11 Julho 2017
Após mediar encontro sobre "Caminhos da Esquerda", livro de Ruy Fausto, Marcelo Coelho escreve sobre pontos de discordância com o filósofo, como a busca por algo além da social-democracia. Ele também diverge de um dos debatedores, o economista Samuel Pessôa, para quem FHC foi tão de esquerda quanto Lula.
A reportagem é de Marcelo Coelho, publicada por Folha de S. Paulo, 09-07-2017.
Participei como mediador de um debate sobre o novo livro do filósofo Ruy Fausto, "Caminhos da Esquerda" [Companhia das Letras, 216 págs., R$ 39,90, R$ 27,90 em e-book].
Não tenho nenhuma prática nesse tipo de coisa e cometi algumas gafes com os colunistas da Folha participantes do evento, o sociólogo Celso Rocha de Barros e o economista Samuel Pessôa. Além disso, interrompi meio sem cerimônia o próprio Ruy Fausto quando já estava passando da hora de terminar o evento.
Aproveito este artigo para pedir desculpas aos três e adianto outras pelas divergências que, engasgadas na hora, apresento por aqui.
Autoridade indisputada em matéria de Karl Marx –sobre quem escreveu "Sentido da Dialética" (Vozes)–, Fausto tece, em seu novo livro, uma crítica ao que chama de patologias da esquerda.
A primeira seria uma tolerância persistente aos modelos totalitários surgidos com as revoluções russa, chinesa ou cubana.
A segunda seria o apoio a soluções populistas, seja em sua versão forte, a de Hugo Chávez, seja em sua versão fraca, a de Lula (PT).
A terceira seria o abandono de qualquer perspectiva anticapitalista, expressa em alguns partidos socialistas europeus e, aqui, no que ele classifica como adesismo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) ao sistema da economia globalizada.
Os debatedores não tinham reparos a fazer quanto aos dois primeiros focos da antipatia manifestada por Fausto; a discussão se deu em torno de Fernando Henrique e da social-democracia.
Celso Rocha de Barros expressou sua desconfiança quanto a uma proposta que se queira anticapitalista, vendo nisso o risco de se estimularem aventuras econômicas irresponsáveis –veja-se o que escreveu nesta Folha em coluna na última segunda-feira (3).
Samuel Pessôa já tinha desenvolvido fortes argumentos contra as teses de Fausto desde que o filósofo publicou, na revista "piauí", o artigo que daria origem ao livro lançado agora.
Resumindo ao máximo, Pessôa considera que não houve ruptura significativa entre os dois governos Fernando Henrique e o primeiro mandato de Lula: ambos foram social-democratas, podendo ostentar números equivalentes no que tange aos gastos sociais, ao poder de compra do salário mínimo e à redução das desigualdades econômicas.
Passo a alguns comentários sobre essa discussão.
Concordo fundamentalmente com Celso Rocha de Barros e Samuel Pessôa. Não vejo no horizonte da esquerda nenhuma proposta que me faça desejar algo além da social-democracia. Não se trata, aliás, de um sistema estático, que se considere perfeito.
Novos passos no sentido da igualdade e da humanização das relações entre as pessoas são sempre possíveis e, normalmente, ocorrem pelo próprio processo das lutas sociais. Não obedecem a planos concebidos a priori.
Para acreditar em algo mais que isso, seria necessário ter um diagnóstico preciso a respeito da inviabilidade do sistema capitalista a médio prazo, coisa que volta e meia os teóricos marxistas tentam, com grande acúmulo de insucessos.
Em seu livro, Fausto critica o adesismo social-democrata ao capitalismo porque faltaria legitimidade ao sistema: seguindo Marx, para quem tudo se baseia na apropriação indevida dos frutos do trabalho assalariado, Fausto considera que uma proposta de esquerda teria de buscar formas de produção diversa; cita experiências cooperativistas como exemplo.
Falar na ilegitimidade do capitalismo, contudo, não garante que nos afastemos do campo social-democrata, que se define pela adoção de métodos gradualistas e pela recusa em formular modelos prontos de anticapitalismo.
A meu ver, algum reconhecimento da ilegitimidade do capitalismo está presente em qualquer social-democracia –quando se empenha, por exemplo, em taxar fortemente as fontes de riqueza que não têm origem no trabalho.
Nossos direitistas poderiam se inspirar, aliás, nas furibundas críticas suscitadas pela adoção do Imposto de Renda como forma de tributo permanente, não faz tanto tempo assim.
Um imposto sobre a renda "fortemente progressivo" (assim como a educação pública gratuita e a abolição do trabalho infantil) constava entre os poucos pontos programáticos do radicalíssimo (na época) "Manifesto Comunista" de Marx e Engels, de 1848.
O problema está em outro lugar. Uma das grandes seduções do marxismo revolucionário estava no fato de que, além de criticar a legitimidade do capitalismo, também punha em xeque a questão de sua funcionalidade, se posso dizer assim.
Não só era impossível justificar a apropriação privada do trabalho de muitos como também o sistema estava condenado a não funcionar. As crises do capitalismo iriam agravar-se a ponto de paralisar toda a produção; à ideia de que o sistema era ilegítimo somava-se a de que era irracional e autodestrutivo.
Nasce daí minha estranheza com relação ao livro de Ruy Fausto. Seria de esperar alguma análise (ainda que sumária) das condições reais da economia, da sociedade e da política antes de uma apresentação daquilo que a esquerda há de ser.
Do jeito que está, "Caminhos da Esquerda" se aproxima da mera expressão de preferências pessoais. Neototalitarismo? Não quero. Populismo? Nem pensar. Social-democracia? É pouco.
Seria preciso partir, entretanto, das contradições e das promessas de uma realidade determinada. Nenhuma proposta política nasce do vazio –nem da simples constatação de fracassos anteriores.
Concordando, até aqui, com Celso Rocha de Barros e Samuel Pessôa nas suas reservas ao anticapitalismo de Ruy Fausto, eu próprio me assustei, no lançamento do livro, quando me vi envolvido numa brusca divergência com o segundo –e temível– debatedor.
Fortíssimo nos números, e dando razão a seu comentário de que os esquerdistas precisam aprender matemática, Pessôa prova que o governo Fernando Henrique Cardoso agiu como autêntico social-democrata (tanto quanto Lula) no que se refere a políticas de redistribuição de renda. Dentro das circunstâncias, é claro –como todo bom social-democrata.
Dessa ótica, o governo de Fernando Henrique terá sido tão de esquerda, ou tão moderadamente de esquerda, quanto o de Lula.
Pareceu-me a opinião de alguém cujo gosto pela matemática se arrisca a ser excessivo. A dimensão simbólica, a atitude, o horizonte em que se insere uma ou outra medida de governo também contam.
Discutir o que é "ser de esquerda" e "ser de direita" exigiria outro artigo, é claro. Envolve atitudes e visões de mundo, para além de medidas concretas em políticas públicas.
Concentro-me aqui numa questão mais modesta, e não menos real. Por que um governo como o de Fernando Henrique, apesar de suas semelhanças com o de Lula, não "pareceu" tão de esquerda?
Os petistas também correram para a direita (e como!) para garantir a eleição de 2002. O processo não foi diverso daquele adotado pelo próprio Fernando Henrique em sua biografia política. Salta aos olhos, entretanto, quem se sentiu mais à vontade no papel.
A mensagem de FHC não estava na redenção dos excluídos, mas na superação da herança varguista. Foi o presidente da estabilidade econômica e das privatizações. Não digo, volto a lembrar, que isso seja necessariamente "de direita", nem que inflação e estatização sejam "de esquerda" –a meu ver, não. Cito o que o próprio Fernando Henrique dizia, numa entrevista à Folha em 13/10/1996. Perguntavam-lhe: "De quem é o regime?".
Resposta: "Indiscutivelmente, o regime está rearticulando o sistema produtivo do Brasil. Portanto ele está dando possibilidade a que os setores mais avançados do capitalismo tenham prevalência. Seguramente ele não é um regime a serviço do capitalismo monopolista nem do capitalismo burocrático, mas daquele que é competitivo nas novas condições de produção".
Fernando Henrique continuava: "Mas ele não é só isso. Ele incorpora massas ao consumo. E, nesse sentido, ele é socialmente progressista –progressivo, progressista, como queira. (...) Mas também não vou dizer que ele seja dos excluídos, porque não tem condição de ser. Aspiraria a poder incorporar mais, mas não posso dizer que seja. (...) Temos que aumentar a dinâmica para incorporar o máximo".
O então presidente tinha, como sabemos, horror à demagogia e ao populismo. De Lula não se pode dizer o mesmo.
Gostando ou não dessa atitude, seu efeito político e simbólico foi outro. FHC se dirigia a um público diferente do de Lula e, acredito, via seu papel histórico de forma diversa. Fora do que dizem as estatísticas, o Bolsa Família e outras iniciativas de Lula surgiram não como uma "progressiva incorporação das massas ao consumo" (o Plano Real fez isso), mas como uma elevação de muitos ninguéns a um status mínimo de cidadania.
Fernando Henrique poderia ter dado o dobro do que Lula deu, mas os beneficiários de seus programas não se reconheceriam em alguém que se diz, em primeiro lugar, representante de quem "é competitivo nas novas condições de produção".
Competitividade e modernização conflitam, em alguma medida, com a extensão dos direitos trabalhistas e o atendimento a demandas de sindicatos. São dois lados da moeda; nenhum pode existir isoladamente. Mas também não me parece correto dizer que se trate tudo de um lado só.
Os moderados sempre se confundem perto do centro; a vida política, entretanto, os afasta e os legitima conforme valores diferentes. E valores são uma coisa, números são outra.
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O Governo FHC foi tão de esquerda quanto o de Lula? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU