16 Junho 2017
O título Laerte-se, documentário que retrata o cotidiano de Laerte Coutinho, transforma em verbo o nome da cartunista mais conhecida do Brasil. Segundo uma de suas diretoras, a colunista do EL PAÍS Eliane Brum, a palavra foi ganhando esse peso ao longo do processo de filmagem. Assim, “laertar-se” é sinônimo de se questionar, de se colocar em dúvida, de pisar em um terreno em que não há certezas e que qualquer enquadramento será, sem dúvidas, precipitado.
A reportagem e de André de Oliveira, publicada por El País, 15-06-2017.
Depois de quase 60 anos vivendo como homem, depois de uma carreira amplamente conhecida e de três filhos e três casamentos, Laerte se apresentou ao país como mulher. Desde 2009, quando tocou no assunto pela primeira vez em uma entrevista a uma revista cultural, contudo, muita coisa mudou. De lá para cá, sua trajetória pessoal identitária foi retratada em reportagens, entrevistas e exposições; ela virou símbolo transgênero no país com mais transexuais assassinados por ano no mundo, segundo a ONG Transgender Europe; sua opiniões viraram referência sobre o assunto; e todo seu processo de "investigação" de si própria foi alterado por ela própria inúmeras vezes.
No início, quando tudo era novidade, chegou a se incluir na categoria crossdressing, que basicamente significa se vestir com elementos normalmente associados a outro gênero. Com o tempo, percebeu que a classificação não era capaz de abarcar sua identidade. Passou a se reconhecer como trans, mas hoje acha melhor fugir de enquadramentos de gênero que, segundo ela, só acabam por oprimir homens e mulheres. Em 2013, quando Laerte-se começou a ser filmado, ela se interrogava sobre se deveria ou não fazer um implante de seios. No final, depois de muito questionar se isso a faria se sentir “mais mulher”, decidiu por não decidir.
Para Lygia Barbosa da Silva, que dirige o documentário ao lado de Brum, a decisão (ou não decisão) de Laerte acabou por reforçar mais ainda a mensagem de Laerte-se: a de que estamos em construção contínua. “O corpo não se encerra, não fica completo em nenhum momento”, diz Brum. Ao apontar para isso, a partir das próprias decisões da cartunista, o filme, segundo as diretoras, também ganhou outra dimensão. “Não é um filme sobre gênero. É sobre as várias camadas da vida, sobre desfazer as barreiras dos carimbos”, diz. O longa-metragem, primeiro documentário brasileiro da Netflix, feito em parceria com a produtora Tru3lab, está disponível para 190 países do mundo no serviço de streaming.
Logo na abertura de Laerte-se, uma troca de e-mails entre Brum e Laerte deixa claro o espaço em que a história irá se desenrolar: a casa da cartunista. Laerte estava reticente em abrir as portas para a equipe de filmagem, que, na verdade, resumia-se a Brum e Lygia. As diretoras enxergaram na questão a possibilidade de entrar em um ambiente mais íntimo da cartunista, de fugir de um retrato de uma pessoa que, nos últimos anos, foi retratada inúmeras vezes, de inúmeros modos. Um jeito de se aproximar mais dela. Laerte topou e, assim, o filme ganhou ares rotineiros, cotidianos: é o cuidado com seu gato, a relação com a amiga manicure que ainda a chama de “o” Laerte, o relacionamento com os filhos, pais e netos. Tudo entremeado por suas questões.
“Tudo com ela acontecia num palco. Nosso desafio era encontrar uma outra nudez. Uma outra nudez do corpo e uma outra nudez das palavras. Laerte nos presenteou com sua confiança. E entregou-se. Ela também estava curiosa com o que descobriria de si. Quando finalmente entramos na sua casa, sabíamos que havíamos dado um passo decisivo para dentro”, relata Brum. Assim, as perguntas que as entrevistas colocam e que ela própria se faz – o que é ser mulher? ter uma par de seios vai me fazer mais mulher? eu sou uma farsa? realmente tenho algo a dizer? – a conduzem por um caminho labiríntico, que também é o do documentário.
“Ninguém sai de fato de um labirinto. O labirinto é aquele que se carrega”, diz Brum ao, de certa forma, responder às questões que o filme e a própria Laerte deixam em aberto. Entre o cotidiano da cartunista, imagens de arquivos e uma e outra cena com mais pessoas, o filme retrata uma Laerte que sempre está se questionando. “A inquietação dela com as questões de gênero e com o corpo é também é uma investigação artística”, diz a diretora. Os desenhos da cartunista, a verve política deles e o modo como mudaram ao longo dos anos também está presente no documentário. “Não é um filme feito para dar respostas que apaziguem quem o assiste, mas um filme que permite inquietações novas a quem estiver disposto a se arriscar a elas. Não queremos explicar as questões, mas complicá-las. E cada um vai ter as suas próprias”, diz Brum.
Na abertura do filme, Laerte reclama em um tom sem rancor: "Por que estou sendo alvo dessa câmera? Eu tenho uma certa resistência a me ver como objeto de investigação". Logo em seguida, diz que acaba respondendo às entrevistas, porque também tem interesse em responder. Em outro trecho, conta que por vezes sente que não tem nada a dizer e, de fato, em uma palestra retratada no documentário, acabou não dizendo nada, passando o microfone e se desculpando. Desde 2009, a trajetória da cartunista tem sido feita, como diz Brum, em praça pública. Se existe um possível cansaço de estar tanto tempo em evidência, "laertar-se" em público, para Laerte, é também ser ativista, posicionar-se. Em um país onde as questões de gênero tem gerado tantos embates, a questão LGBT talvez nunca tenha estado tanto em evidência. Laerte, sem dúvidas, faz parte disso.
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Laerte-se (ou questione-se se for capaz) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU