07 Março 2017
Selma James brinca e destaca que tem quase tantos anos de vida quanto o ativismo feminista. Sem eufemismos, a fundadora da Campanha Internacional pelo Salário para o Trabalho Doméstico (1972), junto com outras reconhecidas do feminismo como a italiana Silvia Federici, fala da exploração, da escravidão e da violência do casamento capitalismo-patriarcado. Dias antes da Greve Internacional de Mulheres, com um entusiasmo renovado pelo que observa como o crescimento de um feminismo de base, James conversou com Página/12 sobre desafios para o movimento e sobre os 60 anos de militância que narra em seu último livro.
A entrevista é de Ximena Schinca e publicada por Página/12, 06-03-2017. A tradução é de André Langer.
Como surgiu a ideia de publicar seu último livro Sexo, raça e classe?
Cada um dos artigos da antologia (Sex, race and class, Merlin Prss, 2012) foi escrito para tratar um problema político do movimento feminista. Faz algum tempo que estou neste mundo e faz tempo que estou também no movimento. O primeiro artigo, intitulado “O lugar de uma mulher” (1952), foi o primeiro artigo que escrevi na minha vida e o fiz como panfleto político. Depois, nas décadas de 1960 e 1970, havia uma competição entre os movimentos para determinar quem sofria maior exploração: se as mulheres, se a população negra ou a classe trabalhadora.
Eu pensava que, em princípio, muitas vezes trata-se das mesmas pessoas, mas, além disso, trata-se de uma competição promovida por quem tem ambições pessoas dentro do movimento e aspira a conseguir credibilidade em consequência de sofrer maior exploração. Então, eu quis assinalar que havia uma relação de poder inclusive dentro da classe trabalhadora. Não somos iguais: as mulheres fazem dois terços do trabalho não remunerado e os homens apenas um terço; as mulheres negras têm remunerações mais baixas ainda e sofrem problemas ainda maiores se são mães; as idosas têm problemas inclusive quanto ao direito de existir. Então, são estas as relações de poder que devemos abordar se quisermos construir o movimento que ganhe a luta contra a desigualdade.
Você se define como fazendo parte de um feminismo diferente. Que tipo de feminista é Selma James?
Nós fazíamos parte de “um feminismo para os 99%” antes de sabê-lo. Nos Estados Unidos e em muitos outros países, está havendo uma renovação no movimento que se autodefine como “feminismo para os 99%”; isto é, o número exato que inclui a vida de mulheres reais nos países industrializados, mas também nos chamados países do Terceiro Mundo. Muito pouco de todas essas vidas foi expressado, representado, confrontado e inclusive mencionado pelo movimento dos finais dos anos 60 e começo de 70.
Assim, enquanto a maioria de nós, que realizávamos uma grande quantidade de tarefas de cuidado (na Inglaterra, 80% das mulheres são mães), ficava excluída desse feminismo que só denunciava o conhecido telhado de vidro (glass ceiling). Sempre são as mulheres que se ocupam dos idosos, da tia que está com problemas, do vizinho que precisa de ajuda. Elas são o serviço social que nunca é reconhecido como tal, executam mais atenção e prevenção em saúde que qualquer serviço médico. As mulheres também fazem uma grande quantidade de trabalho de justiça quando lutam por aqueles que amam; as Mães da Praça de Maio são um exemplo perfeito desse trabalho de verdade e justiça que realizam por quem amam, um exemplo de como as mulheres sempre inventam modos de luta e se reúnem para trabalhar juntas pela transformação. Tudo isso que hoje começa a ganhar espaço nas lutas do movimento estava excluído daquele feminismo de reivindicações muito reduzidas.
Que reconhecimento tem hoje esse trabalho feito pelas mulheres?
As mulheres ainda não recebem nem remuneração nem reconhecimento nem recompensa alguma por esse trabalho. Não se reconhece que esse trabalho é crucial não apenas para os indivíduos que recebem o cuidado, mas que é fundamental para a sustentação de uma sociedade. Ainda assim, ele é tratado como se não valesse nada; se as mulheres tem de trabalhar em um supermercado ou limpar o banheiro de outra pessoa, considera-se que estão contribuindo para a sociedade; mas se se ocupam de suas próprias filhas e filhos, são consideradas improdutivas, são condenadas a viver na pobreza ou a cumprir jornadas intermináveis por salários miseráveis.
É essa falta de proteção para as cuidadoras, essa pobreza das mulheres e essa quantidade de trabalho que a pobreza significa para todas nós, o que não foi o marco do feminismo. Enquanto nas manufaturas clandestinas de Bangladesh, Tailândia e do sudeste asiático milhões de mulheres trabalham por salários de escravidão, enquanto suas mães cuidam de seus filhos e as jornadas são intermináveis, o movimento não atacava essa pobreza como o inimigo principal.
As últimas mobilizações na Argentina de #NiUnaMenos, ou nos Estados Unidos, Coreia, Polônia, são a expressão de uma nova onda do feminismo?
O movimento latino-americano começou muito bem ao atacar a pobreza como o principal inimigo das mulheres. Dependerá de nós conseguir que essa massividade e esse crescimento expresse e represente um movimento de base sustentado em todas essas lutas em que as mulheres estão envolvidas. A partir deste novo feminismo, vemos, por exemplo, que muitas mulheres escolhem o trabalho sexual como estratégia para evitar o trabalho em manufaturas clandestinas. Essa também é a nossa luta, porque viola o que se espera das mulheres. Essas mulheres estão sendo perseguidas, porque obter uma boa renda converte-as em “más mulheres”.
Como vê o crescimento surpreendente que as reivindicações feministas tiveram nos últimos anos?
Houve muita preparação invisível, anos de preparação, antes que este movimento eclodisse. As mulheres estão envolvidas em todos os tipos de luta coletiva, algumas maiores e outras menores. Na base dessas lutas e das pessoas que mais aprendem com elas, estão as raízes deste movimento que surge e que continuará a se desenvolver ao longo de muitos anos. Estamos falando de mulheres que aprenderam a oferecer a outras confiança em si mesmas para se reunirem, correr seu próprios egos do caminho e reunir-se com outras pessoas nesses aspectos da vida que compartilham com outras, incluindo que são parte de uma comunidade no trabalho ou fora dele.
O movimento aparece milagrosamente, mas de fato as pessoas se exercitaram em grande escala. Todos vão se educando na participação do movimento. Por isso, devem continuar a se alimentar dessa participação e evitar que ambições pessoais e de grupos políticos saqueiem, para benefício próprio, o que foi construído com muito esforço.
Que tipo de liderança um feminismo dos 99% deveria promover?
Muitas vezes, os pontos de referência que vão surgindo se enfraquecem quando são extraídos de suas comunidades e isolados dos impulsos e do poder que os tornou visível. Se a liderança não implica “traição”, é vital que continue enraizada em suas próprias fontes de respostas, ideias e maneiras de fazer as coisas, sempre disposta a escutar outros setores e criar unidade com a maior quantidade de setores possíveis. Nos Estados Unidos, nosso modelo de liderança foi Fred Hampton. O que Hampton fez nunca foi descrito, porque reclama da liderança a responsabilidade com que deve comprometer-se e que o establishment esconde e aniquila.
As mulheres conseguiram ter acesso a posições de poder impensadas. Como você avalia o desempenho das mulheres nestes novos espaços?
Temos a tendência de pensar que as mulheres com mais poder sabem como fazer as coisas. Muitas vezes nos convencem de que são elas que deveriam ascender, e uma vez que ascendem, elas mesmas culpam as glass ceiling (telhado de vidro) por essa desigualdade – que elas não conseguem transformar e que se expressa em diferentes campos. O problema não é o glass ceiling, mas o class ceiling (o telhado de classe); e que, uma vez que quebram esse telhado de vidro e ascendem, esquecem-se de onde vieram e comparam seus progressos com o que os homens têm, em vez de brigar por tudo aquilo que as outras mulheres não têm; e em vez de dizer que estão em uma posição muito melhor, sustentam que não têm tanto poder como os homens e perdem seu compromisso com esse movimento de base.
Ainda não encontramos a maneira de manter o compromisso com as bases, mas esse não é um problema somente do movimento de mulheres, mas de todos os movimentos. Anti-racistas, pacifistas, sindicatos – em nenhum desses casos, as bases conseguiram manter o controle sobre o que acontece mais acima. Quando o movimento começou, nos anos 70, a maioria de nós estava convencida de que era preciso destruir as hierarquias de gênero, raça e classe. Éramos contra o capitalismo. Cada vez mais, em vez da ascensão das mulheres como coletivo e a abolição de hierarquias, o objetivo foi a ascensão individual de algumas mulheres para espaços de poder na política, órgãos de direção, ou liderando as forças policiais e de segurança do imperialismo. Agora essas mulheres são parte desse 1% que governa o resto de nós, e com sorte, também os homens.
Portanto, a única maneira de manter o controle é que mais mulheres se envolvam ativamente e atuem em seu próprio nome. Não há outra solução. O movimento deve ser cada vez mais amplo, e as lideranças devem incorporar aqueles que prestam contas às bases.
O governo argentino não respondeu às reivindicações do movimento de mulheres, os feminicídios continuam aumentando e a mobilização social cresce. É esta uma resposta generalizada aos governos neoconsevadores?
Lamentavelmente, isso é verdade em todos os lugares. Também aconteceu na Inglaterra, onde todas as semanas duas mulheres são assassinadas por seu parceiro ou ex-parceiro. E parte da responsabilidade consiste em que não se valoriza o que as mulheres fazem pela sociedade, e os governos acreditam que podem esquivar-se fazendo nada ou muito pouco. Então, os governos tendem a ir para a direita, mas os movimentos se inclinam para a esquerda e estão crescendo. E são os movimentos que podem produzir as mudanças.
Por isso, é muito encorajador ver também que o feminismo dos Estados Unidos, ao menos até agora – e nós as estamos observando muito de perto –, está colocando o poder em segundo plano, atrás das bases, porque um feminismo dos 99% é para onde temos que ir. Também é encorajador ver que a resposta a Donald Trump tenha sido contundente em seu próprio país.
Como o Estado deveria encarar os feminicídios e qual o papel que os homens deveriam assumir nas demandas das mulheres?
Em relação à primeira questão, creio que alguns homens devem ser presos, julgados e receber condenações severas para que fique absolutamente claro que o governo não tolera esse tipo de violência. Mas, além disso, devemos dizer aos homens que eles devem disciplinar-se entre si. Os homens devem rejeitar aqueles outros que são violentos com as mulheres. Temos experiências em que os homens colocaram limites aos seus próprios pares, e não com mais violência, mas simplesmente negando-se a manter trocas ou relações com esses homens violentos. Nesses ambientes, a violência contra as mulheres diminuiu sensivelmente.
Você elogiou o governo de Hugo Chávez. Como avalia a relação do ex-presidente da Venezuela com o movimento de mulheres?
Chávez foi um líder político extraordinário, um grande homem, uma pessoa muito solidária com as mulheres e que sempre apresentou as nossas denúncias. Ele foi muito respeitoso com as mulheres como mães e tinha uma brincadeira muito engraçada sobre as mais adultas. Dizia que tínhamos “acumulado anos”. Nós lamentamos muitíssimo sua perda, porque tivemos a possibilidade de observar como as mulheres de Caracas organizaram uma série de serviços, não apenas refeitórios, mas também de cuidado, educação e saúde. Tudo era financiado com recursos públicos.
Existe uma nova onda de feminismo mais próximo dos governos populares latino-americanos do que dos liberais europeus?
Eu sempre me identifiquei com o feminismo de Virginia Woolf e Eleanor Rathbone, por seu trabalho pelo empoderamento econômico das mulheres. Rathone promoveu subsídios para as mulheres, de tal modo que todas as semanas recebessem dinheiro por cada filho. Ela lutou por isso durante 40 anos e o conseguiu em 1948. Virginia Woolf também era a favor de um salário digno para as mães. Mas o feminismo em geral, mesmo quando lutava pelos direitos das mulheres, não estava interessado nas mulheres de base e sempre foi muito hostil a remunerar o trabalho doméstico, porque temia que as mulheres fossem “institucionalizadas” em suas casas. Nós acreditamos que se estamos sem dinheiro em nossas casas ou onde quer que seja, estamos institucionalizando a pobreza das mulheres. Por isso, os movimentos de que participo exigem dinheiro pelo trabalho que as mulheres fazem.
O feminismo oficial, que galgou postos do Estado, o corporativo e o neoliberal, nunca exigiu dinheiro para as mulheres, nem mesmo pela igualdade salarial. Como máximo, reivindicaram o direito ao aborto. E o direito ao aborto, o direito a decidir sobre nossos corpos, é nosso e de mais ninguém, mas não o único. Nossos direitos não podem se limitar a não ter filhos; também existe o direito aos filhos que queremos ter e não podemos sustentar, o direito ao nosso tempo para amamentar, a estar com eles nos primeiros anos de vida se assim o desejamos. Por isso, nossa principal reivindicação é um salário digno para mães e cuidadoras.
Também temos que lutar por esses direitos. Nós mesmas devemos ser prioridade; não nós enquanto mulheres, mas nós como cuidadoras. Temos a esperança de que também os homens sejam cuidadores como parte de uma trama social, porque só uma sociedade solidária pode sobreviver. Não há como sobrevivermos se não nos ocuparmos do nosso entorno, da nossa sociedade, dos nossos entes queridos, e se a sociedade e aqueles que nos amam não cuidarem de nós mulheres.
Como você está se preparando para este 8 de março, Dia Internacional da Mulher Trabalhadora?
Com esta greve internacional estamos começando a lembrar a história das mulheres e das greves de que elas participaram. Nós convocamos à greve e à mobilização sob a consigna “invistam em cuidado, não em morte”. Além disso, vamos promover diversas ações, como piquetes nos tribunais que estão afastando as mães de seus filhos, porque não têm recursos para sustentá-los economicamente. E para o nosso movimento, a reivindicação de um salário digno pelo trabalho doméstico segue sendo uma prioridade.
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“Temos que lutar por um feminismo para todas”. Entrevista com Selma James - Instituto Humanitas Unisinos - IHU