06 Março 2017
Marie Collins, a irlandesa sobrevivente de abusos sexuais clericais que atuava desde 2014 na Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, explica por que motivo renunciou deste organismo e denuncia a resistência e a falta de cooperação que a Comissão enfrenta da parte da Congregação para a Doutrina da Fé – CDF e de algumas autoridades vaticanas. Ela também denuncia o “clericalismo que encontrou em alguns setores da Cúria Romana, e a relutância da CDF em implementar as recomendações da citada comissão – mesmo depois de o Papa Francisco aprová-las. Collins conclui a entrevista refletindo sobre se a resistência à Pontifícia Comissão é, na verdade, uma resistência ao papa.
A entrevista é de Gerard O’Connell, publicada por America, 02-02-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis a entrevista.
Onde a senhora viu certa “resistência” e “falta de cooperação” da Congregação para a Doutrina da Fé – CDF às recomendações da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores?
Vi pela primeira vez quando a Congregação para a Doutrina da Fé – CDF se recusou a implementar uma recomendação da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores relativa ao tribunal destinado a responsabilizar os bispos por negligência. O papa aprovou esta recomendação e, em seguida, anunciou-a em junho de 2015. Era a nossa primeira recomendação e, para mim, uma sobrevivente de abuso sexual, essa era a preocupação mais importante, mais fundamental. A Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores nada ouviu sobre ela por um longo período, mas depois descobrimos que se havia mandado implementar a recomendação e, aparentemente, a CDF encontrou algumas dificuldades nisso. Nunca ouvimos se estes problemas tinham a ver com o Direito Canônico ou com a legislação civil. A recomendação foi jogada fora.
A senhora disse que a “última gota d’água” foi quando a CDF rejeitou uma proposta simples dada pela Pontifícia Comissão – novamente, aprovada pelo papa – que pedia que as vítimas/sobreviventes que escrevem à CDF pedindo informações sobre o progresso nos casos envolvendo-os deveriam receber um retorno de suas cartas.
Considero essa recomendação um procedimento normal, cotidiano, de respeitar a pessoa que lhe escreve uma carta reconhecendo-a. O papa instruiu os departamentos vaticanos a responderem sempre que um sobrevivente ou uma vítima lhes escrevessem. Em janeiro, eu soube que um dicastério se recusava a mudar a sua prática atual, que não inclui enviar um reconhecimento a um sobrevivente ou vítima que lhe escreve.
O que chamou a minha atenção é o fato de que a Igreja vem afirmando o tanto que lhe preocupam a dor, a mágoa e a cura das vítimas, e, no entanto, há essa recusa em mandar uma carta de reconhecimento a uma vítima, ou sobrevivente, que lhes escrevem. Até agora, não vi justificativa alguma para essa recusa. Para mim, esta foi a última gota d’água.
Entendo que a senhora veio a saber dessa recusa quando a Comissão recebeu uma carta assinada por um arcebispo da CDF.
Não quero entrar em detalhes de como eu soube. A Comissão deu a recomendação e a resposta que tivemos dizia que não, que eles continuariam fazendo as coisas do jeito que sempre fizeram.
É verdade que a CDF também se recusou a cooperar com a Pontifícia Comissão na questão das diretrizes, orientações gerais?
O problema foi que a Comissão passara dois anos trabalhando num modelo com orientações que, esperávamos, seria o padrão a ser disseminado entre todas as conferências episcopais para que elas pudessem criar, a partir daí, as suas próprias normas. A CDF possui o seu próprio modelo e recebeu documentos das conferências dos bispos depois que o D. Charles Scicluna pediu que todas enviassem, em 2011, a Roma as suas diretrizes. A Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores só queria olhar o atual modelo e, nestes documentos, perceber os pontos fortes e fracos, para depois trabalhar neles e decidir como um novo padrão seria disseminado. Essa solicitação à cooperação foi recusada.
Então vocês estavam recebendo repostas negativas às melhores recomendações que apresentavam?
Não sei se a objeção era ao conteúdo das nossas orientações, ou se a Pontifícia Comissão simplesmente não tinha o direito de se envolver neste trabalho, ou que a Congregação para a Doutrina da Fé veja a necessidade de cooperar com a Comissão. Para mim, isso é horrível. O papa nos pediu que cooperássemos na proteção das crianças no mundo. Não podemos melhorar algo a menos que possamos comparar o que temos com o que desejamos ter. Trabalhar em conjunto é um dever; não podemos ter duas entidades trabalhando de maneira independente uma da outra. O resultado é que o modelo de orientações da Pontifícia Comissão encontra-se no nosso sítio eletrônico, ele não foi ainda enviado às conferências episcopais como um documento recomendado. A meu ver, todo atraso na melhoria de documentos voltados à salvaguarda dos menores ao redor do mundo deixa em perigo crianças e adultos vulneráveis.
A senhora manifestou frustração ao renunciar, mas deve haver também uma grande frustração dentro da Comissão com esta falta de cooperação.
É claro que há, mas não posso falar pelos demais. Tivemos outras frustrações ao longo desses três anos, e superamos outras resistências. Mas acho vergonhoso que uma Pontifícia Comissão criada pelo papa, e apoiada por ele para melhorar a proteção infantil ao redor do mundo, encontre obstáculos postos por homens que se encontram no topo do governo da Igreja, especialmente porque esse tema foi lidado de uma maneira tão desastrada no passado, e tudo o que a Comissão está tentando fazer é não repetir isso.
No entanto, há pessoas no Vaticano que estão impondo as suas próprias normas pessoais ou opiniões clericalistas, para fazer resistência à Comissão que vem se esforçando na melhoria dessa situação. Não há desculpas para isso!
É amplamente sabido que a sua presença na Comissão deu a ela uma grande credibilidade, porém esta renúncia envia um outro sinal, que corre o risco de cair nas mãos dos que querem desacreditar o comprometimento do Papa Francisco nesse setor...
Eu me esforcei muito para trabalhar de forma construtiva na Comissão. Estive 100% do tempo envolvida com os trabalhos, e o papa fez o mesmo na Comissão, além de nos apoiar. Se a explicação da resistência à Comissão é que o mesmo grupo está fazendo resistência ao papa – e nós sabemos que há resistência a ele –, tudo o que posso dizer é que é uma desgraça, porque o que estão fazendo é jogar com a vida de crianças.
Quando Francisco criou a Comissão em 2014, a senhora me disse que tinha grandes esperanças, mas agora você escreve: “Eu cheguei a um ponto onde não consigo mais me manter apenas com a esperança. Como sobrevivente, assisti a alguns eventos se desdobrarem com consternação”. Perdeu todas as esperanças?
Eu ainda tenho esperança. Mas ela é quase como uma imagem espelhada do que aconteceu quando, 20 anos atrás, fui para a minha diocese reportar o abuso sofrido. Tive a esperança e expectativa de que, para manter seguros os menores, era preciso tirá-lo [o perpetrador] da paróquia e que houvesse uma investigação policial. Essa era a minha esperança, mas ela não se realizou. Nada se fez.
Não fui ingênua quando me juntei à Comissão para a Tutela dos Menores. Sabia que haveria dificuldades, mas nunca esperei que elas acontecessem com os atuais comandantes vaticanos. Dado que éramos uma Comissão Pontifícia, esperava que tivéssemos uma cooperação total. Eu previa que teríamos problemas, como fazer com que a mensagem fosse aceita pelas lideranças eclesiais ao redor do mundo, mas nunca, jamais imaginei que as pessoas no Vaticano, no governo da Igreja, seriam o problema. Talvez eu estivesse errada, mas nunca esperei que aquelas pessoas que deveriam levar adiante as recomendações da Comissão seriam os nossos obstáculos.
É isso o que mais me entristeceu e tirou as minhas esperanças. Não digo que elas foram embora por completo. Sempre espero que as coisas melhorem. Espero que a Comissão ainda esteja aí, e sei que há pessoas boas trabalhando nela e que o papa as apoia. Espero que essas pessoas façam grandes progressos e que a minha atitude de revelar os fatos ajude a remover o bloqueio.
Sei lá. Acho horrível a situação em que estamos. Acredito que, no fim das contas, precisamos ter os leigos no comando e o clericalismo tem de morrer.
Percebe o clericalismo nas respostas negativas da CDF e de outros no Vaticano?
Certamente acho que o clericalismo está na origem do problema, porque ainda há aquela atitude, em alguns religiosos da Cúria, que acham que sabem melhor e não parecem respeitar que existe uma comissão que conta com homens e mulheres. Talvez eles consideram estas pessoas como pessoas de fora. Não penso que respeitam o conhecimento especializado existente na Comissão, não obstante o fato de que o papa respeitar, obviamente, a Comissão e aprovar as suas recomendações. Mas o clericalismo leva as pessoas a crerem que elas são superioras às demais, e que sabem melhor do que as outras. Eu acho que essa é a atitude que existe em alguns no Vaticano que sentem que não precisam cooperar, que podem criar as suas próprias normas internas.
A senhora diz estar convencida de que o Papa Francisco entende o problema das vítimas/sobreviventes.
Sim, ele entende, embora eu ache que tenha cometido alguns equívocos nessa área. As suas palavras dirigidas aos bispos nos Estados Unidos foram bem doloridas para os sobreviventes. Dito isso, penso que ele realmente compreende a problemática. Com o tempo ele realmente aprendeu. O papa entende o efeito terrível do abuso na vida das pessoas.
Acredito no que ele vem dizendo sobre o abuso na Igreja, e a “tolerância zero” de que fala é bastante sincera. Penso que ele quer dizer exatamente isso, e que quer livrar a Igrejas dos abusadores. Às vezes, ele ouve o conselho errado e alguns tropeços acontecem, mas realmente o papa deseja ver este problema sendo lidado de maneira certa. Ele vem apoiando o Cardeal Seán O’Malley, presidente da Comissão, e o seu apoio é irrestrito.
Portanto eu não colocaria nenhuma culpa sobre o papa pelos problemas. Acho que é apenas a percepção que as pessoas têm de que, quando o papa diz que algo vai acontecer, então ele acontece. Mas nós sabemos que os governos, principalmente no Vaticano com centenas de anos de experiência, podem desacelerar as coisas ou mesmo pará-las, caso não houver a disposição em vê-las realizadas, e é isso o acontece.
Sente-se aliviada ou triste depois de renunciar?
Eu me sinto bem. Não me arrependo de ter entrado na Comissão. Estou feliz por ter trabalhado nela durante três anos e ter podido falar na qualidade de sobrevivente, contribuindo para o trabalho. Também não me arrependo de renunciar, porque, a essa altura, penso que era o que precisava fazer para manter a minha integridade, e de modo algum estou me sentindo em dúvida; sinto que fiz a coisa certa. Estou esperançosa. Realmente espero que, talvez, a minha decisão abra os olhos para o fato de que a Igreja vai precisar aprender.
Alguns estão interpretando esta renúncia como um golpe contra o papa porque a senhora era uma pessoa com credibilidade na Comissão. Talvez agora as coisas vão se acelerar, talvez mudanças vão ocorrer na CDF...
Ao emprestar credibilidade à Comissão para a Tutela dos Menores e também estava emprestando credibilidade a estes homens na Igreja que vinham dando a impressão de que estavam trabalhando no sentido da mudança.
Portanto, fico mais feliz por ter renunciado, pois estas pessoas não merecem credibilidade, não se elas estão mais interessadas em suas próprias normas e disputas facciosas. Isso porque eu não vou dar credibilidade a algo assim. Realmente eu creio que os membros da Comissão estão trabalhando duro, dando o seu melhor, mas se o mundo exterior achava que tudo estava indo bem, então penso que foi bom eu ter renunciado e mostrado que isso não era verdade.
A minha atitude pode fazer avançar as coisas mais rapidamente do que se eu tivesse permanecido.
Acha que a resistência sobre a qual falamos era uma resistência à Comissão ou ao Papa Francisco?
Não sei ao certo a resposta, mas a Pontifícia Comissão é uma coisa que o papa tem apoiado, e, se quisermos fazer resistência ao papa, podemos fazer resistência a algo que ele considera importante. Pode muito bem ser que a resistência ao papa se reflita na resistência à Comissão. Só sei que há uns que não querem cooperar com o trabalho, e que não deveria haver pessoas na Igreja em um tal nível que não querem mudar e que ainda vivem no passado.
Mas alguns no Vaticano cooperaram com a Comissão?
Ah, sim. Eu não quero colocar todos num mesmo saco, certamente não seria justo. Há muitos no Vaticano que são pessoas superabertas e dispostas a cooperar com a Comissão, pessoas que pedem a realização do nosso programa de formação nos departamentos em que atuam. Acho isso excelente. Mostra a disposição delas em melhorar.
A Congregação para o Clero decretou que todos os seminários devem trabalhar a questão da proteção infantil nos programas de formação junto aos seminaristas. Esse é um passo à frente bastante importante. Não é como se a Comissão realizou alguma coisa. Muito foi feito e está sendo feito. Eu não gostaria de sugerir que tudo é negativo e sombrio, mas isso não quer dizer também que tudo está certo.
Quando a Comissão para a Tutela dos Menores foi criada em 2014 pelo Papa Francisco, a senhora foi a primeira sobrevivente que ele nomeou. Um segundo sobrevivente foi designado mais tarde. Dada a sua experiência hoje, acha que os sobreviventes têm um lugar na Comissão?
Acho que sim. Discordo de um artigo que li ontem [no sítio Crux] que dizia que os sobreviventes não deveriam participar de uma comissão como esta porque estariam entre os sobreviventes e Igreja. Não concordo. Mas penso, realmente, que se for para ter um sobrevivente a trabalhar na Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, a pessoa precisa estar bem-preparada. Ela precisa ser muito forte. Precisa saber exatamente o que este trabalho acarreta, porque acho que o outro sobrevivente que ainda está na Comissão, muito embora afastado sob licença, tinha a impressão de que se tratava de uma comissão investigativa. Ele achava que iríamos investigar casos [de abuso sexual clerical], mas quando descobriu que éramos um órgão produtor de políticas, diretrizes, desiludiu-se e então houve certa dificuldade.
Portanto penso que, se um sobrevivente for se juntar à Comissão, ele precisa ser alguém forte e capaz de trabalhar de forma construtiva com os membros da Igreja, e não se sentir, de modo algum, em desvantagem pelo fato de ser um sobrevivente. Como dava a entender o artigo que li, nunca senti que, por ser uma sobrevivente, qualquer coisa que fizesse eu precisava olhar para trás para ver se os demais sobreviventes aprovavam ou não. Não acho que isso seja justo ou certo. Quero dizer, se a pessoa é um psiquiatra atuando numa comissão, ela não olha para trás para ver se outros psiquiatras concordam ou não. Nós sobreviventes temos diferenças. Todos temos as nossas experiências de vida. Eu trabalhei na produção de diretrizes aqui na Irlanda por alguns anos, e já trabalhei em departamentos voltados à proteção infantil.
Não fui convidada para a Comissão simplesmente pelo fato de ter sido abusada sexualmente; fui convidada para a Comissão porque tinha habilidades e experiência nas áreas que eram necessárias. Assim, penso que se decidirem colocar um outro sobrevivente na Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, deveria ser alguém que possui a experiência de abuso, mas também que tenha a experiência de trabalhar nas áreas que são relevantes para a Comissão.
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Sobrevivente de abuso sexual Marie Collins: a “resistência” da CDF levou à minha renúncia da comissão papal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU