Por: João Vitor Santos | 03 Junho 2017
Os coletivos de grupos de crime organizado têm seus tentáculos espalhados pelos diversos espaços na geografia da metrópole, mas é na periferia e dentro do sistema carcerário que estabelecem seu quartel general. Isso não é dado ao acaso. “As redes prisionais e do crime costumam se apropriar, preferencialmente, de espaços e de pessoas vulneráveis que, devido à falta de alternativas, passam a ver no tráfico e na prática de atividades ilegais uma possibilidade de reconhecimento”, aponta a antropóloga Juliana Melo, em entrevista concedida por email à IHU On-Line. Segundo ela, a política de criminalização das drogas é outro elemento significativo nessa equação. “Além da disputa por territórios, por pessoas e recursos que estão fora e dentro da prisão, as organizações criminosas disputam a hegemonia do sistema prisional”, completa.
Assim, como o Estado de fato não se faz presente, acabam presos não só “criminosos”, mas toda a família. “As mulheres são as que lutam constantemente pela humanização dos seus parentes e o fazem oferecendo acolhimento durante as visitas, lutando por direitos e denunciando violações, bem como cuidando dos negócios, das crianças e daqueles que ficam nesse espaço liminar entre a rua e a prisão”, explica Juliana. Ou seja, nessa luta por dignidade para o detento e para manter a família, elas se veem envoltas na teia das facções. “Se muitas delas já eram vulneráveis antes da prisão de seus maridos ou filhos, ficarão mais vulneráveis ainda quando seus parentes estiverem presos, pois precisarão sustentar a ‘casa’ do lado de fora e garantir a vida de seus parentes na prisão”, sintetiza a antropóloga.
Juliana Melo | Foto: Arquivo Pessoal
Juliana Melo é doutora em antropologia social, com pós-doutorado pela Universidade de Brasília - UnB, onde pesquisou a situação de mulheres presas por entrarem na prisão portando drogas. Atualmente é professora adjunta do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Desde janeiro de 2017, vem apoiando familiares de presos após o massacre de Alcaçuz e aprofundando o debate sobre a relação entre justiça e criminalidade no país.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são e como compreender a lógica de grupos de crime organizado que atuam no Norte do Brasil? De que forma se inserem nas regiões mais periféricas das cidades?
Juliana Melo – E difícil compreender a lógica dos grupos de crime organizado no Brasil e mais difícil precisar quantos seriam exatamente, pois esses grupos se constituem a partir de alianças, “contratos tácitos” e rupturas que se diferenciam no tempo e regionalmente. A questão é bastante dinâmica e envolve redes complexas que, inclusive, podem (ou não) estar distantes geograficamente. Em geral, contudo, o surgimento de facções criminosas está diretamente vinculado à situação prisional, e o embrião de formação de grupos como o Comando Vermelho ou o Primeiro Comando da Capital nasce de situações de opressão extrema vivenciadas em prisões do Rio de Janeiro e São Paulo, especificamente. A formação desses grupos expõe a falência do sistema prisional e surge como resultado disso. É também uma estratégia usada pelos presos especialmente para denunciar maus-tratos, violações e desrespeito para com seus familiares de modo geral, sobretudo durante as revistas vexatórias.
Aqui no Rio Grande do Norte, por exemplo, antes de acontecer o massacre do dia 14 de janeiro no Presídio de Alcaçuz, os presos tinham feito uma greve de fome reivindicando melhores condições e denunciando maus-tratos para com eles e suas famílias. Suas queixas, porém, não conseguiram romper os muros prisionais e chamar a atenção da sociedade local – ao contrário dos episódios que envolveram a decapitação e o esquartejamento de pessoas durante o massacre de janeiro. Ou seja, nesse caso, a violência serviu também como uma forma de comunicar algo e foi possibilitada pela organização em torno de um “comando”, de um “grupo” com maior poder de resposta e capacidade de reação a um sistema que classificam como de opressão. Assim, o fato de se organizarem e deterem condições de realizar ataques a ônibus e assaltos a carros-fortes pode ser visto como uma reação e demonstra o poder de força e de organização de indivíduos que se unem em busca de melhores condições de vida e pelo seu reconhecimento, bem como de suas famílias, como pessoas dignas.
Por outro lado, em um momento que o crime ganha feições empresariais, fazer parte de uma facção significa ter poder e lutar pela disputa por territórios, recursos, rotas de fuga e pela gestão dos próprios ilegalismos e dos lucros que proporcionam. A política de criminalização e de “guerra às drogas” é parte fundamental dessa estrutura, pois grande parte dos recursos advindos das atividades criminosas provém do tráfico e da política de criminalização das drogas, sendo que muitos “soldados do crime” enxergam no tráfico não só uma possibilidade de emprego, mas também de reconhecimento como gente, por poder usar roupas de marca, “ostentar”, usar uma arma na cintura e ser disputado por inúmeras mulheres. Em determinadas situações, por outro lado, fazer parte de um grupo criminoso é também a possibilidade de ter proteção em determinadas situações. Como é possível perceber entre membros do PCC, se uma pessoa vinculada ao grupo é presa e se pagou as mensalidades e foi batizada como “irmão”, pode ter acesso a um advogado de defesa ou pedir ajuda material para a família no lado de fora. Desse modo, as organizações criminosas parecem se configurar como uma espécie de guarda-chuva que abriga um número cada vez maior de pessoas em situação de vulnerabilidade, garantindo-lhes, ainda que momentaneamente, maneiras de conseguir recursos necessários para a reprodução da vida, para a “ostentação”, mesmo que momentânea, e proteção para si, quando inserido na prisão, e para os familiares, que estão do lado de fora.
No caso de Natal, especificamente, a formação e o fortalecimento do Sindicato do Crime estão diretamente vinculados a toda essa conjuntura e resultam, também, de um rompimento de um contrato tácito entre o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital no ano de 2005. A partir do rompimento dessa aliança, que estabelecia certas regras e determinava territórios de atuação para cada grupo e seus aliados, passou a haver uma intensa disputa pelo mercado do crime e grupos minoritários que, se antes conviviam entre si, passam a disputar os mesmos territórios e recursos e a se matar mutuamente. Nesse processo, como pude observar em Natal, amigos que antes realizavam práticas em conjunto passam a ser rivais e essa situação se expande em espirais que afetam todos, inclusive seus familiares.
Aliás, no caso específico do Sindicato do Crime, além de ser uma reação ao sistema como um todo, estamos diante também de uma reação dos grupos locais à expansão das redes do PCC no Estado, aqui considerado como o “talibã do crime” por cobrar altas mensalidades e por levar às últimas consequências os deslizes cometidos como, por exemplo, usar crack.
Do mesmo modo, se em janeiro de 2017 o governo do RN não reconhecia a presença do Sindicato do Crime, hoje o grupo ocupa um lugar central no discurso midiático. Assim sendo, é possível que futuramente o grupo deixe de existir ou que tenha sua organização fortalecida. Rupturas, por outro lado, podem dar origens a cisões e inclusive novos grupos. Ou seja, é muito difícil definir quantas organizações e quais são essas organizações, pois estamos diante de processos extremamente dinâmicos e complexos, quando envolvem a situação prisional; a busca de reconhecimento por pessoas que estão inseridas nos lixões urbanos, que são nossas periferias, prisões e centros socioeducativos; processos pela disputa de territórios e recursos advindos do tráfico de drogas e outras atividades ilegais altamente lucrativos e disputados. Ainda que estejamos diante de histórias variáveis e vinculadas a eventos particulares (como a relação entre o PCC e o Massacre do Carandiru, por exemplo), é possível evidenciar como as organizações estão ocupando e se nutrindo nos espaços de miséria deixados pelo Estado.
IHU On-Line – Quais as particularidades desses grupos do Norte brasileiro em relação a outros baseados mais no Sudeste, como Comando Vermelho - CV e Primeiro Comando da Capital - PCC?
Juliana Melo – Em geral, o modus operandi desses grupos parece bastante semelhante, ainda que se afirmem como variados e que se diferenciem em termos de organização, captação de recursos e inserção social. É comum ainda que todos esses grupos tenham um Estatuto e definam não só regras morais que cabem a todos os membros de uma ou outra facção, mas também que organizem uma rede de relações fundamentadas na ideia do parentesco. Assim, se há um “comando”, esse comando está organizado em torno de uma rede de “irmãos”, “primos”, “cunhados” e assim sucessivamente. É comum ainda que esses grupos elaborem discursos imagéticos que visam destruir a reputação do outro e encontrar uma justificativa moral para a adesão (ou repúdio) de determinados grupos ou organizações.
Nesse sentido, se considerarmos o que aconteceu depois do massacre em Alcaçuz, há pessoas vinculadas ao Sindicato do Crime que afirmam que o PCC aceita, localmente, pessoas que cometeram crimes sexuais, o que reputam como uma das práticas criminais mais ofensivas e reprováveis. Nesse sentido, é como se os membros do PCC não “andassem pelo certo”. Isto mostra que aderir a uma facção ou outra não envolve apenas uma questão estratégica e pragmática, mas também valores morais que são defendidos (ou não) por membros dessas organizações a partir de estatutos, “salves” e modos de proceder considerados corretos.
Não obstante, paradoxalmente, é importante notar que essas imagens são construídas mutuamente e estão o tempo todo sendo disputadas entre os membros de diferentes grupos ou organizações. Assim, se os membros do Sindicato do Crime acusam membros do PCC de aceitarem pessoas que cometem crimes sexuais em Natal, é comum ouvir esse mesmo discurso entre membros do PCC que falam sobre os “soldados” do Sindicato. A estratégia de desumanização do outro, por esse princípio, é semelhante.
Por outro lado, tanto em um grupo como em outro, a violência e a habilidade para o uso da força são fundamentais para garantir a liderança de determinadas pessoas. Desse modo, como posso comprovar localmente, tanto o PCC como o Sindicato do Crime adotam práticas de execução, esquartejamentos e decapitações que são semelhantes entre si e usam essas práticas para demonstrar e medir forças entre si e com o governo. Ademais, ambos os grupos estão fazendo uma gestão da miséria e se fortalecendo a partir de situações que envolvem a criminalização da pobreza, a falta de acesso à justiça e a seletividade penal e policial. Isto é, embora não seja uma pesquisadora de facções como o PCC e o Comando Vermelho particularmente, acredito que – a despeito de diferentes capacidades de organização, captação de recursos e de armas, por exemplo – as estruturas são semelhantes e tendem a se reproduzir em diferentes organizações.
IHU On-Line – Como se dão as disputas entre a polícia e os grupos organizados locais e outros grupos que visam inserir-se na região? E como o sistema carcerário se insere enquanto ingrediente nesse cenário de disputas?
Juliana Melo – As disputas entre grupos organizados se dão de diferentes formas, mas sempre associadas a questões de ordem mais estrutural. As redes prisionais e do crime costumam se apropriar, preferencialmente, de espaços e de pessoas vulneráveis que, devido à falta de outras alternativas, passam a ver no tráfico e na prática de atividades ilegais uma possibilidade de reconhecimento e de obtenção de uma vida digna tendo em vista os parâmetros definidos em nossa sociedade de consumo.
A política de criminalização das drogas e da pobreza no país, por outro lado, alimenta o tráfico de drogas e de armas (consequentemente) e perpassa a organização desses grupos em diferentes sentidos e contextos. Além da disputa por territórios, por pessoas e recursos que estão fora e dentro da prisão, as organizações criminosas disputam a hegemonia do sistema prisional. Ora, no ambiente prisional são aglutinadas pessoas consideradas indignas, tratadas de forma indigna e oprimidas tanto pelos sistemas de justiça criminal como também por outros presos. Embora tenham que pagar por seus crimes com a pena da privação de liberdade, muitas têm seus direitos humanos elementares violados sistematicamente na prisão e são submetidas a um contexto de humilhação e ociosidade.
Abandonados nos "caldeirões do diabo" superlotados que são nossas prisões, principalmente os “novatos” precisam aprender rapidamente as estratégias para sobreviver na prisão e ao mesmo tempo manter suas famílias (e vice-versa) em segurança do lado de fora. Afinal, se o Estado, com suas práticas inquisitoriais, macula direitos individuais e coletivos, é comum que os presos vivenciem situações de opressão e violência por parte de seus próprios companheiros na prisão. Nesse sentido, e diante dos absurdos do sistema prisional brasileiro (que inclusive já colocou uma mulher em uma cela com 35 homens), é comum que os presos precisem adotar estratégias para que permaneçam vivos na prisão, o que, às vezes, significa aderir a um grupo ou outro.
Por outro lado, os presos são deixados à própria sorte e são eles os responsáveis pela sua socialização e realização de trabalhos essenciais no interior do presídio (como a distribuição de alimentos, de remédios e de informações). Essa situação também fortalece as organizações criminosas e dá espaço para que se constituam. Além disso, em nossos presídios, encontramos desde pessoas que não foram julgadas a pessoas que são serial killers, que passam a conviver e trocar experiências entre si. Para aqueles que chegaram agora na prisão, se são vistos como não “malandro”, os desafios podem ser piores, pois podem ser oprimidos e obrigados a assumir crimes que não realizaram, entre outas questões.
Complementa o quadro o fato de que há um número crescente de pessoas que são presas com pouca quantidade de drogas e classificadas como traficantes, já que a Lei antidrogas de 2006 não tipificou o que caracterizaria o tráfico de drogas e o seu uso apenas. Ao contrário de uma política de saúde pública, a resposta ao tráfico é o aprisionamento e a punição. Como resultado, tivemos um aumento de quase 30% de “traficantes” presos nos últimos 11 anos. Porém, muitos eram e são apenas usuários de drogas e, em alguns casos, dependentes químicos. Para esses a situação é ainda mais delicada, pois precisaram lidar com a dependência química e transformar-se em robôs que fazem “qualquer coisa” em troca de drogas.
Vale dizer, ainda, que, em determinadas situações, é o próprio Estado que impõe e fortalece a identificação desses grupos. Novamente, se considerarmos o que aconteceu em Alcaçuz, percebemos claramente como pessoas que antes não eram filiadas a uma facção ou outra estão sendo cooptadas para fazerem parte de uma facção e, de fato, precisaram fazer isso para se manterem vivas nos primeiros dias de massacre, quando foram deixadas para que se matassem mutuamente. Hoje, estão separados pela própria Direção do Presídio em alas a e b, identificadas como sendo do PCC e Sindicato, o que significa ignorar os evangélicos e os membros da massa, isto é, que não se identificam com nenhuma facção.
O quadro, como um todo, favorece a organização dos grupos criminosos e demonstra como há uma relação de continuidade direta entre o mundo da prisão e o mundo fora das prisões. Há inúmeras formas de cooptar cada vez mais pessoas para fazer parte dessas organizações criminosas, cabendo analisar a questão em maior densidade e evitar reiterar essas dinâmicas através de uma postura omissa em relação ao sistema prisional como um todo.
IHU On-Line – De que forma é possível compreender a lógica de cooptação das comunidades que vivem nas periferias das cidades do Norte e Nordeste por parte de grupos associados ao crime organizado?
Juliana Melo – A desigualdade social não é determinante para que uma pessoa seja considerada um criminoso ou não. Todavia, a falta de políticas de inclusão social e de uma educação cidadã, aliada a uma justiça que é seletiva e desigual, voltada para a captura de pessoas pobres, negras e periféricas e que reconhece que as pessoas executadas em nossas favelas e comunidades são apenas “traficantes”, bem como reitera o mito de que “bandido bom é bandido morto”, constitui um terreno favorável para a reprodução e fortalecimento de organizações criminosas no Brasil. Como falei anteriormente, acredito ainda que a política de guerra às drogas vigente em nosso país contribui para que esses “bens” tenham um preço elevadíssimo no mercado e fomenta a reprodução de um quadro de guerra que envolve facções rivais, o Estado e a sociedade como um todo.
Assim sendo, a regulamentação desse mercado, somada a uma política de desencarceramento daqueles que ainda não foram julgados e que cometeram crimes de menor potencial ofensivo, seria uma estratégia fundamental para reverter esse quadro. Poderia, assim, promover mudanças significativas nas dinâmicas atuais que favorecem, em diferentes regiões do país, as facções criminosas.
O crime organizado no Norte e no Nordeste, assim como em outras partes do país, está diretamente vinculado a essas questões e diz respeito centralmente às falências estruturais do sistema de justiça criminal, à degradação de nossas prisões e à disputa pelo mercado e redes do tráfico. É preciso considerar ainda noções que envolvem o conceito de honra e virilidade, bem como estar atentos a disputas simbólicas. No caso de Natal, membros do Sindicato dizem estar defendendo o território em que se vive e de suas famílias e, nesse sentido, afirmam que estão se organizando para impedir a expansão de grupos criminosos “de fora” que, com suas regras e hierarquias, tentam impor um modelo de sociabilidade específico e colonizar o crime local. Nesse sentido, por exemplo, cobram mensalidades muito caras para o contexto local e querem tomar à força o espaço dos “irmãos”.
IHU On-Line – Qual o papel da família e das mulheres nas periferias dominadas por organizações associadas ao tráfico de drogas, essencialmente nos contextos em que muitos homens estão presos?
Juliana Melo – O papel das famílias e das mulheres é fundamental na condução da vida tanto nas áreas da periferia quanto no sistema prisional. As mulheres, aliás, são verdadeiras guardiãs de seus parentes, sejam esposos, filhos, pais e irmãos, e não desistem deles quando estão na cadeia, nem mesmo quando são ameaçadas em sua integridade física e emocional. Como venho observando no meu contato com parentes de presos de Alcaçuz nos últimos meses, pude perceber que as mulheres são as que lutam constantemente pela humanização dos seus parentes e o fazem oferecendo acolhimento durante as visitas, lutando por direitos e denunciando violações, bem como cuidando dos negócios, das crianças e daqueles que ficam nesse espaço liminar entre a rua e a prisão.
Se os presos estão sendo ameaçados de morte, elas se postam diante dos presídios e fazem vigílias mesmo que levem spray de pimenta no rosto e sejam ameaçadas com balas de borracha. Se os presos comem uma comida que nem os porcos apreciariam, elas se dedicam a cozinhar algo que possa fazer com que eles se sintam momentaneamente em casa e minimamente confortados. Se seus maridos e filhos estão fedendo por falta de acesso a produtos de higiene, elas os abraçam no dia de visita e os chamam de “amor”, de “guerreiros”. Se direitos de seus parentes presos são sistematicamente violados, elas se mobilizam para ir aos órgãos competentes e lutar pela efetivação dos direitos, afirmando que na “prisão tem pai de família, que na prisão tem gente que tem família”. Ou seja, as famílias e especialmente as mulheres têm um papel central da humanização daqueles que são constantemente animalizados na prisão. Elas são centrais nesse processo de estar, sobreviver e tentar sair da prisão.
Se há essa dimensão de ordem subjetiva e moral, que acaba configurando padrões de gênero específicos, as famílias e as mulheres são também centrais para a sobrevivência dos presos na prisão, pois são elas que possibilitam que tenham acesso a uma escova de dentes, a um sabonete, a um lençol e assim sucessivamente. A vida na prisão, aliás, é muito cara, justamente porque o Estado não provê o mínimo. Por deixar que os presos conduzam atividades como a de entrega de comida e de remédios, as famílias assumem um papel central para fazer essa economia da miséria circular. Assim, um único cigarro, na prisão, pode ser vendido por mais de 5 Reais e, invariavelmente, há preços estabelecidos para você dormir em um local melhor, ter direito a uma cama e assim sucessivamente. Nesse sentido, se as mulheres são centrais para “puxar cadeia junto”, é comum que se tornem ainda mais vulneráveis do que já são quando seus parentes são presos.
Aliás, durante minha pesquisa de Pós-Doutorado junto às mulheres presas por levarem drogas para a prisão na condição de visitantes no Presídio Feminino do Distrito Federal, percebi como nenhum preso vai preso sozinho. É comum encontrar não somente famílias inteiras presas, como também observar que essa condição pode perpassar diferentes gerações. As mulheres e as crianças, nesse sentido, parecem se constituir como a parte mais vulnerável do sistema. Se muitas delas já eram vulneráveis antes da prisão de seus maridos ou filhos, ficarão mais vulneráveis ainda quando seus parentes estiverem presos, pois precisarão sustentar a “casa” do lado de fora e garantir a vida de seus parentes na prisão, que é muito onerosa. Muitas só terão como fazer isso assumindo as “bocas” deixadas por seus maridos, e grande parte delas será capturada pelo sistema e aprisionada, o que deixará ainda mais vulneráveis seus filhos, muitas vezes crianças e menores de idade.
Trata-se, portanto, de um ciclo sem fim e que tem contribuído para o vertiginoso crescimento das taxas de encarceramento feminino no Brasil. É bastante sintomático que aproximadamente 70% da população feminina aprisionada esteja associada ao tráfico de drogas, embora ocupem, em grande medida, os papéis hierárquicos mais baixos, qual seja, os de “mulas”, que são as primeiras a serem descartadas nas redes do tráfico. O paradoxal, aliás, é que, a despeito de todos os seus esforços para “zelar pela família” e “humanizar seus parentes presos”, uma vez presas, são completamente abandonadas.
IHU On-Line – Em que medida podemos considerar que o vazio do Estado, a morosidade da Justiça e a ineficácia do sistema carcerário contribuem para o fortalecimento do chamado “poder paralelo” nas comunidades de periferia?
Juliana Melo – O vazio do Estado ou, antes, a falta de políticas sociais inclusivas e apenas focadas na criminalização da pobreza e das drogas, está diretamente vinculado ao fortalecimento do poder paralelo. As facções se alimentam da gestão da miséria deixada pelo Estado e se alimentam de um mito que associa justiça e punição e que se espraia nas áreas de periferia e em nossas prisões. A sensação de impunidade e a desconfiança em relação aos mecanismos de justiça oficiais também são parte desse processo, assim como a seletividade policial e a forma como policiais entram nas periferias e nas prisões, tratando pessoas despossuídas como não dignas. Tudo isso corrobora para esse processo de fortalecimento de um poder paralelo que não apenas disputa o acesso a territórios e bens extremamente valiosos, como as drogas ilícitas, mas também oferece uma alternativa de reconhecimento para que determinadas pessoas, ainda que por um breve período de tempo, se sintam como “gente”. A violência policial, a execução de companheiros e de “irmãos do crime”, que é parte desse cotidiano, também alimentam ciclos de ódio, marcados pelos sentimentos de honra e vingança que se espalham socialmente.
Entretanto, é preciso que se considere um fato: se prendemos muito no Brasil (já somos uma das maiores populações carcerárias do mundo), prendemos mal. Isto é, prendemos muitos “soldados” e os transformamos em chefes do tráfico nas prisões pela falta de estrutura delas, bem como não investimos nos serviços de inteligência e na investigação de crimes de homicídio e de estupro, por exemplo. Esse quadro, somado ao vazio do Estado, à morosidade e seletividade da Justiça, e aliado à falência estrutural do sistema prisional, são ingredientes centrais para explodir o barril de pólvora.
IHU On-Line – A senhora trabalha com pesquisa etnográfica nos ambientes do Judiciário e do sistema carcerário. O que essas incursões nesses campos lhe têm revelado e de que forma contribuem para a compreensão do contexto da vida nas periferias?
Juliana Melo – Há uma relação direta entre desigualdade social, sistema carcerário e acesso à Justiça no Brasil. A seletividade da Justiça brasileira, assim como da polícia no Estado, somada a um processo de criminalização da pobreza, está na base dessa construção e ajuda a transformar mitos em profecias. Ainda que seja importante reconhecer que pessoas pobres têm escolhas e a possibilidade de romper as armadilhas que a vida do crime impõe, há um processo constante de captura dessas pessoas pelas redes do crime, do tráfico, o que culmina no quadro de superencarceramento que vivenciamos atualmente. Nesse sentido, um menino negro morador da favela, desde que nasce, é representado como um potencial bandido e será remetido diversas vezes a essa condição quando seu direito à inclusão em uma boa escola for negado; quando for espancado pela polícia sem motivos aparentes devido à sujeição criminal; quando for levado à prisão sem julgamento ou acompanhamento jurídico adequado; quando vir seus parentes próximos serem mortos e executados sem que as “forças da lei” sejam implementadas.
Todas essas questões estão intimamente relacionadas e precisam ser avaliadas se queremos compreender minimamente as dinâmicas do crime organizado e o crescimento da violência em nossas cidades.
IHU On-Line – A senhora também trabalha com territórios indígenas. Que associações são possíveis fazer entre a ineficiência do Estado em reconhecer e garantir os direitos dos povos originais e a constituição das comunidades pobres de periferias das cidades do Norte e Nordeste?
Juliana Melo – No meu caso, a pesquisa com populações indígenas sempre esteve vinculada à luta por direitos territoriais e de reconhecimento. Em minhas experiências etnográficas junto a povos indígenas, sobretudo em processos de regularização territorial, pude comprovar in loco situações marcadas pela violação de direitos e por dramas humanitários diversos. Também pude perceber a falta de acesso à educação, à saúde, à dignidade de populações indígenas inteiras. Percebi ainda problemas surgidos em virtude de processos de urbanização e inserção de índios na cidade. Em minha pesquisa com os Baré urbanos em Manaus ou com os índios Karajá da cidade de Aruanã, em Goiás, pude ver a “captura” de diversos indígenas para redes que envolvem a criminalidade, prostituição, drogadição e até vivenciei casos de execução e abandono de crianças.
Em Manaus, também percebi que indígenas passavam a fazer parte das “galeras”, e em Aruanã, os índios mestiços, não aceitos nem na cidade, nem na aldeia, eram representados como marginais e eram figuras “carimbadas” nas cadeias locais. Embora não tenha estudado o caso, há relatos de indígenas, sobretudo no Norte do país, que estão inseridos em rotas do tráfico de cocaína internacional e estão ficando à mercê de organizações criminosas e/ou sendo cooptados por essas redes. Aliás, há um grande número de indígenas presos e essa é uma pesquisa que precisa ser realizada em profundidade, cabendo notar que não existe um censo a esse respeito (as prisões não identificam os indígenas e muitos se negam a dizer que são índios para não serem ainda mais marginalizados).
Se existem essas correlações, bem como é possível constatar a presença de indígenas em prisões brasileiras, cabe notar que há uma relação de imagens estereotipadas sobre pessoas privadas de liberdade e indígenas que precisa ser observada e que as vincula. Ambos os grupos são remetidos à condição de marginalidade, o que justifica a sujeição a situações marcadas pela violação de direitos elementares. Por outro lado, no âmbito desse imaginário, tanto as prisões como as aldeias indígenas são vistas como lugares distantes e exóticos. São também lugares perigosos que despertam a curiosidade, mas não sustentam o desejo em um conhecimento mais aprofundado. Em maior ou menor grau, por outro lado, tanto indígenas como presos parecem estar mais próximos de uma condição de animalidade e não humanidade – o que justifica o tratamento indigno a eles destinado em nosso país e nosso desejo em não compreender suas dinâmicas.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Juliana Melo – Gostaria de acrescentar que cabe à sociedade rever sua postura de omissão em relação à questão prisional e discutir os processos de seletividade da Justiça. Cabe desconstruir o mito de que a justiça brasileira é neutra e que bandido bom é bandido morto, pois essa perspectiva apenas permite a reprodução de imagens estereotipadas e ajudam a reproduzir uma estrutura que só gera violência, tanto nas ruas como nas prisões. É preciso reconhecer que a existência e a luta pela dignidade nas prisões não anula a luta por dignidade de melhores condições de trabalho por carcereiros, por exemplo. É preciso perceber que, a despeito do medo, da raiva do outro e da desigualdade que marca nosso país e viola direitos de todos os cidadãos quando lhes nega o acesso a uma escola cidadã, quando mantém a permanência de um modelo punitivo e de encarceramento em massa de desiguais, a luta pela dignidade da vida deve ser para todos.
Não podemos continuar aceitando um modelo de justiça criminal que mata lentamente e animaliza o outro (nesse caso, aquele que está preso e suas famílias) e que, historicamente, tem gerado mais problemas que soluções. Já somos uma das populações carcerárias com maior crescimento por ano no mundo, cabendo reconhecer que as pessoas reagem a situações de opressão como podem. A organização dos grupos criminosos, nesse sentido, deve ser vista como uma estratégia de reação e de resistência. Nesse sentido, ao nos mobilizarmos por condições de vida mais dignas dentro e fora da prisão, podemos diminuir a guerra que estamos vivenciando.
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A conexão entre a cadeia e a periferia no aprisionamento das famílias. Entrevista especial com Juliana Melo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU