12 Mai 2017
Fabiana Rousseaux propõe que a decisão da Suprema Corte tenha falhado porque chegou em um limite impossível, o ponto constitutivo da subjetividade social. Sergio Zabalza analisa o contexto de um projeto político que pretende bloquear e apagar as vias pelas quais toda a comunidade processa e manifesta o mal-estar que a distingue como um coletivo humano.
Fabiana Rousseaux é psicanalista, trabalha na assistência às Vítimas de Violações dos Direitos Humanos e coordena os Territórios Clínicos da Memória.
Os depoimentos são publicados por Página/12, 11-05-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
"O que acontecerá agora, com genocidas à solta, caminhando entre nós? Tenham cuidado, por favor", foi a frase que se repetiu esta semana em centenas de lares, onde pais e mães anônimos, já bem mais velhos, voltaram a sentir o terror, a insônia, a angústia, o choro, ao pedir cuidado aos seus filhos e netos.
Vítimas pensaram em pedir custódia ao Estado frente às ameaças de morte de seus torturadores. A cena Dantesca dos genocidas soltos nas ruas, transitando ao lado dos corpos que torturaram, ameaçando os corpos que sequestraram e violentaram, ou roçando nos corpos dos familiares daqueles que desapareceram.
Diante desta inefável decisão judicial, o terror voltou a estar nos poros e na respiração das pessoas. Isto é o que define esta decisão. A condição real do seu retorno é imprevisível, indescritível, contundente, irrepresentável, inesquecível, patente. Isso é o que acontece quando um Estado irresponsável e antidemocrático, em nome da lei, chega a um limite. O mesmo limite que surgiu das entranhas da dor, mas também da indignação e da resistência à crueldade nefasta que provoca a impunidade da decisão da Suprema Corte de Justiça da Nação Argentina (CSJN) do "dois por um", relegando os crimes contra a humanidade à categoria de delitos comuns. Pisando nos túmulos que ainda não receberam nomes, mas não sem ter mercantilizado a memória, a decisão é um insulto à lógica de reparação das vítimas desses crimes transnacionais, transgeracionais e permanentes. Não sem ter tentado difamar os/as desaparecidos/as, empregando a lógica temporal extrativista do mercado que indica o esquecimento do que aconteceu, como se isso fosse possível, esquecê-lo de modo comercial e rápido porque a pesada herança da Memória com letras maiúsculas (neste caso, é com maiúsculas) é de toda a sociedade e não de um partido político ou de outro. Mas a temporalidade extrativista não se detém em construções temporárias nem morais, muito menos em desaparecidos: 30.000? Nem ideia! Te devo isso... O trabalho dos direitos humanos irá acabar com eles, as cartas foram postas na mesa. Tudo isso foi suportado pelas vítimas, sobreviventes, suas mães, pais e avós, seus familiares e também a toda a sociedade (tocada pela ética).
Produtos desta mesma decisão judicial, nos últimos dias também li cartas e mensagens que surpreendentemente alguns dos filhos e filhas de torturadores queriam enviar às pessoas torturadas pelos seus próprios pais. Não é que não ocorre habitualmente, é um fato novo, que fala da profundidade da ferida, da profundidade do ataque que representa um crime de Estado, do terror transpirando por outros poros, os próprios poros. Filhos que a partir das sessões do julgamento souberam pela primeira vez sobre o que seus pais tinham feito quando eles eram crianças. Há anos já sabemos que alguns desses filhos se suicidaram, outros pediram para trocar de sobrenome e para isso apelaram aos juízes também.
Isto significa que, quando um Estado ultrapassa as fronteiras e tenta destruir ou reescrever um legado de Justiça profanando a memória de suas vítimas, os efeitos não são tardam em chegar e sempre são incalculáveis.
Há três operações lógicas - dois atos e um efeito - que construímos socialmente e parece-me que podem nos orientar na leitura do que aconteceu esta semana, como resposta social a esta sentença.
1) O corpo de Videla - representante do genocídio -, já foi velado e enterrado enquanto cumpria a prisão perpétua imposta pelo poder judiciário da Argentina. Isso significa que não se pode passar por cima destas sentenças, porque os efeitos simbólicos da inscrição social da lei sobre esse corpo nunca poderão se desinscrever. Esta dimensão, que parte do cálculo do direito, mas impacta diretamente na construção social e subjetiva do crime massivo, reconfigura a essência ontológica do tecido social.
2) É inevitável que os véus da administração empresarial que governa as regras tenham caído há algum tempo e muito precocemente e que este ato de anistia em nome da justiça evidencie uma política de Estado mais focada na administração da história do genocídio do que nas políticas de memória. No entanto, uma sociedade que passou por um impressionante processo de justiça como a nossa construiu um novo nome durante esse mesmo processo e já não podemos passar de uma política pública centrada na memória, na verdade e na justiça ao cinismo como política de Estado. Segundo ato coletivo que não pode ser apagado.
3) O efeito: por trabalhar neste campo de intervenção, há algum tempo já sabemos da complexidade que a trama criminal do Estado provocou na sociedade e, por esta razão, permanece sempre uma advertência de cuidado, porque o encontro com o impossível cedo ou tarde chega.
Na era do discurso obsceno (fora de cena) do neoliberalismo implacável, que desconhece absolutamente os limites do corpo social, rejeitando, humilhando e submetendo-os, esta decisão judicial foi falha porque chegou nesse limite impossível. Tocou no exato ponto constitutivo da subjetividade social da Argentina.
Inesperadamente retornou aquela linguagem silenciosa do "não vi nada, nunca ouvi falar" de uma comunidade que conviveu com terror, com sequestros e desaparecimentos, mas agora de uma maneira invertida. Invertida pelo efeito de uma decisão que pretende dar a justiça por terminada, produzindo o surgimento de uma resposta social para fazer falar inclusive os próprios inadvertidos. A sociedade, desavisada do crime naquela primeira época, agora é noticiada (e sacudida) pelo retorno da impunidade sob o status de lei.
Para concluir, as tentativas de relativização do que aconteceu em uma profanação franca da memória do governo macrista chocou-se com o impacto da resposta digna de uma sociedade que já enterrou o genocida condenado, que já escreveu seu novo nome no contexto internacional e por isso não pode voltar atrás. Uma decisão errônea de que os responsáveis precisam dar conta de alguma forma. É como o sujeito que apela para a psicanálise, que deve se responsabilizar também pelo que diz desconhecer. Neste ponto, a operação não é a mesma, é claro. Não se trata de uma falta de conhecimento, mas de uma pretensão de "construir impunidade sem um sujeito responsável", embora o movimento tenha atingido os limites do impossível.
Senhor presidente e senhores juízes: que nenhum genocida seja solto. Nunca mais.
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Por Sergio Zabalza, psicanalista.
A decisão judicial pela qual a Suprema Corte concede o benefício do "dois por um" aos condenados por crimes contra a humanidade excede amplamente as questões partidárias, eleitorais, salariais, os confrontos pontuais dentro e fora das instituições políticas, sindicais, comunitárias, religiosas, sanitárias, etc., e qualquer outro conflito que faça parte da vida da comunidade. Trata-se de uma decisão que, em um paradoxo sinistro, denigre o lugar e a função daquilo que torna a vida em comum possível: a justiça. Por conseguinte: mais do que uma decisão/falha da administração de justiça, trata-se de uma renúncia à sua função. O que está em jogo, então, é a própria vida da comunidade enquanto tal, a possibilidade de uma convivência civilizada, isto é, esse reconhecimento que faz do respeito ao semelhante a condição de nossa própria integridade física, psíquica e espiritual. Marx dizia que "de certo modo, acontece com o homem a mesma coisa que acontece com a mercadoria. Como não viemos ao mundo com um espelho na mão, e tampouco afirmamos, como o filósofo fichteano, 'eu sou eu', o homem se vê primeiramente refletido apenas em outro homem. Somente através da relação com o homem Paulo como sendo seu igual que Pedro relaciona-se consigo mesmo como um homem. Mas com isto o homem Paulo, da cabeça aos pés, em sua corporalidade Paulina, conta para Pedro como se manifesta a forma do gênero masculino"1.
Desde já, esta escandalosa decisão não vem do nada. Muito mais do que uma mera mudança de administração, no dia 10 de dezembro de 2015, ocorre a entrada formal na instância máxima do poder político argentino de um projeto que visa suprimir a vocação para o debate, os laços de solidariedade, a capacidade de desejo e a paixão na vida dos argentinos, com a monstruosa premissa segundo a qual tudo aquilo que não está em sintonia com o normal ou com a ordem natural das coisas - leia-se: o mercado - é ideologia descartável. Este projeto pretende bloquear, suturar e apagar as vias pelas quais toda a comunidade processa e manifesta o seu desconforto que distingue um coletivo humano de uma colmeia ou uma máquina. Trata-se de um projeto cujo efeito enlouquecedor explica o negacionismo que distingue seus principais funcionários.
Basta inferir que há poucos dias atrás esta sociedade, oprimida pela escalada femicida, explodia de indignação pelo juiz que, contra tudo o que indicavam as perícias, havia soltado um assassino femicida. Fiel à sua demagogia punitiva, naqueles dias o governo enviou ao Congresso um projeto para limitar as excarcerações, enquanto o coletivo Ni Una Menos e outras organizações advertiam a inutilidade da iniciativa. Agora, esse mesmo governo que prometeu segurança, paz e harmonia celebra - de maneira mais ou menos oculta e dissimulada - a decisão judicial que concede o benefício do "dois por um" aos condenados por crimes contra a humanidade. Poucas situações como a que ilustra nossa atual cena nacional representam a esquizofrenia a que o esvaziamento do discurso nos condena. E para constar, não nos referimos tanto à especial experiência desses sujeitos cujo corpo não se amarra com a palavra, mas ao cinismo flagrante com que o discurso oficial ameaça deixar os cidadãos e a sua boa fé perplexos, sem resposta, isolados e atônitos.
Mais uma vez as testemunhas de julgamentos de crimes contra a humanidade constituem os depoimentos mais clarividentes do que é real no social. Quem teve a oportunidade de nos últimos dias dialogar - seja em um consultório ou durante uma simples conversa - com essas pessoas cujos relatos de experiências no campo possibilitaram as condenações genocidas, talvez coincida em assinalar o efeito que a notícia da sentença imprimiu nos corpos: uma esmagadora sensação de peso, signo inequívoco da palavra que ameaça soltar-se do corpo. Não é por acaso, se algo se distingue do trauma é a impossibilidade de eliminar, por meio do simbólico, esse resto que cada ser falante canaliza e orienta como pode de acordo com os recursos à sua disposição: seja o trabalho, amor, a arte ou a luta pela justiça. De alguma forma, com seu aprendizado já avançado, Lacan ressalta que "a angústia está localizada em um lugar diferente do medo. É o sentimento que surge dessa suspeita que nos assalta, que nos reduzimos a nosso corpo"2, ou seja, reduzir-nos à nossa condição de meros objetos, como atestam as declarações desumanas das torturas. Esta decisão judicial, que reinstaura a impunidade na Argentina, abre as portas para os piores fantasmas: basta evocar Julio López, a testemunha que desapareceu depois de fornecer uma declaração que permitiu a condenação do Padre Won Wernich e o ex-comissário Etchecolatz.
Não é necessário elaborar razões e fundamentos para argumentar quanto cuidado requer o nosso valente e despedaçado povo que concordou em fornecer seus depoimentos. Trata-se de vislumbrar em que consiste esse resguardo. No que resta de Auschwitz, Giorgo Agamben desenvolve a diferença entre testemunha e superstes. O primeiro é aquele que, por colocar alguma distância em relação aos fatos, consegue fornecer uma versão que resguarde sua integridade psíquica. O superstes, por outro lado, é quem, por estar ainda presente nos fatos, não consegue encontrar certa distância do seu relato fidedigno: fica tomado de tal forma que o trauma nefasto sobrevém, atualizado, em sua subjetividade. Por isso, para Lacan, esta acepção de testemunha remete ao mártir do inconsciente. Até onde não somos todos um pouco superstes? Se estamos tratando de evitar a repetição de um passado de horror, é necessário o compromisso que a comunidade toda deve assumir para proclamar a mais decidida rejeição à impunidade.
1. Carlos Marx, El Capital, México, Siglo XXI, trad. Pedro Scaron, p. 65
2. Jacques Lacan, “La Tercera” en Revista Lacaniana N° 18, Buenos Aires, EOL, 2015, p. 27.
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O texto a seguir é um pronunciamento da Associação Psicoanalítica Argentina e da Associação Psicanalítica de Buenos Aires acerca da decisão judicial "dois por um" da Suprema Corte de Justiça da Nação Argentina.
"Memória, Verdade e Justiça são três conceitos e três valores estreitamente relacionados que provaram ser cruciais para todos os esforços direcionados para a superação de traumas, nos níveis pessoal, social e coletivo.
Há muitas situações traumáticas como esta na história e na realidade imediata de toda a humanidade, com sua presença óbvia e inocultável no passado recente de nosso país e de nossa sociedade, a qual tem trabalhado, com êxitos e adversidades, mas, ao mesmo tempo, traçando um percurso que parecia consolidado depois da vigência plena e concreta dos valores indissociáveis da Memória, Verdade e Justiça, como única forma, em nossa opinião, de encarar os efeitos dos terríveis fatos, tão próximos no tempo, que marcaram de forma indelével nosso corpo social.
Acreditamos que a forte e indissociável relação entre "Memória, Verdade e Justiça" é a única forma válida de reparar os danos e de evitar a sua repetição. Neste aspecto, a Argentina adquiriu um lugar proeminente e exemplar por sua forma de lidar com eles, algo reconhecido mundialmente e assumido como próprio pelo conjunto de nossa sociedade.
Entendemos que a recente resolução da máxima autoridade do poder do Estado responsável por administrar a Justiça significa uma quebra deste processo, que põe em perigo o que foi alcançado.
Aqui não está em jogo nem a memória, nem a Verdade, já que os fatos imputáveis são provados e não estão postos em questão, mas a justiça sim, quebrando também, desse modo, a solidariedade imprescindível entre memória, verdade e justiça e, assim, esvaziando-as de conteúdo. Não nos referimos à justiça como um procedimento formal, algo que escapa à nossa competência (sobre o qual exprimem-se vozes mais autorizadas), mas à Justiça como valor fundamental para toda sociedade que valoriza o respeito e o reconhecimento dos direitos humanos.
Como psicanalistas, sabemos que é fundamental não só a maneira como as coisas são ditas e feitas, mas também como elas são recebidas e escutadas. Acreditamos firmemente que, numa situação como a presente, a resolução da Suprema Corte está sendo recebida e ouvida pela sociedade como um ato de injustiça, algo muito mais grave por vir da mais alta autoridade encarregada pela gestão e preservação da justiça.
Portanto, por seu significado e por seus possíveis efeitos, queremos reunir a nossa voz às muitas que estão se fazendo escutar para expressar nossa preocupação e nossa rejeição da resolução da Suprema Corte de Justiça da Nação Argentina".
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Argentina. A sentença que chegou ao limite. Duas perspectivas sobre o impacto na subjetividade social da sentença que permite a libertação de repressores - Instituto Humanitas Unisinos - IHU