06 Mai 2017
“O debate televisivo entre o liberal Emmanuel Macron e Le Pen deixou a sensação de uma tentativa frustrada de transformar o encontro democrático em uma luta de boxe em que um dos lutadores, Marine Le Pen, recorrendo a intimidações e obscenidades, procurou apenas o knock out (nocaute), ao mesmo tempo que revelou a natureza autoritária da Frente Nacional”, escreve Eduardo Febbro, em artigo publicado por Página/12, 05-05-2017. A tradução é de André Langer.
Em algumas horas, a campanha da ultradireita veio abaixo. Mentiras no mais exato estilo de Donald Trump, vulgaridade, sarcasmos e violência, incompetência temática e desconhecimento espectral das rodas da economia mundial, a candidata da extrema direita, Marine Le Pen, obscureceu as perspectivas que ela mesma havia iluminado. A dinâmica que a tinha levado ao segundo turno das eleições presidenciais estilhaçou-se no final do debate entre os dois candidatos que precede a eleição propriamente dita.
O debate televisivo entre o liberal Emmanuel Macron e Le Pen deixou a sensação de uma tentativa frustrada de transformar o encontro democrático em uma luta de boxe em que um dos lutadores, Marine Le Pen, recorrendo a intimidações e obscenidades, procurou apenas o knock out (nocaute), ao mesmo tempo que revelou a natureza autoritária da Frente Nacional. A sociedade testemunhou um acontecimento impensável: o desmascaramento, ao vivo, de Marine Le Pen. Em duas horas e meia, a candidata da ultradireita destruiu a paciente empresa de desdiabolização que havia empreendido com sucesso nos últimos anos.
A imprensa radical de direita, Minute, Valeurs Actuelles, a estritamente conservadora, Le Figaro, Le Point, L’Express, de centro, Le Monde, os inclassificáveis restaurados como Libération ou Le Nouvel Observateur, todos constatam com horror o lamentável e sem precedentes espetáculo proporcionado por Marine Le Pen durante o debate. Comparada com as vulgaridades retóricas de Donald Trump, Marine Le Pen é retratada pelo jornal Le Monde (editorial) como “a digna campeã de um extremismo disposto a tirar proveito de todos os medos, a vasculhar em todas as fraturas e a atiçar os fantasmas”.
Le Pen permitiu-se, ao vivo, marcar outro desafio histórico: fez uma acusação nascida pura e exclusivamente na internet, falando sobre a existência de uma conta offshore nas Bahamas ligada a Macron. Nunca, até agora, uma intoxicação dessa envergadura tinha se infiltrado em uma campanha presidencial. O “vazamento” – com supostos documentos e tudo o mais – foi publicado pelo portal 4chan, um esconderijo improvável dos supremacistas e da ultradireita norte-americana (alt-right) conhecido por sua virulência e pela propagação de mentiras. 4chan, com o hashtag em inglês, #MacronCacheCash, lançou a falsa acusação com a expressa intenção de “desencorajar” os eleitores franceses” a votarem no Macron.
A candidata frentista repetiu a estratégia trumpista do já famoso “aí há algo raro” com o que ela insinuou que Macron sonegava impostos mediante os circuitos offshore. Para a França, isso é loucura. Alguns analistas se perguntam se a senhora Le Pen, certa da impossibilidade de derrotar o seu adversário, não se vestiu de diabo para provocar uma onda de abstenções ou votos em branco. O enigma, por enquanto, é insolúvel.
Esse hoje obsceno e grotesco espetáculo político contrasta com a infinita serpentina de ideias e argumentos que enchem os espaços da imprensa. Um filósofo, Jean-Claude Monod, agradece ao casal Klarsfeld (sobreviventes do Holocausto e caçadores de nazistas), aos “antigos resistentes e deportados” que recordaram o que foi o último Executivo de extrema direita que governou a França já todos aqueles que, desde a extrema esquerda até mais ao centro, decidiram seu voto por Emmanuel Macron.
Outro, um jornalista do Libération (Patrick Sabatier), compara a eleição presidencial de domingo, 07 de maio, com a batalha da Porta Negra com que, através da luta com Sauron, representando as forças do mal, termina a trilogia O Senhor dos Anéis. O jornalista escreve: “pensemos na França como a Terra do Meio e a eleição como uma batalha em que está em jogo a alma e a sobrevivência da França”.
Um grupo de historiadores membros do Comitê de Vigilância sobre o Uso Público da História (CVUH) rebela-se contra as manipulações da “Frente Nacional e sua candidata, que não param de instrumentalizar a história da colonização, da imigração, da deportação e da exterminação dos judeus, da Ocupação, do protestantismo, do Islã e da Europa”.
Nas páginas do jornal comunista L’Humanité, Pierre Laurent, secretário nacional do Partido Comunista francês, manifesta-se claramente contra a candidatura da ultradireita Marine Le Pen: “Não faremos o liberalismo retroceder deixando Le Pen prosperar”, disse Laurent.
A agitação, dessa vez, não está nas ruas, como em 2002, ano da primeira participação de um candidato da extrema direita (Jean Marie Le Pen) no segundo turno de uma eleição presidencial. A insurgência borbulha nas ideias. Artigos, tribunas, debates, reflexões multidisciplinares, entrevistas, editoriais, charges, a França do “esprit” mergulhou em massa na batalha contra as sombrias aventuras prometidas pela extrema direita.
A dramatização final abriu inclusive as janelas para que certa parte do mundo se fixasse na eleição. Não é por acaso se, no dia seguinte ao debate, outro homem do sistema, o ex-presidente norte-americano Barack Obama, pediu para votar em Emmanuel Macron. Em um vídeo de pouco mais de um minuto, Obama afirma que “diante da importância destas eleições, desejo que saibam que apoio Emmanuel Macron”.
O próprio ex-ministro de Economia grego, Yanis Varoufakis, emblema da insurgência contra as políticas da União Europeia e camisa de força do Eurogrupo, aderiu aos pró-Macron. Em um artigo publicado pelo Le Monde, Varoufakis criticou a posição de parte da esquerda francesa que se recusou a aderir a Macron.
O debate e sua onda de polêmicas terão tirado das dúvidas muitos daqueles que ainda tinham dúvidas sobre em quem votar. As pesquisas posteriores ao debate televisivo dão, de forma esmagadora, Emmanuel Macron como vencedor. Isso, naturalmente, não diminui a validade das dúvidas de uma esquerda que convoca para votar em um liberal como princípio para frear a extrema direita.
De fato, a ida de Marine Le Pen para o segundo turno já foi uma armadilha que fechou todo o espaço político francês. Fora de Macron na há opção digna, e isso já é um drama, tanto mais que o ex-ministro das Finanças de François Hollande negou-se a fazer a mínima concessão àqueles que, à esquerda, votarem nele tapando o nariz. Dali nascem as profundas reflexões e crônicas que justificam ou impugnam o voto a favor de um liberal nato.
O tom nauseabundo do debate teve um efeito de adesão que conseguiu vencer resistências legítimas. Marine Le Pen fez o contrário do que sua missão lhe impunha: em vez de “se presidencializar” rebaixou-se e colocou a coroa em seu adversário. Estranho rumo e impensável reencarnação de seu vociferante pai, Jean Marie Le Pen.
A filha, quando tomou o controle do aparelho da Frente Nacional, protagonizou um assassinato público de seu pai. No debate, encarnou a herança paterna em sua pior versão: “Um anel que governa todos eles, um anel para atraí-los, um anel para levá-los e uni-los através da escuridão”, escreve Tolkien em O Senhor dos Anéis. Talvez, a partir de agora, esse anel tão bem desenhado pelo fascismo francês comece a libertar aqueles que trancou em seu feitiço.
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Sarcástica, vulgar e violenta, uma autêntica Le Pen - Instituto Humanitas Unisinos - IHU