02 Março 2017
Embora a saída da única sobrevivente de abuso sexual que atuava como membro ativo na comissão antiabuso sexual da Igreja não seja uma boa notícia em si, a realidade é que nomear sobreviventes como membros do grupo coloca-os em uma posição extremamente difícil, entre a lealdade ao Vaticano e à lealdade aos demais sobreviventes.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 01-03-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A saída de Marie Collins da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, sendo ela a única sobrevivente de abuso sexual que também fazia parte deste grupo, parece boa para o Papa Francisco.
Ao citar, nesta quarta-feira, dia 1º, as frustrações com a resistência ao trabalho da Comissão dentro da Cúria Romana, Collins anunciou que irá se retirar do grupo, embora continuará a trabalhar com ele na formação preventiva a casos de abuso na Igreja. Essa sua saída acontece num momento em que a postura de Francisco junto aos sobreviventes já estava ficando prejudicada, em parte por causa das revelações de que ele teria suavizado as punições impostas contra padres abusadores naquilo que o pontífice vê como o espírito de misericórdia, e que os críticos consideram como uma falha na responsabilização pelos atos cometidos.
Certamente a inércia burocrática e os jogos de poder descritos por Collins levantam dúvidas legítimas sobre a seriedade do Vaticano em termos de seu compromisso com a reforma. No entanto, se olharmos de maneira mais objetiva para a situação, haveremos de concordar que a renúncia de Collins, juntamente com o status inativo do outro sobrevivente que participava da Comissão, o inglês Peter Saunders, foi inevitável e, com razão, foi o melhor que poderia acontecer.
Quando o Cardeal Sean O’Malley, de Boston, e sua equipe na Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores recomendaram que o papa nomeasse Collins e Saunders como membros, as intenções eram, obviamente, nobres. Com base em uma extensa experiência pessoal, O’Malley entende que, se quisermos compreender a devastação espiritual e emocional causada pelo abuso sexual clerical, ninguém melhor do que os próprios sobreviventes para contar suas histórias.
Sabemos também que qualquer iniciativa de cura nesse sentido tem de contar com as ideias e pontos de vista dos sobreviventes, caso contrário não vai dar muito certo. Não se trata de um ato feito em uma única vez, mas de algo que acontece no transcorrer do tempo, visto que os sobreviventes precisam estar incluídos na mesa de discussão sempre que novos problemas e desafios aparecerem.
Vendo hoje, no entanto, tornar Collins e Saunders membros plenos da Comissão acabou pondo-os em uma situação politicamente instável, que não era nem justa para eles, nem útil à própria Comissão.
Collins e Saunders eram pessoas conhecidas como sobreviventes de abuso clerical muito antes de serem nomeadas à Comissão. Ambos tinham a reputação de serem francos na luta contra a pedofilia na Igreja. Esse foi um dos motivos pelos quais foram escolhidos, com base em que a credibilidade deles dentro da comunidade dos sobreviventes seria emprestada à Comissão para a Tutela dos Menores.
Entretanto, a realidade é que ser percebido como parte da equipe oficial do papa e da estrutura vaticana de poder muitas vezes os dividia entre a lealdade à Comissão e a lealdade deles para com os seus companheiros sobreviventes. Sempre que surgia uma polêmica, fosse sobre o trabalho da Comissão, fosse sobre alguma decisão do papa do papa ou do Vaticano com respeito a casos de abuso sexual, não era fácil para eles virem se pronunciar publicamente, ou saber até que ponto deveriam fazer pressão contra a instituição, pois eles também se sentiam obrigados a tentar a não prejudicar ou embaraçar o restante do grupo.
Quando Francisco nomeou um bispo no Chile, em 2015, com um histórico que incluía a defesa do mais notório padre abusador do país, por exemplo, a decisão incomodou muitos dos sobreviventes de abuso e seus defensores ao redor do mundo. O caso deixou Collins e Saunders numa situação particularmente difícil, pois os seus companheiros sobreviventes esperavam que eles se pronunciassem a respeito, conduzissem protestos e, no entanto, o trabalho institucional que desempenhavam na Comissão tornava politicamente complicado agir dessa forma.
A realidade provável é que os sobreviventes de abuso sexual clerical jamais ficarão plenamente satisfeitos com a resposta da Igreja, e é assim que deve ser. Os sobreviventes, especialmente aqueles com a coragem de vir a público, precisam estar livres para falar e ajudar a manter honesta a Igreja, incentivando-a a permanecer eternamente vigilante.
Eis aqui um papel essencial, porem extremamente difícil de desempenhar quando, ao mesmo tempo, se faz parte do “sistema”.
Além disso, simplesmente tornar membros plenos pessoas sobreviventes de abuso sexual não é a única forma de garantir que elas sejam ouvidas. Collins é um exemplo nesse sentido: ela não mais estará participando do grupo, porém aceitou o convite de O’Malley para continuar participando dos cursos de formação, incluindo um curso dado a bispos recém-nomeados.
Os sobreviventes podem ser consultados com mais frequência, como consultores e assessores mesmo. Podem ser convidados a participar dos encontros da Comissão papal, podem participar de vários projetos e iniciativas, e assim por diante, tudo sem estar forçados a carregar o peso político de qualquer decisão que veja a ser tomada – ao mesmo tempo ficando livres para falar, criticar quando assim julgarem.
A Comissão para a Tutela dos Menores pode também organizar sessões de escuta com os sobreviventes de abuso de diferentes partes do mundo, com base na premissa de que a experiência de um sobrevivente, digamos, da Europa é provavelmente diversa da experiência de alguém que vive na África subsaariana ou na Índia.
A questão é que a saída de Marie Collins não necessariamente significa o fim da estrada em termos de representação dos sobreviventes de abuso na Comissão para a Tutela dos Menores. Na verdade, essa saída pode significar uma transição para um modo de agir mais honesto, mais livre, e com menos conflitos pessoais.
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Por que a saída de uma sobrevivente de abuso sexual de uma comissão papal pode ser uma bênção - Instituto Humanitas Unisinos - IHU