criminoso. Não deixa de ser um desafio para a ideia de Estado de Direito. Um dos argumentos mais utilizados é que, se eu legitimo uma determinada ocupação, terei que fazer isso em todos os outros casos também. Isso cria um problema para o Estado de Direito. Como é que vou aceitar que uma ocupação violenta seja uma forma natural de aquisição da propriedade? É um dilema. Mas a experiência que já acumulamos mostra que a simples convivência vai ajudando a desarticular o preconceito. Ainda que você continue com o dilema envolvendo o Estado de Direito, a tendência é que você passe a ser mais compreensível com um problema que é dramático.
Esse debate sobre o Estado de Direito envolve tanto o direito à propriedade quanto a questão da função social da propriedade. No entanto, olhando para a maioria das sentenças judiciais a impressão que se tem é que, embora se reconheça a importância da propriedade ter uma função social, o direito à propriedade acaba se sobrepondo a esse critério e prevalecendo. Como é que você avalia a relação entre esses dois temas?
Uma ideia importantíssima desenvolvida por Hobbes diz que a necessidade conceitual do Estado e de submissão ao direito do Estado é a alternativa que temos a uma situação de violência generalizada. Aparentemente, não temos muita saída em relação a isso. Basta extravasar essa forma de solução ao problema da ausência de moradia popular para a área da saúde.
Imagine como seria se as pessoas passassem a entrar de modo violento em hospitais para pegar remédios. Se aceitamos que um grupo de pessoas tome a decisão privada de que determinado prédio não cumpre uma função social, ocupe esse prédio e passe a considerá-lo como a sua moradia, estamos aceitando a realização de uma justiça privada. É difícil compatibilizar isso com a ideia de Estado de Direito. Ao menos que você considere um caso como este como uma circunstância muito específica que não contamina o Estado como um todo. Mas isso é muito contingente.
A falta de moradia popular é um problema generalizado em todo o país hoje. O que significaria um sinal verde para que esse tipo de prática seja legitimado? Nós temos em Porto Alegre cerca de 40 mil imóveis abandonados. Todos eles são candidatos a serem ocupados.
Em segundo lugar, é preciso entender que o direito à propriedade é um dos direitos mais antigos da história do Direito. O próprio conceito de direito subjetivo das pessoas nasce da análise do direito à propriedade. Os historiadores do Direito apontam que a origem do conceito de direito subjetivo se deu quando os franciscanos e dominicanos disputavam qual a relação que os padres deveriam ter com os bens doados à Igreja Católica. Foi aí que se começou a pensar a ideia de que os indivíduos têm direitos e que se eles não forem respeitados é possível recorrer à Justiça. Os gregos e os romanos não tinham o conceito de direito subjetivo, mas os romanos tinham o conceito de propriedade. Então, esse é um dos conceitos mais antigos, arraigados, bem construídos e protegidos da história do Direito. Quando o direito à moradia entra no cenário, ele se vê frente a um adversário muito poderoso.
É uma disputa entre um conceito que tem algumas décadas de vida contra outro que tem algumas centenas…
Sim. Historicamente, como é que se pensava o acesso à terra? Normalmente através de contrato de compra e venda ou doação.
Ou conquista…
Sim, ou por conquista. Mas, pelo Direito, a ideia é que eu adquiro uma propriedade por meio de um contrato ou de uma doação. A função social da propriedade é um conceito do século XX. O Direito brasileiro estabelece quais são as sanções. Eu posso ser punido por não cumprir a função social nos termos definidos no Direito. Eu não perco a propriedade ocupada porque o ocupante demonstra que eu não cumpri a função social da propriedade. O resultado de uma ação de reintegração de posse não pode ser que o juiz decida que o proprietário vai perder a propriedade para os ocupantes porque ficou comprovado que ela não cumpre função social. Essa punição não existe no Direito brasileiro. O poder público pode desapropriar uma área mas, na prática, essa é uma esperança vazia por conta do custo. Desapropriar na cidade é muito caro.
Teremos um novo cenário agora. A Lei 13.465, sancionada na semana passada, chamada de “Lei da Grilagem”, é muito ambiciosa no que diz respeito à regularização de ocupações urbanas. Ela pode ajudar a decidir de outra forma processos judiciais envolvendo ocupações urbanas.
Acho que estamos começando a equilibrar um pouco mais a relação entre propriedade e direito à moradia, mas continua sendo um passo ambicioso aceitar que a ocupação de uma propriedade privada ou pública tenha como resultado final do processo a transferência da propriedade para os ocupantes ou a permanência deles a outro título. Voltamos de novo aí à questão do Estado de Direito. Se você concede em um caso, tem que conceder em todos, a não ser que se adote critérios que não são fáceis de serem selecionados.
Alguns integrantes de movimentos sociais e professores especializados no tema dizem com toda razão que a política habitacional mais eficiente no Brasil, nos últimos 50 anos, é ocupação. Em termos quantitativos, então, não há nenhuma dúvida disso. As pessoas, hoje, têm acesso à propriedade basicamente por que ocupam. O programa Minha Casa Minha Vida melhorou o cenário, mas creio que, percentualmente, não arranhou o problema. O número de moradias oferecidas é muito aquém da demanda, mesmo neste período quando o programa funcionou em sua máxima extensão. É um problema real que ainda não encontrou uma solução jurídica que não é fácil de encontrar. Continua sendo muito difícil que um juiz de Direito diga a um proprietário que ele perdeu a sua propriedade porque os ocupantes demonstraram que ela não cumpria a sua função social e eles têm o direito de ficar onde estão.
A mesma dificuldade parece se verificar com o poder público que, em geral, se recusa a fazer acordos com ocupantes. No caso de áreas públicas que não estão sendo utilizadas, poderia se pensar em aproveitá-las para fazer políticas públicas habitacionais.
Esse poderia ser um critério e é um critério que os próprios ocupantes propõem. Eles perguntam ao município, por exemplo, qual é o uso que será feito de uma determinada área. Às vezes, o município tem um uso pensado, como é o caso daquela região da Manoel Elias, Protásio Alves e Baltazar, que tem como destinação futura a instalação de equipamentos de habitação popular. Mas há casos de áreas públicas onde o município não tem qualquer perspectiva de uso. A lei nova abre essa possibilidade, pois criou um instituto que permite ao poder público dar a propriedade aos ocupantes de terras públicas que estavam lá desde o dia 22 de dezembro de 2016. Essa lei tem o espírito de fazer uma espécie de anistia geral. Se essa lei não for questionada no Supremo, ela permitirá que o poder público dê a propriedade de uma área pública aos ocupantes sem sequer pedir permissão à Câmara de Vereadores.
Nos processos em que busca solucionar conflitos, o Cejusc não entra em debates polêmicos como o referido acima sobre a relação entre o direito à propriedade e a função social da propriedade. Esse debate não deveria ser feito em algum lugar no âmbito do Judiciário, considerando a crescente pressão social por moradia e, por outro lado, uma não menos crescente pressão de grandes grupos imobiliários em disputa por áreas das cidades?
Em algum momento do processo, sim. O juiz, na hora em que vai conceder ou não uma liminar, pode fazer essa discussão mais ampla.
Mas isso, em geral, parece que não acontece…
Depende do juiz, mas você tem razão. Em geral, não acontece. Em geral, as pessoas não sabem o que está acontecendo na cidade. Quem mora em Porto Alegre não conhece a realidade de grande parte da população da cidade. Não sabe o que é viver numa ocupação, numa casa de uma ocupação, o que é ter água por mangueira, ter luz de gato, o que é viver vendo os filhos no meio do esgoto. Não tem a menor ideia. A tendência é tratar as ocupações como um caso de esbulho. Até pela configuração geográfica da cidade, Porto Alegre dificulta a visualização dessa realidade. Dependendo de onde mora, você pode passar a vida inteira em Porto Alegre sem jamais ter qualquer contato com uma ocupação, com exceção de uma outra que ainda existem em áreas mais centrais. Algumas desapareceram no contexto da Copa, como foi o caso da Vila Chocolatão.
A razão pela qual adotamos um modelo bem pragmático e resolutivo no Cejusc é tentar diminuir os pontos de tensão. O caso da Lanceiros Negros virou um problema político. A participação dos representantes da ocupação na audiência acabou sendo muito limitada porque eles queriam que a ocupação tivesse um impacto na política habitacional, algo que o Cejusc não tem condições de fazer. Ali é um espaço de conciliação, não de formulação de política habitacional.
A menos que o poder público, o Estado no caso da Lanceiros, tivesse disposição para negociar com os ocupantes…
Sim, mas aí não seria naquele espaço. Essa negociação teria que se dar em outro espaço, não necessariamente com a intermediação do Poder Judiciário. A sessão no Cejusc acontece no âmbito de processos onde há uma discussão judicial sobre posse. A tentativa sempre é buscar uma conciliação que permita manter as pessoas onde estão. Esse é o objetivo.
Na sua avaliação, quais os resultados que o Cejusc conseguiu nestes últimos dois anos, dentro desse espírito de buscar mecanismos de conciliação que permitam as pessoas permanecerem onde estão?
O principal resultado foram os casos onde os ocupantes conseguiram se organizar e comprar a área. Tivemos, inclusive, compras de áreas grandes envolvendo valores altíssimos. O Campo da Tuca é um exemplo disso. Foi a maior e mais simbólica negociação que a gente fez até agora, envolvendo algo entre 3 e 4 mil moradores. Não é fácil organizar uma cooperativa ou associação e conseguir a adesão de tanta gente. Estamos falando de áreas caras. As ocupações em Porto Alegre, até pela configuração geográfica da cidade, não são exatamente na periferia. É questionável inclusive seguir falando em periferia no caso de Porto Alegre, que se tornou uma cidade muito compacta. Essas áreas de ocupação são sempre valorizadas o que inviabiliza a compra à vista pelos ocupantes. Acabamos trabalhando com parcelamentos de 5 ou 6 anos e até mais. Esse é o melhor resultado que obtivemos até aqui.
Outro resultado foi o adiamento de reintegrações de posse em muitas ocupações, algumas sem data marcada. O critério internacional número um para lidar com ocupações é propiciar segurança na posse. Quando a gente diz que uma reintegração vai ser adiada por dois anos não estou dando segurança na posse, mas ao menos destensiono a vida da pessoa neste período. Há decisões que são de governo. Só o prefeito pode dizer: ok, darei autorização aos advogados da prefeitura irem às audiências e fazerem alguns acordos para manter as pessoas em determinada ocupação. Isso é uma decisão que só o prefeito pode tomar. A Prefeitura anterior não tomou e a atual ainda não tomou.
Há várias coisas sobre as quais precisamos pensar. Precisamos, ter, por exemplo, mecanismos de reassentamento mais definidos. Quando se esgotarem todas as possibilidades de acordo entre ocupantes e proprietário e se decidir por uma desocupação, o que se faz com as pessoas que serão retiradas dessa área. O princípio básico aí, do meu ponto de vista, tem que ser tentar de todas as maneiras evitar que essas pessoas virem sem-teto. Isso ficou claro no caso da Lanceiros Negros. A juíza mandou cumprir a reintegração, o Estado tinha a decisão na mão e tinha a Brigada, mas não tinha nenhum local para colocar as pessoas. Não tinha e não se preocupou em ter. Uma decisão da corte sul-africana diz que entre dar uma moradia definitiva e não dar nenhuma há um universo de soluções.
Como avalia o papel dos movimentos sociais de luta por moradia que vêm crescendo em todo o país e tensionam as fronteiras desse debate sobre a relação entre direito de propriedade e função social da propriedade?
Eu avalio a questão da mordia, no espaço onde a vivencio, como um problema gravíssimo. Acho que esses movimentos sociais são muito importantes. Eles são muitos e falta coesão entre eles. Em alguns casos têm agendas diferentes e há também uma certa disputa entre eles. Mas são muito importantes. Eles representam uma demanda muda, gravíssima e que vai se aprofundar. Dos anos 60 para cá, nós tivemos um processo muito rápido de urbanização. As cidades se encheram de gente sem que houvesse garantia de acesso à moradia. E não há uma preocupação em atender essas pessoas. Entre o final do BNH e o programa Minha Casa Minha Vida não houve política habitacional. Os resultados do Minha Casa Minha Vida, criado em 2009, estão aparecendo agora. Em alguns casos, ele está criando mais problemas que resolvendo.
Por isso, estou convencido de que precisamos desses movimentos para que eles dêem voz às pessoas e para que lutem no Executivo, no Legislativo, no Judiciário, no Ministério Público e na Defensoria Pública, com apoio de advogados, com líderes locais, regionais e nacionais. Grande parte da violência brasileira está sendo produzida como reflexo da violência que existe neste universo de ausência de moradia. É uma violência você crescer no meio do esgoto, tomando água de mangueira. O adensamento em muitas áreas é brutal e as pessoas vivem numa precariedade total. Eu esperaria mais organização desses movimentos, mas sei que é difícil. As ocupações têm que ter as suas lideranças. O que me parece é que há uma dificuldade de articular as lideranças de cada ocupação com movimentos mais abrangentes. Mas não consigo imaginar movimento social mais importante hoje no Brasil do que o movimento de luta por moradia.
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‘Não consigo imaginar movimento social mais importante hoje do que o de luta por moradia’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU