08 Março 2017
Reconectar a Igreja "com a energia do Concílio Vaticano II" pode ser a maior conquista do Papa, disse o cardeal Donald Wuerl, da Arquidiocese de Washington, em uma entrevista exclusiva com a América, antecipando o quarto aniversário da eleição do Papa, que acontece em 13 de março.
Segundo o cardeal Wuerl, o Papa está mudando o papado e "reorientando completamente o papel dos bispos". Ele disse que o Papa Francisco "entendeu de onde partimos" nos temas de colegialidade e sinodalidade do Vaticano II e reorientou a Igreja em "uma teologia moral que repousa na escritura e no mandamento de Jesus de amar" e em "um discipulado evangelizador".
A entrevista é de Gerard O'Connell, publicada por América, 06-03- 2017 . A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Cardeal Wuerl, que é arcebispo de Washington, também comentou sobre o documento magisterial pós-sinodal do Papa sobre a família, "Amoris Laetitia", sobre a oposição que Papa Francisco tem vivenciado e a posição da Igreja dos EUA em relação a imigrantes perante os desafios do governo Trump.
Eis a entrevista.
Em 13 de março, Francisco vai entrar no quinto ano de seu pontificado. Ao olhar para trás em seus primeiros quatro anos, como você os lê? Quais são as principais conquistas?
Eu acho que sua grande contribuição até hoje foi a reconexão da Igreja com a energia do Concílio Vaticano II, a energia do concílio. Eu era estudante de teologia quando ele aconteceu e mergulhamos todos na emoção do aggiornamento - renovação.
O que aconteceu foi que após o concílio houve alguns exageros. Teologicamente, houve a hermenêutica da descontinuidade; liturgicamente, todos os tipos de experimentação. E de certa forma o que se perdeu foi o apelo do Concílio para que nos voltemos ao primado do amor como o motor que conduz a Igreja, seu ensino e seu alcance.
João Paulo IIfoi o grande momento de reorientação na vida da Igreja, recolocando-nos nos eixos e dizendo não aos exageros e à descontinuidade, e o Papa Bento XVI encerrou o trabalho.
Agora vem Papa Francisco, dizendo: "por que não começar de onde paramos: colegialidade, sinodalidade". A sinodalidade que Paulo VI iniciou floresceu com Francisco. Esses dois sínodos sobre a família foram diferentes de qualquer outro sínodo, porque realmente convidaram os bispos no processo de forma transparente e aberta.
Então veio o destaque da Amoris Laetitia, dizendo-nos que temos de voltar, como disse o concílio, a uma teologia moral que repousa na escritura e nos mandamentos de Jesus ao amor e às virtudes que simbolizam uma vida moral, e não seguir a lei de forma rígida.
Então, olhando para trás nestes quatro anos, vejo que Francisco conquistou toda esta reorientação, embora tenhamos um longo caminho pela frente para começar a mudar a direção de uma instituição tão grande quanto a Igreja Católica e fazer com que ela se concentre novamente no caminho que eu acredito que o concílio estabeleceu. Acho que o que ele fez já é uma grande realização.
Desde o início de seu pontificado, Francisco pediu que a Igreja alcance as pessoas.
Ele certamente nos guiou a focar em um discipulado evangelizador que agora está se tornando a marca registrada da Igreja, mas temos um enorme caminho a percorrer. O aspecto de manutenção da Igreja sempre estará presente, mas ele está dizendo para não esquecermos de que isso é apenas o sistema de apoio para um alcance evangelizador.
Com este como foco, eu pessoalmente acho que ele está reorientando completamente o papel dos bispos. Pensando que na abertura do Concílio Vaticano II, em 1962, João XXIII, "o Papa Bom", entrou na basílica de São Pedro, na Sede Gestatória [o trono papal cerimonial] e havia flabella (grandes ventiladores), guardas nobres, tiara papal e com tudo isso ele dizia: "precisamos analisar isto; não pode ser disso que se trata o Evangelho".
Agora você vê o Papa Francisco, aparecendo em uma batina branca simples e todo mundo diz que é onde ele deve estar. Não é pouca coisa ele dizer que uma Igreja muito mais simples em todo o aparato seria uma Igreja muito mais eficaz.
Então, se eu tivesse que dizer quais foram as grandes realizações de Francisco até aqui, citaria a reorientação da Igreja a falar e olhar muito mais como o Evangelho e também o convite aos bispos para mais uma vez tomarem sua responsabilidade na vida da Igreja.
No processo, é claro, Francisco está mudando o papado.
Sim. Nunca mais vai ser como era 25 anos atrás ou mais. Naturalmente, temos que lembrar que muito da aparência externa da Igreja era residual; era o que tinha sobrado de uma outra época, quando a necessidade de a Igreja ter essa qualidade política e estatal era muito importante. Mas já passamos disso. Não é o que as pessoas esperam agora ao tentar determinar a lealdade que devem ter com a Igreja Católica.
Francisco tem caminhado em três direções: ele está focado na pobreza e nos pobres no mundo; no cuidado da criação e da nossa casa comum e, depois, no "Amoris Laetita" sobre a família. Qual você considera a grande constriuição do "Amoris"?
No documento Amoris Laetitia, o Santo Padre reconhece o que nós todos passamos a enxergar: que o secularismo generalizado é a voz cultural dominante atualmente. Mas, sem uma família, não se transmite nada. João Paulo II disse que a fé, a cultura, a civilização e tudo é transmitido através da família, porque cada criança torna-se herdeira das gerações anteriores.
Este Santo Padre reconheceu que o casamento na cultura em que vivemos precisa ser totalmente renovado. Mas não se pode fazer isso sem reconhecer que este é um momento diferente na história de 25 anos atrás e as pessoas com quem a Igreja está dialogando não entendem as palavras da mesma forma..
Vou dar um exemplo. No verão, sempre há alguma ocasião quando encontro os jovens, jovens casais, apenas para falar sobre onde estão, o que está acontecendo. Em uma conversa, eles foram muito claros sobre o casamento ser "permanente", isto é, enquanto estiver funcionando, disseram. Permanente para eles tinha um significado diferente do que tinha para mim.
Acho que é isso que o Santo Padre está dizendo: esta cultura, esta língua - mesmo as palavras que usamos - têm um significado diferente para esta cultura, e precisamos encontrar uma maneira diferente de demonstrar que estamos caminhando com eles, para que possamos ouvi-los e eles possam começar a nos ouvir.
Este conceito de acompanhamento é crucial aqui.
O acompanhamento é essencial onde estamos indo. A voz da fé, a voz do Evangelho, não será anunciada hoje a uma multidão de pessoas que esperam ouvi-la, nem pelas estruturas da cultura, da sociedade - todos os elementos básicos que faziam parte da cultura cristã. Será ouvida porque os crentes convivem com os outros e dizem: "acho que há uma maneira melhor; tenho uma opinião diferente da sua sobre isso".
Paulo VI explicou da seguinte forma em "Evangelii Nuntiandi" ("Evangelização no Mundo Moderno"): "o homem contemporâneo escuta com mais boa vontade as testemunhas do que os mestres, ou se escuta os mestres, é porque são testemunhas".
Acho que isso é muito verdadeiro.
Alguns alegaram que Amoris Laetitia não é um ensinamento magisterial. Eu jamais desafiaria a voz do ministério petrino, porque se como indivíduo eu posso determinar quais dos ensinamentos da Igreja são magisteriais e quais não são, então qual das encíclicas papais e exortações apostólicas são válidas e quais não são? Quem determina isso?
Determina-se pela assinatura do Papa. Isso é o que os torna parte do ministério - não o julgamento de outra pessoa sobre o seu pensamento ou conteúdo. Por isso todas as exortações apostólicas, e todas as pós-sinodais, são magistérios petrinos.
Lembre-se de que foi Paulo VI que disse ao sínodo: "você não pode publicar porque não tem magistério algum, eu tenho". E a partir de "Evangelii Nuntiandi", portanto, todos são exercícios do magistério ou do ministério petrino.
Por que você acha que há essa oposição a Francisco?
Acredito que venha em vários níveis: quando o Santo Padre assume uma estrutura que inclui todas as instituições que fazem parte da Santa Sé, como a Secretaria de Estado, dicastérios, congregações, e questiona se não deve-se pensar sobre se realmente está funcionando de maneira devida. Ao tocar em qualquer uma destas, toca-se em interesses pessoais, por isso sempre vai haver alguma oposição, por causa do instinto natural de dizer: "sempre fizemos isto assim, por que temos de mudar?". Francisco está dizendo que precisamos olhar para isso porque passaram-se séculos depois que estas estruturas foram criadas. Portanto, há oposição no plano institucional.
E também acho que há quem se sinta muito desconfortável; tudo foi muito protegido e seguro e agora está sendo desafiado. Eles estão tendo que observar a maneira como fazem coisas rotineiras. Francisco está pedindo que eles observem e vejam se esta é realmente a melhor.
Assim, há tanto o desafio institucional quanto o pessoal.
Além disso, penso que apenas algumas pessoas não conseguem se colocar para além de onde estão e olham para as coisas por uma única lente. Mas este pontificado Amoris Laetitia são multifacetados e só enxergando-os através de uma lente nunca será possível apreciá-los.
Você acha que os cardeais estão fazendo o suficiente para ajudá-lo?
Sim. Mas deve-se distinguir entre os cardeais da Cúria e os cardeais ao redor do mundo. Acredito que os cardeais ao redor do mundo, dos quais a grande maioria são bispos residenciais, têm empatia com as ações do Papa, porque ele fala de algo em que estamos envolvidos: o ministério pastoral.
Os cardeais da Cúria têm uma perspectiva diferente, porque são, no bom sentido, burocratas. Eles gerenciam gabinetes; organizam os departamentos da Igreja, mas tenho a impressão de que há alguma lentidão porque, como um deles já me disse: "por que estamos mudando algo que tem funcionado por quase 500 anos?".
E pode haver alguns que ficam intimidados pela mudança.
Você vê necessidade de os cardeais residenciais estadunidenses apoiarem o Papa Francisco, assim como o Conselho dos nove Cardeais apoiou recentemente?
Não tenho certeza de que precisemos ser mais explícitos do que já somos. Você sabe que é costume trocar presentes entre a família no Natal e aproveitar o aniversário de alguém para dizer: "Ei, eu te amo".
Assim, na vida da Igreja, no quarto aniversário de sua eleição, nós estaremos dizendo: "Santo Padre, Deus te abençoe, Ad multos annos!”. E fica implícito que estaremos com ele para sempre.
Vemos uma crescente preocupação nos Estados Unidos e na Igreja em relação à abordagem do governo Trump aos imigrantes e trabalhadores ilegais, com o surgimento de alguém que nega o aquecimento global liderando o gabinete do meio ambiente, e muito mais. Você mora em Washington, D.C. Como percebe isto?
Eu acho que por enquanto é muito difícil ter ideia de onde o governo está indo porque várias coisas que estão sendo ditas e vários compromissos que estão sendo firmados ainda têm de começar a acontecer. Acho que ainda é muito cedo para dizer.
Em algumas áreas, penso que nós esperamos um melhor direcionamento, mas acho que é muito cedo para dizer onde tudo isso vai chegar porque o presidente e a administração ficam ajustando e mudando tudo o que já foi dito.
Mas não é bem esse o caso na questão dos imigrantes.
A respeito disso, penso que a Igreja nos Estados Unidos tem de estar forte e unida. Nossa Conferência dos Bispos emitiu declarações, a maioria de nós tem emitido declarações, dizendo que a soberania da fronteira é algo que precisa ser abordado, embora isso deva ser feito de maneira razoável. Mas quanto às pessoas que já estão aqui, é outra questão e temos de lidar com isso de maneira humana. Não podemos simplesmente separar as famílias. Acho que essas duas questões são relacionadas, mas distintas. A Igreja tem apoiado de maneira consistente o cuidado a imigrantes que já estão nos Estados Unidos.
Você sente que há uma grande unidade na Igreja sobre esta questão?
Sim. A grande maioria das vozes que representam a Igreja estão juntas neste assunto.
Há boatos de que o presidente Donald J. Trump pode encontrar o Papa Francisco em maio. Como você vê isso?
Olhando para o futuro, a única coisa que eu posso afirmar é que este Papa causou uma grande impressão e forte impacto no presidente Obama. Obama disse isso. Eu esperaria o mesmo de um encontro entre o presidente Trump e o Papa Francisco.
Acredito que Francisco causaria o mesmo impacto sobre ele, porque o Papa vem de uma perspectiva moral, espiritual, religiosa e necessariamente afeta as pessoas cuja tarefa é a política. Mas estamos apenas olhando na bola de cristal...
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Papa Francisco reconectou a Igreja com o Vaticano II, constata cardeal de Washington - Instituto Humanitas Unisinos - IHU