17 Agosto 2013
O Papa Francisco pediu que a Igreja crie uma teologia mais profunda das mulheres, embora ele tenha descartado a ordenação de mulheres. Mas como o cristianismo e as outras religiões podem estabelecer papéis para as mulheres que não as lancem como cidadãs de segunda classe? O judaísmo poderia apontar o caminho? Onde as mulheres se posicionam nas religiões do mundo hoje?
A reportagem é de Emma Klein, publicada na revista The Tablet, 10-08-2013. A tradução da versão italiana é de Moisés Sbardelotto.
A partir dos recentes desdobramentos, pronunciamentos e eventos, emerge um quadro muito complexo. Não menos complexa é a posição das mulheres dentro do judaísmo, uma das menores, em termos numéricos, religiões do mundo.
Judaísmo
Até o século XIX, quando o movimento da Reforma no judaísmo surgiu na Alemanha, a Ortodoxia prevaleceu, e as mulheres, com exceção de algumas poucas figuras históricas, foram confinadas à casa e, dentro da sinagoga, à galeria das senhoras ou atrás de um mechitza ou divisória – muitas vezes uma cortina.
A lógica por trás dessa separação, derivada do período do Talmude e da Mishná, o comentário oral sobre a Torá, ou Lei, era que uma mulher e o seu corpo poderiam distrair os homens e levar a pensamentos impuros durante a oração.
Nas Escrituras hebraicas, havia mais do que algumas poucas mulheres proeminentes, não menos importantes as quatro "matriarcas" Sara, Rebeca, Lia e Raquel; a profetisa e irmã de Moisés e Aarão, Miriam; e Débora, a juíza e profetisa. A moabita convertida Rute, a ancestral do rei Davi, e Ester, a esposa judaica do monarca persa Assuero, também desempenham papéis importantes na tradição judaica.
Com as várias conquistas e expulsões às quais o povo hebreu foi submetido, e a posterior extensa história de perseguição, a Ortodoxia judaica se tornou mais rigoroso, afetando, dentre outros aspectos, o papel das mulheres no culto. Uma mulher excepcional nos tempos talmúdicos foi Bruriá. Filha e esposa de rabinos proeminentes, ela foi citada como uma "sábia".
Mais tarde na história, duas mulheres atuaram na qualidade de rabinas, sem ordenação formal. Uma delas era Asenath Barzani, no século XVII, que atuou como rabina entre os judeus curdos, e a segunda foi Hannah Rachel Verbermacher que era rabina em uma comunidade hassídica na Europa Oriental no século XIX.
No entanto, a probabilidade de haver uma rabina ortodoxa no nosso tempo, até muito recentemente, era algo praticamente impossível de se contemplar. E a Ortodoxia ainda é a maior facção em Israel, França e Reino Unido. Nos Estados Unidos, entretanto, onde a população judaica de cerca de seis milhões é quase tão grande quanto a de Israel, a Ortodoxia é um bloco minoritário; a maioria dos judeus norte-americanos praticantes pertencem a comunidades conservadoras ou reformadas.
É provavelmente por causa do status de minoria da Ortodoxia norte-americana que um desenvolvimento marcante ocorreu nos últimos anos. Trata-se do surgimento de um seminário ortodoxo em Nova York, onde as mulheres são preparadas para a ordenação. O seminário é conhecido como Yeshivat Maharat – yeshiva é a palavra hebraica para seminário, e maharat é o acrônimo das palavras hebraicas que significam "mestre da lei e da espiritualidade judaicas".
A reitora do seminário, Raba Sara Hurwitz, foi ordenada por dois rabinos ortodoxos. No entanto, o fato de ela se chamar "rabina" – a versão feminina de "Rabino" – causou tanta indignação entre muitos membros da comunidade ortodoxa que, como um compromisso, foi acordado que uma graduada do seminário seria chamada de "maharat".
Três mulheres se formaram no seminário no mês passado e já foram contratadas por congregações em Montreal e em Washington, servindo ao lado de rabinos homens. No entanto, um educador pioneiro de meninas ortodoxas, que estava entre o público da cerimônia de formatura, comentou que o título de "maharat" é como se formar na faculdade de medicina e não ser autorizado a se chamar de médico.
Embora essas mulheres, em alguns casos, serão líderes espirituais de comunidades, elas vão continuar enfrentando várias restrições sob a lei judaica ortodoxa. Elas vão se sentar separadamente durante as celebrações, não terão a permissão de ler a Torá e não serão contadas em um minyan – o quorum de 10 fiéis necessários para a recitação de certas orações, incluindo o Kaddish, que é muitas vezes referida como a oração do enlutado.
O conceito de minyan vem do relato bíblico da tentativa de Abraão de salvar Sodoma e Gomorra da destruição. Conta-se que Abraão fez um pacto com a Divindade de que, se ele pudesse encontrar 10 homens justos, as cidades não seriam destruídas. Ele foi incapaz de encontrar o quórum necessário.
Fora dos EUA, houve algum progresso, embora limitado. Em Israel, pela primeira vez, houve duas mulheres na comissão de 11 membros para supervisionar as eleições para o rabinato-chefe realizada no fim de julho. E um grupo de mulheres israelenses foi aos tribunais para tentar forçar as autoridades ortodoxas a permitir que elas se tornem supervisoras do kashrut – o processo para garantir que os produtos alimentares e os restaurantes sejam kosher.
Na Grã-Bretanha, houve muitas rabinas nos movimentos reformados e liberais, entre elas a baronesa Julia Neuberger e a rabina Laura Janner-Klausner, atual presidente do Movimento para Reformar o Judaísmo. No entanto, o movimento Masorti, ou conservador, no Reino Unido ainda não tem nenhuma mulher rabina.
O mais significativo em Londres, em Israel e em Toronto, assim como em algumas cidades norte-americanas, é um desenvolvimento recente conhecido como "Parceria minyan", um termo usado pela Aliança Feminista Ortodoxa Judaica para descrever um grupo de oração que está em conformidade com as restrições da lei judaica ortodoxa, embora permita que uma parte dos serviços sejam liderados por mulheres, assim como por homens.
Também houve alguns serviços ortodoxos apenas para mulheres, por exemplo para ler o rolo de Ester, que é recitado todos os anos na festa de Purim, que comemora a salvação do povo judeu na Pérsia do complô para destruí-los, instigado por Hamã, o vizir real do marido de Ester, o rei Assuero. No entanto, a "parceria minyan" certamente é um avanço com relação a um grupo de oração apenas para mulheres. Não surpreendentemente, ela tem enfrentado críticas consideráveis por parte de muitas pessoas da comunidade ortodoxa.
Budismo
Em algumas religiões do mundo, tem havido um reconhecimento substancial da importância das mulheres. O Dalai Lama, por exemplo, disse que ficaria muito feliz se o seu sucessor fosse uma mulher, e atualmente há no Tibete uma lama budista mulher, Khandro Rinpoche, que, aos dois anos de idade, foi reconhecida por um importante líder espiritual budista como a reencarnação de uma lama do sexo feminino nascida no século XIX.
Anglicanismo
Já o arcebispo de Canterbury, Justin Welby, também expressou a sua convicção de que uma mulher, um dia, irá ocupar o seu papel e foi franco no seu apoio às bispas mulheres. Apesar da surpreendente derrota das bispas mulheres medida pelo voto dos membros leigos do Sínodo Geral no ano passado, o assunto está de volta à agenda, e pensa-se que a aprovação final poderia ser dada à nova legislação até o fim de 2015.
Catolicismo
Quanto à Igreja Católica, o Papa Francisco, em sua coletiva de imprensa improvisada no avião papal retornando do Rio no dia 28 de julho, repetiu o ensino "definitivo" de João Paulo II de que a porta está fechada para a ordenação de mulheres. No entanto, ele disse que a Igreja precisa de uma teologia das mulheres mais profunda, indicando que Maria é mais importante do que os Apóstolos. Ele acrescentou: "Agora ela é coroinha, agora ela lê a Leitura, é a presidente da Cáritas... Mas há mais! (…) A mulher, na Igreja, é mais importante do que os bispos e os padres".
Islã
No Islã, homens e mulheres geralmente celebram separadamente. As mulheres geralmente não são autorizadas a liderar orações mistas. Mais uma vez, os Estados Unidos são o país onde as mulheres muçulmanas têm se tornado mais proeminente no culto, e há várias comunidades em que as mulheres lideram orações mistas.
Embora seja improvável que as mulheres serão ordenadas em breve como imãs, há uma estudiosa islâmica afro-americana, Amina Wadud, que tem sido chamado de Imã Amina Wadud. Certamente, em muitos países muçulmanos, fora da esfera religiosa, a capacidade da mulher para a autoexpressão é muito reprimida.
Hinduísmo
No hinduísmo, embora muitas deidades femininas sejam cultuadas, o papel da mulher é geralmente visto de uma forma bastante tradicional, como a figura-chave na facilitação da continuidade da linhagem familiar. De fato, o aspecto machista da religião hindu ficou bastante claro para mim recentemente, quando eu fiquei sabendo que o filhos de 10 anos da minha vizinha hindu, ela mesma uma médica ginecologista, foi obrigado a atuar como o presidente oficiante da cerimônia de cremação do seu avô em Londres e, mais tarde, na cerimônia de espalhar as cinzas no rio Ganges, porque ele era o único descendente masculino direto.
Se eu puder terminar com uma nota pessoal, eu devo dizer que há um ritual judaico que eu estou determinada a levar a cabo e que alguns rabinos ortodoxos não permitem que as mulheres o realizem. Trata-se da recitação do Kadish. Composto em sua maior parte em aramaico, com exceção da exortação da paz com a qual ele conclui, trata-se basicamente de uma exaltação do nome do Todo-Poderoso e não contém nada que se refira à tristeza ou à morte. No entanto, o fato de ele ser recitado juntamente à morte de um parente próximo explica por que muitas vezes ele é visto como uma oração do enlutado.
Recitar o Kadish tem sido de grande importância para mim desde a prematura morte do meu amado irmão há 13 anos. Eu recitava a oração em uma sinagoga Masorti praticamente todos os sábado de manhã durante 11 meses. Isso me deu força e, quando chegou a hora de parar, eu experimentei uma enorme sensação de perda. Desde então, em cada yartzeit – o aniversário da sua morte –, eu recito o Kadish por ele novamente. Tornou-se um dia muito importante.
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Papéis femininos nas religiões: quebrando o telhado de vidro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU