06 Abril 2017
Entramos na Semana Santa na ponta dos pés, com um coração cheio de expectativas, de esperanças, de sutis arrependimentos por não ter captado sempre o momento oportuno de uma tão grande graça como o tempo de Quaresma para nos impulsionarmos mais decisivamente para aquele coração que tanto nos amou.
A reflexão é de Roberto Mela, publicada no sítio Settimana News, 01-04-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto
Entramos com alegria difusa, porque percebemos que se trata das raízes da nossa vida espiritual, daquilo que mantém de pé o nosso caminho cotidiano, daquilo que dá sentido aos nossos sofrimentos e dificuldades. Sentimo-nos envoltos por um amor do qual não nos sentimos dignos, mas que está presente mesmo assim, queiramos ou não. Um amor obstinado, desarmado, pacífico, mas tenaz. Um amor que é um terremoto.
Jesus entra na cidade, entra no mundo um rei pacífico, mas decidido, humilde, mas determinado. E toda a cidade de Jerusalém sente fortemente o terremoto (cf. Mt 21, 10) que a está atravessando. As multidões se dispersam buscando uma direção, um guia. Sentem que aquele profeta gentil e humilde é um rei que pode mudar as coisas, trazer a paz aos seus dias desastrados e com pouca esperança. Deus se lembrou do seu povo e, do céu, manda o seu rei sobre um pacífico potro de jumento.
As multidões que precedem e seguem o pequeno cortejo invocam a salvação do Messias, do Ungido, do Enviado definitivo de Deus. Não o sentem como juiz dos últimos tempos, mas como o salvador mandado por Deus em seu nome para salvar definitivamente o seu povo.
As multidões cantam hinos, mas são como ondas. As multidões são volúveis, manobráveis. A sua invocação de salvação “Hôšî’āh nā’ / Salva, te pedimos” é sincera, tem um grande significado religioso, mas também expressa uma invocação clara de libertação política. O desejo gritado pelas multidões, porém, pode ser logo desviado e manipulado pelo poder religioso, apoiado pelo poder político.
O rei pacífico e humilde vai ao encontro serenamente daquilo que o Pai quiser para ele, para o máximo bem dos próprios irmãos. Um rei paradoxal, mas profético e esperado há séculos, desde os tempos do profeta Zacarias (cf. Zc 9, 9). O rei messiânico cavalga sobre as roupas das pessoas e os ramos das árvores (21, 8), mas o seu domínio não escraviza os súditos, mas é o calmo prosseguir do rei messias, servo de YHWH que toca a vida dos homens e a natureza toda, para transfundir neles aquilo que guia o seu coração.
Salva, te pedimos! Salva a todos, salva tudo! Toma nas mãos as nossas vidas, as dos nossos filhos. Joga para trás das costas os nossos pecados de orgulho e de autonomia vazia. O teu programa, ó rei, é estranho, paradoxal. Não sabemos se conseguiremos sempre ficar atrás de ti, estar do teu lado.
Salva, te pedimos! E, perto do fim da semana, debaixo da cruz do rei vitorioso, a terra será novamente abalada pelo terremoto (27, 51.54). Mas são apenas abalos premonitórios. O “grande terremoto” vai explodir dali a pouco, na manhã do terceiro dia (28, 2) e sacudirá profundamente vivos e mortos (28, 4).
Uma semana de abalos, mais do que suficientes para quem quiser entender, mudar de rumo e invocar também com maior força: “Hôšî’āh nā’ / Salva, te pedimos”.
Jesus vai enfrentar dias terríveis de sofrimentos físicos, morais e espirituais. O grito messiânico, político-religioso, gritado pelas multidões, não o engana. Ele conhece os seus sofrimentos, o seu desejo de vida boa, feliz, livre, amiga de todos. Por isso, treinou com muitas vigílias de oração noturnas e madrugadoras no ar enregelante da Galileia ou do deserto de Judá.
Ele murmurou o terceiro dos quatro poemas do misterioso Servo de YHWH (Is 42, 1-9; 49, 1-7 [13]; 50, 4-11; 52, 13-53,12) muitas vezes nas noites de oração, especialmente nos últimos tempos. Pai, desejo apenas ser um perfeito discípulo teu! O teu desejo está no meu coração. Obrigado por “despertar” (50, 4c) todas as manhãs o meu ouvido, por “abri-lo” bem para que não seja “obstruído pela gordura da cera” do orgulho e da obstinação (cf. Is 6, 10; Jo 12, 40). Sinto que não posso falar aos desanimados se, primeiro, não escuto longamente a tua palavra, se não me ponho em sintonia com o teu amor subversivo, estrábico e "estranhante". O teu coração privilegia os pequenos e os pobres, os refugiados e os “exodados” sem certezas. Tu segues com afeto apreensivo o caminho de tantos jovens em dificuldade, porque não veem um futuro de esperança e de trabalho pela frente, depois de tantos anos de estudo. Os amores frágeis, as vinganças assassinas que, por não saber renunciar, matam covardemente. Os filhos jogados em mares e desertos, mas também entre os bons salões de mamães e papais, tios e tias, primos e primas, avôs e avós. O teu coração pende por eles, porque são os filhos que mais precisam. Virar-lhes o rosto te custa muito.
Hoje, “aram-se” impunemente as costas das pessoas por 25 euros por dia. Tu, ó Senhor YHWH, me sustentas, és o meu conselheiro e a minha ajuda. Nunca perderá a face quem defende o rosto do irmão. Sou resistente, mas não mau. Face dura e decidida contra o mal, mas não intransigente com aqueles que, no momento, não entendem e batem forte. “Quem se cala e baixa a cabeça morre todas as vezes em que o faz. Quem fala e caminha de cabeça erguida morre uma vez só” (Giovanni Falcone). Eu não dobro a cabeça, mas a ofereço bem ereta, sem ódio. Podem até “arar” o quanto querem, mas, no fim, o mal será derrotado a partir de dentro pela semente boa que nasce morrendo.
Dai-me forças, Senhor YHWH, porque os meus discípulos são fracos, e as pessoas são volúveis e se vendem facilmente a quem grita mais alto, a quem fala “para o estômago”, a quem segue em frente por força de slogans enfáticos, estupidificados pelo fechamento mental.
Dai-me forças, Senhor YHWH, vem logo em meu auxílio, mostra onde está a justiça, o viver bem em aliança contigo e os irmãos.
Vem em meu auxílio, Senhor YHWH, com a tua força eu não recuo.
“Pequei, porque traí sangue inocente” (Mt 27, 4), diz angustiado Judas, “o entregador”. Ele volta “com pesar/arrependimento (metamelētheis)” para junto dos chefes dos sacerdotes e dos anciãos do povo, entrega-lhes as trinta moedas recebidas para trair o mestre e, abandonado cinicamente a si mesmo, vai se enforcar (cf., ao contrário, At 1, 18: “depois caiu de ponta cabeça, arrebentou-se”), depois de ter jogado as moedas no templo.
Na tradição judaica, provavelmente, esse gesto era um dos quatro com os quais um homicida podia reparar o seu pecado. Em todo o caso, o “dinheiro sujo” não pode ser reciclado. Aquelas moedas não podem ser colocadas no tesouro do templo para pagar nenhuma oferta ao Senhor. Os líderes religiosos reconhecem que são o preço com o qual eles mesmo pagaram a supressão de uma vida inocente, “espalhada” sem nenhuma culpa pessoal (26, 14-16). “É preço de sangue (timē haimatos)” (27, 6), mas também “honra/estima de sangue”.
Trinta moedas. Por tão pouco já tinha sido avaliado outro servo do Senhor YHWH no tempo dos profetas (cf. Zc 11, 12-13). Mas aquele “sangue/vida espalhada” inocentemente pelos inimigos e pelos traidores – “um dos doze!”, recorda com horror, mas honestamente, Mt 26, 14 – cumpre paradoxalmente o plano de Deus pelos homens que se tornaram “estrangeiros” para ele (Mt 27, 7).
Com o “preço do sangue” inocente, de fato, é comprado pelos chefes – de acordo com At 1, 18, pelo próprio Judas – um pedaço de terra na encosta ocidental do Vale da Geena, conhecido como “o Campo do oleiro” (cf. Jr 19, 1-6.12), que, a partir de agora, será chamado em aramaico “Hakeldama’ / campo do sangue”. Servirá para enterrar “os estrangeiros” (xenoi), pessoas não judias mortas durante a sua permanência em Jerusalém para negócios, para viagens, talvez também para uma oração no templo (permitida a eles no “pátio dos gentios”).
A perícope de Mt 27, 4-10 é muito preciosa. Ela é relatada apenas pelo evangelista Mateus. Normalmente intitulada como “Morte de Judas”, talvez ela mereceria uma intitulação mais densa teologicamente, já indicada por alguns estudiosos: “O campo do sangue”. Esse é o tema central do trecho, que o evangelista enfatiza com o emprego de muitos versículos e trazendo citações de cumprimento por ele empregadas em passagens importantes.
O sangue de Jesus Cristo vale um campo comprado no Vale da Geena, no monturo de Jerusalém. Mas o Senhor “tira do lixo o indigente, fazendo-o sentar-se com os príncipes e herdar um trono glorioso”, canta convencida Ana, a mãe do profeta Samuel (1Sam 2, 8). De fato, “o Senhor ama o forasteiro” (Dt 10, 18), “protege os forasteiros, mas abala o caminho dos ímpios” (Sl 146[145], 9).
O pacífico rei messiânico acolhe a invocação de salvação que lhe é dirigida pela multidão e enfrenta, com mansa determinação, dois processos injustos, concluídos com uma iníqua condenação à morte.
Mas, antes disso, Jesus deixou para trás de si, como legado antecipado aos discípulos, o sinal sacramental do seu corpo dado e do seu sangue derramado. Rezou com tristeza e angústia no Getsêmani, invocando a companhia dos três discípulos mais confiáveis, mas, no fim da luta, abandona-se com confiança à vontade do Pai (26, 42). Ele será condenado, mesmo sendo um “justo” (27, 19) – como reconhece a esposa de Pilatos, lembrada apenas pelo evangelista Mateus – pelo conjunto das suas pretensões messiânicas, pela liberdade com que interpretou com autoridade nova a vontade original do Pai ao dar a sua Torá, pelo percurso inovador que inaugurou para que os pecadores e os últimos possam encontrar o rosto misericordioso do Pai, relativizando – mas não desprezando – sacrifícios e cerimônias no templo.
O poder religioso o elimina como um perigoso concorrente, “por inveja” (27, 18), ele que é verdadeiramente “o rei de Israel” (27, 42). O poder político-militar entra na fila, livrando-se com pouco custo de um potencial subversivo, rotulando-o, ao contrário, com o título de suposto “rei dos judeus” (27, 11; 37).
O rei manso e pacífico é torturado, esbofeteado, ridicularizado e escarnecido na sua pretensão de ser Filho de Deus, amante dos homens, especialmente os mais desprezados e marginalizados. Já agora, ele é o Filho do homem, mas que não vem apenas no fim dos tempos como juiz e rei libertador, mas a partir de agora já está perto da humanidade ferida e escravizada à morte pelo mal que corre nas suas veias (cf. Hb 2, 14-15).
O Messias recolhe no odre do seu coração (cf. Sl 56[55], 9) a amargura pela fuga de todos os seus discípulos (26, 56) e as lágrimas amargas do arrependimento de Pedro (26, 74) que nega até que o conhece. Na cruz, no seu coração humano-divino, ele sente psicologicamente o afastamento do Pai, mas, no Espírito, eleva, no momento da passagem, o salmo de desolação e, ao mesmo tempo, de confiança: “Eli, Eli, lamá sabactâni?”, que significa: “Meu Deus , meu Deus, por que me abandonaste?” (27, 46; Sl 22[21], 1.22-23.32).
É o nosso afastamento do Pai que Jesus assume no seu amor e lhe pesa no coração. Deus Pai está ali, perto da cruz, sofre em silêncio amoroso perto do Filho amado (Mt 3, 17; 17, 5), assume em si a generosa assunção do nosso afastamento, beija-o levemente no coração com o sopro do Espírito. Não parece, mas é tudo verdade aquilo que dizem, zombando, os chefes dos sacerdotes, com os escribas e os anciãos: “Confiou em Deus; que Deus o livre agora, se é que o ama! (Sl 22, 9). Pois ele disse: ‘Eu sou Filho de Deus’” (27, 43). O Filho confiou. O Pai o ama. O Pai libertou-o, suscitando no Filho um sim de vida pelos seus irmãos.
Na morte do Filho, o terremoto sacode a terra (27, 51.54), porque o amor do Inocente já desceu sobre os seus irmãos, e nenhuma cortina do templo separa mais Deus do contato imediato com o seu povo, pecador, mas santo. Com ele, o Senhor YHWH quer caminhar na história, em um novo êxodo.
Ó rei, manso e pacífico, tem piedade das nossas palmas agitadas por um coração indeciso e volúvel. Ó Senhor, rei de amor misericordioso, salva, te pedimos, hôšî’āh nā’. Não nos faça fugir, arrasta-nos contigo, corramos (cf. Ct 1, 4) para as montanhas dos bálsamos (Ct 8, 14)!
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Domingo de Ramos: o preço do sangue - Instituto Humanitas Unisinos - IHU